ENTREVISTA: THE SORRY SHOP – UM APRENDIZADO

A Sorry Shop, da distante Rio Grande, litoral do Rio Grande Do Sul, lançou em maio de 2013 seu segundo disco, o “Mnemonic Syncretism”, sucedendo o aclamado (pela mídia alternativa) “Bloody, Fuzzy, Cozy”, de 2012, que pintou em várias listas de melhores do ano, incluindo aqui no Floga-se.

Dando de ombros pra distância, bati um papo com Régis Garcia (na foto que abre o post, o terceiro, da esquerda pra direita), baixista e o “pai” da banda, sobre os detalhes do disco, as gravações, os equipamentos, a distância dos grandes centros, as diferenças com o trabalho anterior e muito mais.

Garcia, mostrando-se centrado, admite que a evolução em “Mnemonic Syncretism” se baseia no aprendizado que teve com o disco de estreia, com as opiniões e críticas que recebeu (“gosto muito quando alguém escuta de verdade e fala mal”), principalmente no que diz respeito à duração da obra: “deu pra perceber que é difícil encaixar um disco um pouco maior na vida das pessoas hoje”. Ao contrário de muito “artista” por aí, Garcia assimila bem esses feedbacks, que acabarm norteando um tanto o novo álbum. É tudo um aprendizado, vale repetir.

Ao contrário do disco, a conversa acabou sendo bastante longa, durou uma tarde inteira (das 11:38h às 17:36h), foi feita pelo bate-papo de uma rede social, e foi bastante divertida. Valeu, Internet! Régis Garcia é bem articulado e tranquilão. Ele deixa pra descontar sua raiva e energia na música do Sorry Shop. Ainda bem.

Essa é uma banda que precisa estar mais perto de você, nos seus ouvidos, na sua mente.

Floga-se: Pra começar, o nome do disco… Sincretismo mnemônico… Vocês juntaram algo da natureza filosófica-religiosa com um lance tecnológico. Qual é a ideia?

Régis Garcia: Bom, quando a gente escolheu que ia ser esse o nome do disco, a ideia era denunciar um pouco as relações do que acontece com as influências da gente com o tempo. Eu estava lendo bastante sobre sincretismo na literatura na época, sobre como, sei lá, a poesia marginal do Chacal, por exemplo, foi influenciada, sem necessariamente forçar a barra, por poesia de gerações anteriores que não visavam a mesma coisa que a dele. E aí vem a ideia de circularidade, da gente estar sempre se apropriando, reapropriando, desconstruindo e construindo tudo de novo, com outra cara, com outra máscara, ou seja o que for, a partir das memórias. Com o tempo, outros significados afloraram pra coisa: uma das interpretações pode ser essa que tu ofereceu, principalmente pela maneira como o disco foi concebido. Muita coisa foi feita na marra, do modo mais orgânico possível, por não ter respaldo técnico, enquanto outra parte foi puro plugin.

F-se: Você quer dizer que o mnemônico de vocês são suas influências?

RG: Isso, aquelas informações bem subjetivas, que ficam armazenadas e, forçadamente ou não, a gente retira em algum momento.

F-se: “Muita coisa foi feita na marra, do modo mais orgânico possível”, você diz. O que isso quer dizer de fato? Quais foram as dificuldades? E a produção desse (gravação, mixagem e masterização) teve muita diferença pro disco anterior?

RG: Algumas coisas foram feitas como eu achei que dava pra fazer, com o aparato técnico disponível no momento e sem prestar atenção nos manuais de gravação e afins. Teve música que pra gravar alguma coisa de guitarra, a gente pegou o primeiro mic que achou pela frente e gravou. A voz também: foi gravada como deu. A única coisa que usei o tempo todo foi uma m-audio de dois canais. Foi tudo devagar, por partes, como dava pra fazer, sem periféricos mágicos e no fim, a mixagem, masterização e o resto todo foram direto nos plugins, sem nada demais.

F-se: Foi em estúdio ou em casa?

RG: Em casa, na minha sala. O disco anterior também. A diferença de um pro outro, no fim das contas, foi a experiência que eu ganhei com o BFCozy (“Bloody, Fuzzy, Cozy”, 2012). De resto, tudo muito parecido. Ah, e depois de muitos anos comprei um fone novo legal. Os fones do comércio informal, de trinta reais, já não estavam mais funcionando direito. Aí abri a mão e comprei um mais legal.

F-se: Podemos dizer que tecnicamente a diferença entre o “Bloody, Fuzzy, Cozy” e o “Mnemonic Syncretism” foi… um fone melhor? (risos)

RG: Nem isso, pobres dos discos. O fone decente chegou uns dias antes do prazo pra finalizar o disco. Minutos antes de upar as músicas eu tinha acabado de renderizar tudo e dar a última revisada. Aliás, isso foi uma baita cagada. Com o fone novo eu não tinha o mesmo parâmetro do outro, já tava acostumado com o velhinho. Se teve alguma diferença positiva do “Bloody, Fuzzy, Cozy” pro “Mnemonic Syncretism” foi fone e sorte.

F-se: Como foram as gravações? O resto da banda estava junto ou você gravou tudo sozinho?

RG: Foi tudo sozinho, inescrupulosamente sozinho. Eu sempre gostei de ter instrumentos ao meu redor, mesmo sem dominar ou saber tocar o negócio. Então, como tava tudo por aqui, ia gravando as ideias. Eu me divirto demais gravando, é terapia. O resto do pessoal sempre vem com muita vontade pra fazer junto, mas falta tempo. As atividades paralelas engessam a gente, tanto pra usar o tempo pra compor, pra gravar por aí, quanto pra sair pra tocar por um período mais longo, por exemplo. Acaba que eu componho e já gravo na hora. No fim, por questão de logística (mais até do que o egoísmo musical), acabei gravando tudo sozinho nesse disco também, exceto pelas vozes, que são com o Marcos e com a Mônica.

F-se: Aqui, a banda é a mesma do “Bloody, Fuzzy, Cozy”?

RG: Sim, a mesma ainda. O Rafael Rechia e o Kelvin Tomaz nas guitarras, o Eduardo Custódio na bateria, a Mônica Reguffe e o Marcos Alaniz nas vozes, teclados e barulhos em geral e eu no baixo. Mesmo com tanta gente boa pra fazer melhor, acabei tocando tudo na gravação (ri).

F-se: Uma coisa que me chamou atenção nesse disco é que você fez um disco mais curto, com dez faixas e isso faz toda a diferença… Um disco menor, mais compacto, facilita pro ouvinte. Foi proposital?

RG: Verdade. Foi proposital, sim. A quantidade de música que tinha pra esse disco era gigantesca. Escolhi essas por gostar mais, mas daria pra fazer um B-sides e um C-sides. Mas isso, essa decisão, também foi uma das lições do “BFCozy”. Por um lado, escutei bastante todo feedback que apontava que o disco era longo demais. Por outro, eu já não conseguia ouvir todo “BFCozy” sem achar cansativo e, por último, tem música que a gente nem nunca ensaiou, como a “Glass Jar” (que é uma das minhas favoritas). Esse disco mais curto não é só uma decisão política, é também logística, pra tentar aproveitar melhor o que tem ali.

F-se: Você acha que esse lance de ser longo demais é algo dos nossos dias, de pessoas sem tempo pra apreciar um disco na íntegra?

RG: Acho, sim. Quando fiz o “BFCozy”, achei que seria interessante fazer um disco longo por gostar de escutar discos longos. Eu fico triste quando acaba um álbum que eu gosto, de verdade. Contudo, deu pra perceber que é difícil encaixar um disco um pouco maior na vida das pessoas hoje. Às vezes converso com outro pessoal que tem lançado bastante coisa e a percepção é a mesma: lançar single ou EP pra fazer o pessoal digerir melhor. A ideia é legal, mas ainda gosto mais de fazer uma coisa inteira, por questões pessoais mesmo, por gostar mais de ouvir um disco completo. Eu ia tentar lançar um single, a “Sulfur”, com o “Mnemonic…”, mas acabei deixando pra lá, por não achar que seria muito importante, nem divertido. Mas admito que a duração desse disco tem sido favorável por conta do nosso contexto, dos nossos tempos, como tu mesmo cita, que são duros pra parar e escutar música com atenção.

F-se: Do “BFCozy” pra cá, tiraram algum aprendizado pra melhorar a divulgação?

RG: Eu achava que sim, mas não (risos)! A divulgação é sempre a parte mais dolorosa da coisa, junto com o marcar shows. Eu não tenho habilidade pra isso, mas como trabalhamos sozinhos, sem selo, agência ou uma figura externa que possa vender e divulgar nosso trabalho, tenho que botar a mão na massa. Uma das coisas que aprendi é que tem que tentar apresentar o disco mesmo. Eu ficava muito tímido pra mostrar pra gente que eu não conhecia tão bem ou pra mandar pra sites e revistas. Agora mando, na boa. Sei que não ofende, mas admito que sempre me sinto mal. Eu sempre penso que quem curte vai procurar e que o oferecer é quase uma imposição. Sou neurótico com esses lances.

F-se: Como tem sido as respostas?

RG: No começo, lá no “Thank You”… E no “BFCozy”, a coisa parecia funcionar mais por ser incipiente. Tudo que acontecia era novidade. Hoje as respostas são melhores e maiores. É que no fim das contas não dá pra perceber tanto por ter acostumado um pouco com o movimento da coisa. Mandei o disco pra tudo que é lugar que eu conhecia e que vou conhecendo. Só não mando pra lugares ou pessoas que não têm afinidade com o som. Não tem motivo pra fazer isso. De todos esses lugares, tem bastante gente que é educada na conversa, escuta, mas não publica. Tem gente que não responde mesmo. Tem gente também que não responde e publica. Tem de tudo. Gosto muito quando alguém escuta de verdade e fala mal. Também gosto quando falam bem, claro, mas mais ainda quando dá pra ver que a coisa foi bem escutada. Acho muito legal quando o sujeito escuta e (como aconteceu com um site esses tempos) diz que não é a onda, não tem interesse e prefere não ser desonesto resenhando ou publicando algo sobre. De qualquer maneira, por mais variadas que sejam, temos recebido muito mais resposta nesse disco que no anterior.

F-se: como são essas críticas negativas? Teve alguma que te “abriu os olhos”?

RG: Normalmente são brandas. Até agora ninguém disse algo que desqualificasse por completo algum disco. No “Mnemonic…”, ainda não recebei nenhum parecer desfavorável. No “BFCozy”, a maior crítica era quanto ao tamanho do disco. Alguns lugares disseram não passava de “mais do mesmo” e alguns fizeram críticas quanto aos resultado final, em termos técnicos mesmo, de qualidade. Ouvi todos muito atento. Os lances de duração me abriram demais os olhos, tanto que mudei isso no novo. O “mais do mesmo” me fez pensar sobre o que eu queria fazer, se era “mais do mesmo” ou se eu queria inovar. Concluí que é um pouco de “mais do mesmo”, sim, mas do meu jeito e no meu tempo. Eu gosto de tudo que aconteceu nos anos 90, mas lá eu não pude fazer isso que faço hoje. Gosto demais e não tenho problema com essa releitura daquelas coisas, mas da minha maneira e com toda influência que veio depois daquele momento. Mas ainda, assim, refleti muito sobre o assunto. Essas críticas são fundamentais pra gente pensar e decidir se melhora ou se continua feliz fazendo errado.

F-se: Então, voltamos ao nome do disco: você não se preocupa em ser taxado de “derivativo”, certo? Digo, as influências são o coração do Sorry Shop…

RG: Não, (não me preocupo) de maneira alguma. Gosto sempre de deixar claro pra quem fala que o som é diferente que não fui eu o inventor da coisa. Eu escuto muita coisa enquanto componho, é certo que espirra influência demais de tudo que escuto por ali.

F-se: É que costuma-se associar um som “derivativo” a algo ruim…

RG: Quem encara derivativo como algo ruim e assume que alguma coisa é derivativa, acharia, sem dúvida, outro adjetivo pra classificar o derivativo. Eu não consigo ver a The Sorry Shop como algo não derivativo Essa é uma pergunta difícil. Tô pensando se é ruim mesmo (risos). Quer dizer: é ruim, sim. Mas dá pra dizer que é derivativo sem dizer que é cópia e que não presta, não é?

F-se: Não vejo problema algum em ser derivativo.

RG: Ufa! Me sinto menos pior! (risos)

F-se: Ainda falando de divulgação, vocês pretendem fazer algum vídeo desse disco? Pra qual música?

RG: Sim, sim. Temos pensado na “Cold Song”, na “Know Me Right” e na “Rooftops Of Any Town”. A “Rooftops…” tá mais organizada na nossa cabeça. Tem também possibilidade de fazer algo pra “Awaken Dream”. Se der, fazemos pelo menos de duas dessas.

F-se: Vale voltar na resposta anterior, quando você diz gosta “de tudo que aconteceu nos anos 90, mas lá eu não pude fazer isso que faço hoje”. São dois aspectos aqui. O primeiro é o “lá não pude fazer isso que faço hoje”. Não pôde, óbvio, porque era um menino ainda, mas não poderia, mesmo se tivesse idade, por conta das facilidades que o mundo moderno oferece e não oferecia duas décadas atrás, certo? Hoje, sem a Internet e as tecnologias de difusão da informação e da arte, a Sorry Shop existiria pra além da sua casa?

RG: Em parte tá certo. Não faria de maneira alguma, pelo menos parecido com agora, por eu ter vivido em um contexto que não favorece isso. Quem sabe, se tivesse em outro contexto, em São Paulo, sei lá, e tivesse idade pra isso, teria tentado fazer na época (se tivesse idade, claro). Por aqui o pessoal viveu o início dos 90 lá pelo início dos 2000. Eu acompanhei de perto essas bandas daqui, mas eu ainda não tocava, ou estava começando a tocar e não entendia tão bem tudo aquilo. Aí entra também a coisa da facilidade da Internet: todo projeto que tive a partir do momento em que comecei a pensar em compor e gravar, não vingou por falta de habilidade de administração da coisa, vaidade, ou qualquer um desses problemas que assolam a banda que tá começando. Sem a possibilidade de relação com o mundo virtual, a The Sorry Shop existiria além da minha casa, tenho certeza. Gosto tanto do projeto que se tivesse pensado nele antes, teria feito de tudo pra ele tocar por aí. Pode ser que não existisse com a mesma amplitude e visibilidade, mas eu daria um jeito de fazer a banda tocar nuns botecos por aqui. Mas é inegável que o suporte do pessoal que escreve fora dos meios tradicionais e dos canais de comunicação e redes sociais é um grande folego pra tudo funcionar.

F-se: O segundo aspecto está em “eu gosto de tudo que aconteceu nos anos 90” e aqui a gente entra no conteúdo do disco em si. De cara, em “Cold Song”, há uma intro a la The Cure início dos 80, um pós-punk, e em “Rooftops Of Any Town”, a intro lembra uma balbúrdia meio Sonic Youth pré-adoração MTV… Há mais do que anos 90 aqui, não?

RG: Sim, definitivamente. É um grande erro meu, mas é mais simples botar tudo que começou a acontecer com maior intensidade nos anos 90 como sendo proveniente, de fato, do anos 90. Eu escutei, principalmente no início da minha vida musical, muito Sabbath, Led, Purple e Floyd. Um tempo depois passei pro Cure, pro Depeche, New Order e por aí vai. Escutei demais os anos 80 durante meus anos 90. Nisso chegava, aos poucos, o Pavement e o Built To Spill com muita força, e também a parcela pós-adoração do Sonic Youth. Tudo, pra mim, tá meio misturado. O MBV, por exemplo, só apareceu de vez pra mim lá no finzão dos 90. Às vezes minha linha do tempo é anacrônica. Acho que o Cure, por exemplo, ou a parcela mais brega do Depeche, vão estar sempre presentes no que faço com a The Sorry Shop.

F-se: De tudo isso, você acha que houve uma evolução ou uma diferença de características entre um disco e outro?

RG: Acho, sim. Alguma coisa dali sobrou do “BFCozy”, como a “Star Rising”, mas ainda assim gosto mais de como soa agora. A grande evolução não foi técnica, foi em termos de direcionamento. Esse disco novo tem um semblante mais sombrio, isso me agrada por agora. Também sinto que ele está mais próximo do que eu almejava fazer lá no início, mas não sabia muito bem como. Tateei menos agora, já conhecia alguns caminhos pra chegar no resultado sonoro que eu esperava.

F-se: Nesse sincretismo, o que você acha que é mais latente de todas as influências no “Mnemonic…”? É mesmo MBV?

RG: Sim, certamente. Tanto que sobrepôs um bocado a parcela Pavement da coisa. Eu estava com muita vontade de tentar fazer algo com características mais próximas do MBV. O disco novo deles foi um grande impulso pra isso. Voltei a escutar o My Bloody Valentine diariamente e, com isso, voltou muita coisa do “Loveless”, principalmente. Eu escutei bastante Jesus & Mary Chain e Brian Jonestown Massacre e, um pouco menos, o Slowdive e o Ride. Deu tempo até de descobrir umas coisas do Lush eu eu nunca tinha ouvido, por exemplo. Mas o gatilho pra tudo isso foi o MBV, sim.

F-se: Que tipo de equipamento você usou nas gravações? Pode detalhar?

RG: Posso, e nem vai demorar muito. Usei o ProTools em uma máquina com processador i5. Pra fazer isso funcionar, usei uma Fast Track Pro, da M-audio. Pra bateria, programei bastante coisa e usei uma bateria eletrônica HD-1, da Roland, pra fazer a coisa de maneira geral. Pro baixo usei um cabeçote Hartke como pré, que é o amp que uso pra shows, por vezes com um Precision Bass Americano de 1983 e, na maior parte das vezes, um Jazz Bass Americano de 2006. Fiz bastante teste com pedais e mais pedais, mas acabei usando muito plugin mesmo, pra minimizar ruído e trabalho. O mesmo com as guitarras. O disco todo é praticamente uma Fender Mustang Japão e algumas experiências de pedais e plugins. Em alguns momentos rolou teste com um Fender Blues Jr e uma Fender Strato e em outros com um Laney e uma uma Gibson Les Paul, respectivamente do Rafa e do Kelvin. Pra voz usei um B2 da Behringer, que foi usado pra tudo que precisava ser microfonado, incluindo amps de guitarra. Tenho impressão de que é isso. Ah! Quase esqueci do fone! (ri) Foi um AKG K172 HD, que chegou lá nos 45 do segundo tempo.

F-se: Por ter feito tudo em casa, na raça e na simplicidade, como escapar da estampa de lo-fi?

RG: Se escapou, como eu disse, foi sorte. Eu faço tudo com bastante atenção e cuidado, mas também não faço esforço exagerado pra soar melhor do que dá pra soar. Eu sempre penso que se eu fiquei satisfeito, pessoas com ouvido que entende a música do mesmo jeito que o meu, também podem ficar. Então, vou mixando até ficar como eu gosto. Acho que é uma das partes mais demoradas da coisa e, quem sabe, parece mais organizado por isso. Eu gostaria de poder fazer a coisa bem mais lo-fi, sem conotação negativa no termo, poder gravar tudo direto e junto com som legal, mas moro em apartamento e me adapto ao que consigo fazer dentro desse meu espaço.

F-se: O Rio Grande do Sul nunca pegou a crista da música jovem de 1980 pra cá. No máximo, De Falla, Os Replicantes etc. – e, mais recentemente, Cachorro Grande, entre outros. Mesmo assim, você se sente presente num genoma musical local ou, por ser residente até de fora de Porto Alegre, nem isso? Como identificar a Sorry Shop dentro desse espaço-tempo?

RG: Nem isso. Não dá pra negar que o pessoal da minha idade, na capital ou interior, passou por uma lavagem cerebral feita por rádios locais de grande porte por aqui. Isso contribui pra construção de uma genética musical com resquícios da estética do que é feito na música pop do Rio Grande do Sul. Mas, como tu citou, aqui em Rio Grande, por mais que não tão longe, no momento da grande gênese do rock gaúcho, estávamos distantes, não participamos dos shows, eventos e do cotidiano daquela cena, que embuia dentro de si um sotaque bem peculiar. A The Sorry Shop pode, quem sabe, fazer parte de um novo momento da música aqui no Rio Grande do Sul, que vem ganhando forma e contorno nos últimos anos. Desse genoma me sinto parte, do anterior, não renego o que absorvi, mas não consigo me sentir como membro efetivo daquilo que já era algo solidificado quando me dei por músico. A The Sorry Shop, nesse espaço-tempo, é outsider e não é. Não é necessariamente algo que se encaixe no grande contexto geral do Rio Grande do Sul, mas vai encontrando seus espaços em pequenos universos por aqui.

F-se: No contexto Brasil, isso também vale? A Sorry Shop está longe assim do eixão, ou a Internet derrubou todas essas distâncias? Qual a problemática de tocar no exião pra bandas como a Sorry Shop?

RG: Acho que vale, sim. Por silogismo, a influência que a gente tem por aqui, em Rio Grande, é a influência do que a gente ouve por aí. Logo, é uma influência sem muita fronteira, num âmbito global, eu acho. Não dá pra dizer que fazemos parte de um cenário no Brasil, não de forma efetiva. Somos, em alguns aspectos, parte de uma nova leva de músicos que conseguem apresentar o trabalho pra gente interessada. É certo que a Internet facilitou alguns acessos, mas não dá pra dizer que ela nos teletransporta pro eixão automaticamente. Pra pertencer ao “cenário” do qual podemos fazer parte pelo som, precisaríamos estar mais próximos – fisicamente – de onde há movimento. O problema disso é o custo e o tempo pra dar cada um destes passos. Pra chegar até Porto Alegre, por exemplo, já é custoso. Somos em seis pessoas, não cabemos num carro, ainda tem o equipamento. Gastamos bastante dinheiro e, pelo menos, quatro horas numa ida. A solução pra integrar é ir pra um lugar onde haja, de fato, mercado decente. Mas isso implicaria em deixarmos pra trás os compromissos que pagam pra estarmos podendo gastar algum tempo com a música. Além disso, mesmo que morássemos em alguma capital, o custo de tudo que envolve transporte no Brasil é tão absurdo que, de alguma maneira, acabaríamos fazendo pequenos movimentos e circulando por contextos mais específicos e limitados. Vejo pouca banda do norte do Brasil passar por aqui, por exemplo. E admiro demais aquelas que conseguem tempo, disposição, logística e organização pra fazer isso. Eu gostaria de viver da música, mesmo. Acho que todo músico gostaria. Falta coragem.

F-se: Já declinaram de convites fora do estado por conta dessa logística complicada?

RG: Sim, até no Rio Grande do Sul já tivemos que declinar. Teve um, na casa da Matriz, no Rio, que fiquei bem triste de não acertar. Já rolou em São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Aqui no Sul, dependendo do lugar, fica complicado às vezes. Já tivemos que declinar, por motivos financeiros (estávamos no negativo) uma boa tocada com a Siléste, ali perto de Porto Alegre, numa celebração legal de lançamento de material deles. Dói bastante. A gente tem sempre que planejar bem a coisa. Andamos pensando muito em tocar na Argentina, o custo, incrivelmente, é mais ameno do que o de ida pro centro do Brasil. O Jairo Manzur, que é um grande amigo e colaborador, vem ajudando a planejar um pouco a ida. Tomara que funcione.

F-se: As letras do disco são suas e do Marcos. Foram feitas em conjunto, trocando figurinhas, ou cada um fez de algumas, sozinho? Como foi o processo?

RG: Eu fui sacaneando o Marcos e jurando pra ele que tinha material escrito. Tinha alguma coisa, sim, mas era muito pouco. Eu queria mandar uns embriões pra que ele pudesse dar forma e vida e organizar as ideias. O Marcos é sempre o primeiro, junto com a Mônica, a escutar as músicas. Nem sempre é quando elas ficam prontas. Às vezes demora. Aí a gente vai conversando sobre o que a música significa, mesmo sem letra. Então, pegamos o que temos escrito e vamos lapidando. No fim das contas, no “Mnemonic…”, o Marcos escreveu bem mais. Uma ou outra, como a “Protect”, por exemplo, foi uma parceria entre nós dois. Era uma letra e virou outra. A “The Lesser Blessed” eu fiz sozinho, já que era baseada num livro que curto muito e só eu tinha lido. De qualquer maneira, a maior parte das letras desse último disco são do Marcos, e uma boa parte eu nem me preocupei em trocar um ponto ou vírgula. Confio bastante nele.

F-se: Que livro?

RG: O livro é de um autor canadense chamado Richard Van Camp, o título do livro é o mesmo da música. É um autor bem interessante, com um produção curta, mas consistente. Ele gostou da música. Assim que saiu, eu enviei pra ele ouvir, principalmente por saber que é o tipo de música que interessa (ou já interessou) ele. Foi muito satisfatório saber que um cara que admiro fazendo o que faz, gostou da homenagem que fizemos pra ele.

F-se: Mas as letras falam sobre o quê exatamente? são experiências próprias?

RG: A gente nunca conversou sobre isso de uma maneira mais explícita, mas acho que no “Mnemonic…” o Marcos meio que criou uma personagem e projetou ali umas inquietações. De maneira geral, falamos sobre como nos sentimos através de metáforas bem simples. A “Cold Song”, por exemplo, fala das paisagens que o Marcos enxerga da janela do quarto dele. A gente mora mesmo em uma das bordas do mundo, de frente pro oceano (todos nós, exceto o Kelvin, que mora numa zona mais central, moramos numa parte de Rio Grande que é praia), num frio que a gente aprende a conviver e passa a fazer falta. Tem todo um sentimento pelo lugar, mesmo que isso às vezes seja representado por uma relação entre dois sujeitos, e não necessariamente por um lugar.

F-se: Isso se reflete no disco? Você acha que é um disco frio?

RG: É menos ensolarado que o anterior. Quer dizer, é um disco que não é quente, mas não é necessariamente regido por uma estética específica. Acho que, musicalmente, é mais frio. Mas não é impessoal, acho até que acalenta mais que o “BFCozy”, toca mais fundo. Pelo menos não era pra ser frio no sentido de impessoal.

F-se: O que mais gostou nesse disco?

RG: De poder escutar e sentir que houve progresso e ficar com vontade de escutar mais um pouco e fazer um próximo. Também gosto demais da capa da Meire Todão, que ficou exatamente como eu imaginava que poderia ficar.

F-se: Aliás, fale dessa capa. Como foi a criação dela? Teve briefing?

RG: Pobre da Meire. Ela bem que tentou. Pediu um briefing e ganhou um brainstorming from hell. A partir do que eu enviei pra ela, ela providenciou uma porção de fotos legais. Todas elas muito boas pra pensar em fazer a capa do disco, mas umas mais especiais que a outra. Quando eu vi essa que virou a capa, que veio em uma das primeiras levas que ela enviou como sugestão, eu já tinha certeza que eu não ia mudar de ideia. Ainda mostrei pro pessoal da banda, mas como todo mundo achou tudo tão legal, acabei escolhendo a que ficou. A Meire tem muita sensibilidade e tem um ótimo gosto musical, além de ser um ser humano gentil, fantástico e talentoso. Não precisou de muito esforço pra gente conseguir se entender sobre a capa do disco.

F-se: Quanto tempo demorou pra fazer o disco?

RG: Bom, depende um pouco. Se considerarmos tempo útil, acho que uns dois meses. Eu fiz tudo direto, mas com um espaço grande de tempo entre o início do processo e a segunda parte dele. Comecei logo depois do “BFCozy”, mas por conta da divulgação do primeiro disco e depois dos shows, parei em seguida. Fui voltar mesmo, com tempo dedicado pra isso, só em dezembro. Aí trabalhei com intervalos menores. Fui trabalhar com tudo, com maior dedicação (e uma pitada de esquizofrenia temporária) só em março e abril. No balanço total da coisa, foi um ano, mas em tempo útil apenas uns dois bons meses.

F-se: A banda já tá afinada com as músicas do disco? E o que você vai fazer com as sobras, vai ter B sides e C sides mesmo?

RG: A banda tá afinando. O Kelvin teve um problemão com a compressão de um nervo que faz ele ficar com o braço com a sensação de dormência e sem força. Tivemos que parar de ensaiar um pouco por conta disso, mas foi bem no momento do lançamento do disco. Por um lado foi bom, já que deu pra trabalhar bastante a divulgação. Por outro nem tanto, já que seria ótimos estar bem ensaiado pra ir encarando os shows. Mas agora estamos dando um jeito nisso com um pequeno intensivo. Sobre as sobras, eu queria bastante lançar, sim. A gente cogitou muita coisa, desde um box com todos discos anteriores, alguma coisa ao vivo de show e ainda os b, c e até d-sides. Se nos organizarmos bem, é bem possível que saia. Contudo, ainda temos que pensar em trabalhar bastante esse disco. Temos pensado muito em material visual, videoclipe pras músicas. É uma maneira de esticar um pouco a vida dele. Mas esses b-sides estão nos planos. Nem que saiam bem crus, vão sair. Só não sei quando.

A banda tocando “Cinderblocks” e “Dressed To Fool” (ambas do “Bloody, Fuzzy, Cozy”), no Grito Rock Pelotas 2013, organizado pela Casa Fora do Eixo Pelotas (vídeo por Suellen Rubira):

F-se: Já pensa no terceiro disco?

RG: O tempo todo! (risos) Terminei o “Mnemonic…” e pensei: “e agora?”. Fica martelando o tempo todo o que fazer. E não quero usar as sobras (como usei umas coisas do “BFCozy” pro “Mnemonic…”) pra um terceiro disco. Quero que aconteça uma supernova e que minhas ideias se reorganizem, pra não ficar com ranço daquele “mais do mesmo”. A não ser, é claro, que eu fique com vontade de fazer “mais do mesmo”. Aí eu faço. Por enquanto, as ideias que estão aparecendo são de músicas cada vez mais densas e com mais ambiência. Ao mesmo tempo aparecem uns lampejos de quebrar tudo e fazer um disco mais pegadão. É muito provável que lá pro fim do ano já comece a rolar algum resultado do que tenho pensado pro terceiro disco.

F-se: Se fosse pra um dos dois discos ficar pra história, com a estampa de “clássico”, qual você acha seria?

RG: O “BFCozy”. Eu gostaria que fosse o “Mnemonic…”, ele é o que quero fazer de verdade (pelo menos agora) mas não acho que ele tenha o mojo pra virar “clássico”. Pode ser que o próximo tenha. Por enquanto, pela força do disco, acho que ainda seria o “BFCozy” o “clássico”, principalmente por ter apresentado a banda por aí.

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