INTERPOL – HISTÓRIAS DE EXCESSO, “TURN ON THE BRIGHT LIGHTS”

Carlos Dengler, ou Carlos D, deixou o Interpol em 2010 e não se mostra arrependido. Quando a revista virtual N+1 pediu pra ele escrever algo sobre os quinze anos de “Turn On The Bright Lights”, o disco de estreia do Interpol, lançado como sensação em 2002, Carlos fez uma longa explanação comparando um disco que ele considera perfeito, “Rumors”, do Fleetwood Mac, e o aniversariante da época.

Pra ele, os discos se unem por conta das “controvérsias”, das polêmicas, dos atritos, das loucuras por trás das suas respectivas criações, feitas por pessoas imperfeitas e despreparadas pra lidar com as exigências do momento. As duas bandas, claro, viviam momentos completamente distintos na carreira – uma estava no auge, preparando uma das suas obras-primas mais aclamadas, até hoje; outra estava dando os primeiros passos; mas o universo conspira pros mesmos problemas.

A descrição angustiante de Carlos Dengler, como se elaborasse um roteiro distante do qual ele não fez parte, diz mais sobre si e, consequentemente, sobre suas linhas de baixo sombrias e carregadas, do que suas aventuras pelo mundo subterrâneo das drogas (que no texto ele cita bem superficialmente).

O disco, ainda tido com uma dos melhores do Interpol (não vou fazer juízo aqui), será constantemente lembrado nas efemérides (dezoito anos é a próxima, vinte anos vem na sequência), e seria interessante saber como um Carlos Dengler um pouco mais maduro o perceberá.

No texto abaixo, publicado em 2017 e repercutido por dezenas de sites e blogues à época (original aqui), seus demônios pessoais ainda se fazem presentes e são esses pequenos esclarecimentos que deixam a obra a ainda mais rica. Pra além da música.

HISTÓRIA DE EXCESSOS
Texto: Carlos Dengler
Tradução livre: Floga-se

Tem uma passagem em “Rumors”, a obra-prima radiante do Fleetwood Mac, que vendeu mais de quarenta milhões de cópias no mundo todo, quando, em poucos segundos, uma peça de soft rock simplesmente brilhante entra num território estranho e desconhecido. Perto dos três minutos de “The Chain”, as coisas parecem que estão chegando ao final. Então, de repente, uma sinistra e meio pós-punk linha de baixo irrompe dos abismos, dando início a um ataque lúgubre de harmonia vocal e de um jocoso ostinato de guitarra. Se prestar atenção, é possível ouvir um The Cure da fase “Seventeen Seconds”.

Aquele momento sorumbático e existencial – de longe o mais sombrio num disco rigorosamente ensolarado – extrai “Rumours” da sua “era (Jimmy) Carter, do arredores do megarock clássico (uma banda folk dos anos 1970 capaz de apelar ao seu “toque” punk é uma banda que transcendeu o gênero). Isso rola bem no meio do disco (“The Chain” é exatamente a primeira do lado B), um buraco negro sombrio em torno do qual todo o resto do disco gira. Que “The Chain” seja a única música do álbum que tem como crédito toda a banda não parece coincidência: parece que todo mundo se uniu pra uma séria revelação.

A ignomínia reprimida é, na maioria das vezes, o contraponto lógico pra ascensão de uma banda à fama global, e pro Fleetwood Mac, “Rumors” foi o começo de um fim aparentemente inevitável. A história da banda, como de tantas outras, termina em clínicas e brigas (embora, ainda bem neste caso, sem suicídios ou processos judiciais). Mesmo sem as drogas, houve um drama tóxico suficiente no estúdio pra mais do que um documentário em longa-metragem: divórcio (os McVies), separações (Stevie Nicks e Lindsey Buckingham) e traições (Nicks com Mick Fleetwood). Foi uma bela novela – um aumento nas lendas habituais de drogas e sexo com fãs.

Como essas saíram da cama pra compor um dos grandes álbuns de todos os tempos? Não posso falar pela rotina diária deles, mas de acordo com meu conhecimento do processo de gravação, toda aquela tensão de alguma forma foi filtrada na hora de compor, como um sexo avassalador. As sessões de gravação foram incrementadas pela tensão do pessoal da banda – o estúdio funcionando como uma operação de mineração desses sentimentos profundos. Com energia suficiente, havia diamantes em potencial bruto pra serem descobertos. É uma explicação persuasiva, ainda preciso me convencer disso.

Há um nível de perversidade aqui, pela seletividade. Não toleraríamos excessos ou irresponsabilidades de nossos pilotos de avião ou de enfermeiras, mas as regras sempre são diferentes pra música, principalmente pro rock. A insanidade ajuda na composição (e promove vendas). A série “Vinil”, da HBO, é um exemplo revelador do fenômeno: o assunto principal não era tanto a ingenuidade musical de roqueiros talentosos no centro do espetáculo, mas as travessuras que aconteciam fora das salas de ensaio. Assistia ao comercial do programa e você verá muitos semideuses tatuados e cheios de joias fechando acordos épicos e destruindo os móveis da sala. A controvérsia contribui mais pro drama grandioso do que a música em si.

Claro, não é assim que a maioria das pessoas experimenta o rock: elas ouvem rifes e linhas de baixo, não linhas, carreiras de coca. Pra aqueles de nós que entraram nessa antes da ascensão do MP3, o ato de tocar um disco, especialmente durante as mágicas horas da noite, soava algo cerimonial, até mesmo eclesiástico (meus domingos ouvindo The Cure incluíam incenso). Esses ritos sofisticados não poderiam ser realizados sem música de qualidade: estou me fazendo parecer mais velho ao dizer isso, mas a era de ouro do disco de rock, agora uma forma de arte morta, reinou entre o primeiro disco do Led Zeppelin e o “Disintegration”, do The Cure. Eu não estava atrás de controvérsias, entretanto: a música era suficiente.

Mas as histórias de excesso persistem por uma razão – e não é só a HBO baforando na bunda do consumidor. Como co-fundador da banda Interpol (toquei baixo com eles de 1998 a 2010), não posso deixar de concordar – embora de forma reticente – com aqueles que preferem inflar os mitos e a mística do rock pra além das músicas. Porque, a julgar pela minha própria experiência pessoal, parece que “Rumors” funcionou tão bem justamente por conta de toda a insanidade com drogas e sexo que acompanhou a produção do disco.

Quando penso no som do primeiro disco da minha antiga banda e nas condições em que foi gravado, não posso deixar de pensar em “Rumors”, cuja perfeita combinação de pérolas doces e triunfalismo estridente contrasta com as circunstâncias de sua gravação permitidas apenas pra maiores de idade (exceto, claro, pra aqueles poucos segundos dissonantes de incursão pós-punk). “Turn On The Bright Lights” é o oposto musical de “Rumors”. Mas, como em “Rumors”, decididamente também não é um álbum festivo, e também está muito em desacordo com as circunstâncias de sua criação.

A decisão de gravar “Turn On The Bright Lights” em Bridgeport, Connecticut, foi insana (morávamos em Nova Iorque), mas as viagens na linha New Haven ofereciam certas vantagens. Durante um passeio matutino, me vi raspando os restos esfarrapados de um envelope de papel cuidadosamente dobrado, segurando os últimos vestígios de cocaína que eu tinha comprado na noite anterior, num clube (foi na verdade a mesma noite, já que eu não tinha dormido). Assumi que quando esses coágulos úmidos de pó branco encontravam seu destino final nas minhas narinas, eles tinham sido cortados muitas vezes, e percebi que a mistura final incluiu algumas migalhas de fiapos e barra de chocolate. O sol do início da manhã e o maquinista deram o golpe final num ato com tal sutileza clandestina que teria feito orgulhoso um batedor de carteiras francês do século XIX.

Outros idiossincrasias comportamentais da época: o racionamento de preservativos, e minha dieta só-amido, que, juntamente com o álcool e cocaína diários – contribuiu pra uma certa, direi, tom de pele (pense na série “Os Monstros” colorizada, algo do tipo). Em outras palavras, nada disso parecia tão fascinante, embora seja certamente decadente. No entanto, estou quase certo de que, poucas horas depois daquela viagem de trem, eu coloquei uma linha de baixo em “Turn On The Bright Lights” que levou a muitos elogios e e-mails de amigos e fãs na próxima década e meia. Causa ou correlação? É uma velha pergunta. Provavelmente vou passar o resto da minha vida tentando descobrir a resposta.

Eu não era o único monstro, é claro: o nosso cantor, cuja letra e timbre vocal deram a esse nosso primeiro disco um lugar especial no panteão do indie-rock, era tão propenso a seus coquetéis de vodca que você pode ouvir o tilintar dos cubos de gelo vazando no microfone durante uma das aberturas de nossa música. Ele e eu, apesar de não sermos os melhores amigos, criamos uma tagarelice de depravação durante os primeiros dias da banda.

“Turn On The Bright Lights” não é um disco de rock perfeito; é perfeitamente imperfeito, o que parece um ótimo “segundo lugar” (um prêmio de consolação). No entanto, como “Rumours”, o álbum precisava ser salvo do abismo: ele não pode ser produzido apenas com cocaína e vodca. Eu imagino que o Fleetwood Mac foi mantido à tona por produtores, engenheiros e gerentes determinados a chegar ao final do processo. No caso do Interpol, nos beneficiamos muito da idade de nosso baterista (Samuel Fogarino tem seis anos a mais que ele e dez anos a mais que o vocalista Paul Banks) e da perspicácia gerencial de nosso guitarrista: a porção mais sóbria de nossa banda arrastou o peso de sua outra metade alcoólica.

“Turn On The Bright Lights”, agora experimentando uma merecida celebração de aniversário de quinze anos (quase vinte, o disco é de 2002), é um álbum que poderia definitivamente oferecer uma ou duas horas mágicas melancólicas. Não quero que isso soe como se eu estivesse me gabando: embora eu fosse um dos compositores, agora me sinto mais como um participante confuso ou um sobrevivente de um transtorno de estresse pós-traumático. Vivi pra contar a história de um acidente de avião que quase aconteceu, e ainda estou descobrindo como consegui passar no exame de voo e entrar naquela cabine, em primeiro lugar. Com o passar do tempo, minhas histórias de lendas dos bastidores passaram a parecer, acima de tudo, exemplos de inépcia e inexperiência. Quinze anos depois, agradeço às forças que me impediram de derrubar aquele lindo avião.

Uma coisa que os últimos sete anos da vida civil pós-rockstar me ensinaram é que por trás de cada grande performance existe uma ansiedade de desempenho igualmente grande, contrabalançada, ela mesma cultivada em traumas precoces e muito provavelmente da variedade familiar. Ponha de lado a controvérsia e, sem dúvida, você verá a realidade menos lisonjeira de uma alma torturada compensando o amor perdido em casa. Meu caso não foi diferente: minha infância foi a típica mistura infeliz de abandono dos pais e abuso psicológico (vou guardar os detalhes sangrentos pra outro artigo). A indústria do entretenimento – um negócio implacável dedicado cegamente ao seu resultado financeiro e despreocupado com a humanidade no âmago do “talento” – é um simulacro perfeito do estágio posterior à degradação induzida pelos pais. Não surpreende, portanto, que tanto drama e excesso sempre pareça girar em torno do estrelato pop.

“Turn On The Bright Lights” é um assunto doloroso pra mim (ele se refere a sempre que se comemora algum aniversário da obra): sinto que estou vendo meus filhos se formarem na faculdade, mas eu não fui convidado pra cerimônia. Nem a banda nem sua gravadora me procuraram por qualquer negócio relacionado ao disco, o que é surpreendente. Mesmo que hoje eu permaneça, pra melhor ou pra pior, distante de meus antigos colegas de banda, 25% do DNA desse álbum é meu. Ao mesmo tempo, não estou preocupado com o legado do Interpol: sei que está em boas mãos. Minha decisão – como artista e membro de um coletivo – de deixar um grupo como o Interpol, com todos os seus triunfos e fracassos, foi uma das maiores decisões da minha vida. Eu viverei sem arrependimento até meu último suspiro. Mas não há nada como um número redondo pra rolar mil “e se” angustiados. Eu posso ouvi-los zunindo em minha cabeça, como uma horda de vespas.

Por enquanto, aproveito as pequenas coisas, como quando revelo minha identidade como ex-baixista do Interpol e enfrento o olhar arregalado de alguém que acaba de experimentar um inesperado contato com a fama. Pode ser em vão admitir isso, mas esses encontros me fazem sentir como um Clark Kent que deixou alguém entrar em seus velhos tempos de Super-Homem. O que esses momentos significam é que muitas pessoas amaram e ouviram Interpol sem nunca se darem conta de como eram as pessoas por trás do grupo. Elas não se importam com os escândalos ou a criação de mitos – só com a música.

Em algum lugar ao longo do caminho pra um grande disco de rock, você precisa de alguma controvérsia, de alguma polêmica. Se alguém remover todas as minhas atividades extracurriculares da história dos primeiros dias do Interpol, posso afirmar sem hipérboles que estaríamos nos lembrando da banda de uma forma diferente – talvez com um pouco menos de paixão. Ao mesmo tempo, se eu fizesse tudo de novo, eu poderia parar pra pensar sobre esses fãs e considerar, antes de cheirar a próxima combinação de pó de talco e extrato colombiano, que um empreendimento atemporal, infinitamente mais sensível, como um “Rumors” ou um “Turn On The Bright Lights”, podem ser divertidos o suficiente pra sustentar minha curiosidade pelo resto da vida.

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