LOW DREAM EM DUQUE DE CAXIAS: UM CULTO AO VELVET UNDERGROUND EM UM SALÃO DE FORRÓ NA BAIXADA FLUMINENSE

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Dizem que teve até tiro do lado de fora. Não há provas, mas quando a lenda é maior que o fato, imprima-se a lenda, ensinou John Ford em “O Homem Que Matou O Facínora” (1962), com John Wayne e James Stewart. É sobre o poder da lenda que, não raras vezes, supera a realidade no interesse do público. Como neste caso específico, assim como no western de Ford, a lenda joga a favor, e não contra o fato, a gente imprime a lenda.

Pois então, dizem que teve até tiro do lado de fora de um salão de forró em Duque de Caixas, Baixada Fluminense (e a informação veio de alguém que supostamente esteve lá), num domingo à tarde, onde três garotos recém-saídos da adolescência, vestidos de preto, blusas de gola rolê, calças de couro e franjas sobre os olhos, azucrinaram uma plateia diminuta com barulho ensurdecedor em uma espécie de culto ao Velvet Underground. É a síntese do tal “rolê aleatório” antes de a expressão virar moda. Aconteceu em 1991 com a Flower’s Land, banda que deu origem à Low Dream, de Brasília, considerada a mais inglesa entre as brasileiras, e banda indie preferida do Renato Russo.

“Fomos convidados a tocar nessa casa noturna”, lembra Giovanni Fernandes, baterista da Flower’s Land/Low Dream. “O Reginaldo agilizou tudo”. O Reginaldo da história foi presidente de fã-clube da Legião Urbana, depois roadie do Dado Villa-Lobos.

Era a primeira vez que o trio – Guilliano Fernandes (vocais, guitarra), Giovanni e Alessandro Haeckel (baixo) – tocava em um palco fora de Brasília. Em 1991, viajar os mais de 1.160 quilômetros que separam o Distrito Federal do Rio de Janeiro pra uma gig barulhenta no subúrbio carioca era uma aventura que nem todo mundo topava encarar. Antes da Internet, as distâncias pareciam muito maiores. Em um tempo em que a comunicação se dava por telefone ou carta, arranjar um show em outro estado era uma luta inimaginável pra uma banda independente atual.

Consultado uma vez sobre o show, Giulliano disse não se lembrar de nada. O irmão mais novo tem alguma coisa na memória. “Lembro que a casa ofereceu um valor simbólico pros nossos custos, que mal pagaram nossas passagens”, conta Giovanni. “Foi a primeira vez que viajamos juntos”.

A viagem era interminável, e o ônibus quebrou “no meio do nada” durante a madrugada. O trio esperou horas por outro ônibus. Mas a empolgação era tanta que nem ligaram. Ainda que tocar em um local ainda não explorado e não reconhecido (pelo menos à época) como terreno fértil pro noise à Velvet Underground do trio, botava uma pulga atrás da orelha da Flower’s Land. “Sabíamos que estávamos indo tocar na região metropolitana do Rio, no caso a Baixada Fluminense. Rolava um certo receio, claro, mas nosso amigo era de lá e nos tranquilizou”.

A Baixada Fluminense é formada pelos municípios Duque de Caxias, Belford Roxo, Guaramirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João do Meriti e Seropédica. Segundo o Atlas Brasil, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Duque de Caxias em 1991 era de 0,506; em 2010 havia saltado para 0,711. A expectativa de vida passava pouco dos 65 anos; atualmente é de 75. A vida melhorou bastante desde o famoso Tenório Cavalcanti, o Homem da Capa Preta, nos anos 60, mas ainda há muito preconceito de quem vê a região de fora – como acontece com tada região periférica nas grandes metrópoles, infelizmente.

Em reportagem de 2017, a Agência Pública informou que, naquele ano, os treze municípios da região respondiam juntos por 46% dos homicídios no estado do Rio. Cálculos do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro apontaram que, em 2015, a taxa de assassinatos foi de 18,5 para cada 100 mil habitantes; na Baixada, o número foi de 40,2.

A Flower’s Land foi o laboratório da Low Dream. Criada pelos irmãos Giuliano (guitarra e voz) e Giovanni Fernandes, tinha ainda Alessandro Haeckel no baixo. Em vez do noisy pop/shoegaze da Low Dream, a banda anterior olhava mais para as experimentações de Lou Reed e John Cale, envolvendo a execução de músicas em volume ensurdecedor e drogas.

“Eu morava em Niterói, bem longe de Caixas”, lembra Rodrigo Lariú, fundador e proprietário da Midsummer Madness, à época com “16 ou 17 anos, sei lá”. Acompanhado de um primo – o Guilherme –, passaram a noite posterior na casa de parentes em Duque de Caxias, já que a viagem também Niterói-Baixada Fluminense também era longa. “Não me lembro de tiros na porta”, diz, ainda que suas lembranças, afirma, sejam nebulosas. Mas lembra que o lugar não era exatamente o ideal pra uma banda como a Flower’s Land. “O lugar era esquisito, tipo salão de baile de forró. Mas pelo menos tinha palco, equipamento e era escuro”.

Naquele início dos anos 90, Lariú trocava cartas com o Giulliano. Em uma delas, percebeu que o músico estava empolgado pra tocar no Rio. “Falava do show como se fosse tocar no Scala, em Londres. Eu dividia a empolgação”. Giulliano também editava um zine, o “Hang de DJ”, em que publicava notícias sobre Galaxie 500, Ride, My Bloody Valentine, Smiths, House Of Love e, evidentemente, Velvet Underground.

Era esse tipo de evento que permitia a bandas e fãs desse tipo de som mais ardido, menos popular, conhecer gente que também gostava da mesma estética. “Pra esse show, como outros na mesma época, eu me enchia de esperança de, quem sabe, conhecer novos amigos ou uma namorada que gostasse das mesmas coisas”, comenta.

O espaço era imenso pra uma banda independente, sobretudo pra uma que cantava em inglês. Sinônimo de que seriam estranhos ao ambiente. Mas a banda, lembra Giovanni, foi ao Rio consciente disso. “Nos sentimos totalmente fora do contexto ali”. O público foi pequeno, e mesmo sabendo que seria assim, Giulliano voltou pra casa frustrado. “Sempre acreditamos muito no que fazíamos e onde queríamos chegar”, aponta Giovanni. “O primeiro show fora de Brasília, claro que existia uma grande expectativa. O que não aconteceu em termos de casa cheia, e ninguém gosta disso”.

Mas a presença de Lariú, à época editor do zine Midsummer Madness (ao final do artigo, a reprodução da matéria), que logo se transformaria no principal selo independente do país, deu à banda o alento necessário pra que aquele fracasso não botasse uma pedra sobre os sonhos dos irmãos.

Uma banda abriu a gig, mas Giovanni não faz ideia de quem tenha sido. Ela também levou certa parte do público, insuficiente pra lotar o local. Mas a Flower’s Land percebeu que, de algum modo, conseguiu atingir aquela meia dúzia de adolescentes que se dispôs a ir uma casa de forró pra ouvir três garotos arrancarem barulho dos instrumentos como se fosse a única coisa que lhes restasse.

“Lembro de algumas pessoas levantarem com os dedos nos ouvidos e saírem dali, sem suportar o barulho”, destaca. “Lembro do Rodrigo, a Alê e o Leandro (ou Guilherme, segundo Lariú) assistindo ao show sentados em uma mesa e lembro de alguns curiosos, que deviam estar bem bêbados, em frente ao palco balançando o corpo como quem está gostando sem saber exatamente do que”, recorda Giovanni. “Aquilo tudo era muito novo”. Felizmente, os poucos que estiveram diante da banda naquele domingo eram curiosos ou gente que entendia minimamente o que saía dos amplificadores – ou estavam bêbados o suficiente pra curtir qualquer coisa. Uma plateia hostil àquele tipo de som poderia ter dado outro desfecho à gig.

Não existem registros desse show nem da Flower’s Land. Segundo Giovanni, as poucas fitas demo gravadas pelos irmãos naquele início dos anos 90 se perderam com o tempo. O fracasso de Duque de Caxias serviu pra dar um novo rumo banda. Ele e o Giulliano mexeram nas estruturas do grupo e mudaram o nome para Low Dream. O baixista, Alessandro, não curtiu o desvio na rota e preferiu sair. “Ele não concordava com o fato de a banda acompanhar o que estava sendo feito ali no início dos anos 90”, explica Giovanni.

A Flower’s Land era crua, três ou quatro acordes no máximo, um tributo aos Velvets e ao Jesus And Mary Chain. “Letras poéticas com uma certa arrogância”, define Giovanni. Já a Low Dream somava distorções a uma certa melancolia etérea. São os irmãos indo além, atrás de outros nomes do rock inglês e americano. A lista de referências aumentou; entraram Stone Roses, My Bloodv Valentine, Happy Mondays, Charlatans, Chapterhouse, Ride, Smashing Pumpkins.

Com a Low Dream, gravaram uma demo – “Dreamland”, de 1991 – dois discos – “Between My Dreams And The Real Things”, de 1994, pela Rock It, de Dado Villa-Lobos e o plebe rude André Muller – e “Reaching For Ballons”, de 1996, por um selo próprio, o UpTight (os dois na íntegra no corpo deste texto).

Gravaram ainda a fita “Soundscapes”, de 1995, acústica. Tocaram em festivais pelo país – as duas edições do Junta Tribo, em Campinas, 1993 e 1994, Leite Quente, em Curitiba, 1995 –, rodaram casas noturnas em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Londrina, se corresponderam com gente do Brasil inteiro por meio de um sistema eficiente de mala direta e chamaram a atenção do Renato Russo, que em entrevistas a’O Estado de S.Paulo e à MTV Brasil afirmou que a banda era uma das suas preferidas.

Em setembro de 1996, Renato disse a Ricardo Alexandre, no extinto caderno Zap, do Estadão: “não sei como eles conseguem aquelas guitarras meio Jesus And Mary Chain e My Bloody Valentine, porque a gente tenta, tenta…”.

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