O PACIENTE ZERO DA PIRATARIA MUSICAL NA INTERNET

“Como A Música Ficou Grátis – O Fim De Uma Indústria, A Virada Do Século E o Paciente Zero Da Pirataria”. Esse é o título do livro escrito por Stephen Witt e publicado em 2015 (no Brasil, saiu pela Intrínseca e vale muito, muito, muito ler – vá ao site oficial na editora, que publicou na plataforma Issuu um bom pedaço do livro).

É uma trama bem armada focada em três personagens: Karlheinz Brandenburg, um dos inventores do MP3; Doug Morris, o chefão da Universal Music; e Dell Glover (foto que abre o post), um zé-ninguém do interiorzão dos Esteites, que se tornou o maior vazador de discos da história.

Curiosamente, nenhum dos três tem qualquer importância como músicos e ainda assim os três foram essenciais pra indústria da música chegar a ser o que é hoje – o que só sublinha o papel secundário que a indústria atribui a quem cria a arte em si.

A ideia original era rastrear o primeiro cara que pirateou oficialmente um MP3 de música. Não foi possível, mas as pesquisas de Witt chegaram a um submundo chamado Scene (Cena), onde os piratas, normalmente pessoas comuns, não ligadas à música e nem mesmo superfãs de qualquer artista, faziam a festa e concentravam quase toda a produção pirata da virada do século (alimentando, inclusive, o icônico Napster e seus setenta milhões de usuários).

Witt se dá conta de que o mundo da pirataria, tão aclamado como uma rede democrática e revolucionária, que quebraria barreiras e destruiria corporações maléficas, nada mais era do que um mundinho fechado, formado por moleques ególatras e nerds, e por trabalhadores mal pagos e que só queriam tirar um troco a mais.

“Eu supunha que a pirataria de músicas era um fenômeno de colaboração coletiva. Ou seja, acreditava que os arquivos em MP3 baixados por mim provinham de uploaders espalhados pelo mundo e que essa rede difusa de ripadores não era significativamente organizada. Eu estava errado. Embora alguns arquivos fossem mesmo artefatos irrastreáveis de habitantes aleatórios da Internet, a grande maioria dos MP3 pirateados vinha de alguns poucos grupos organizados. Por meio de análise forense de dados, muitas vezes era possível rastrear os arquivos até a sua fonte primária”, escreveu Witt na introdução do livro.

Mas fuçando os arquivos do governo estadunidense, ele chegou a um bocado de nomes de pessoas processadas por pirataria pelo Departamento de Justiça. Um deles chamou sua atenção: Dell Glover. Foi ele que vazou a maioria dos álbuns nos Esteites na virada do século.

Um nome. Um homem. Apenas um. Se você baixava músicas até 2007, é provável que só o tenha feito por conta dele. Witt correu pra entrevistá-lo e é por causa de Glover que o livro existe.

Sua história é fascinante. Mas o livro fala de como a música se tornou livre, gratuita, e não como alguém vazava discos. Tem a história do MP3 (que também rendeu essa história incrível) e tem o lado da indústria. É só o MP3, portanto, e como ele facilitou o processo de pirataria.

Glover não está mais no jogo, há muita gente envolvida nesse processo ainda, do Brasil à Suécia (resultando no legalmente inserido Spotify, o que resultou em outra forma de se distribuir música, algo diretamente ligado ao princípio do livro). E não só com música: quem são os Glovers das séries de TV, dos filmes, da pornografia, dos videogames (a maior indústria na atualidade)?

Porque Glover é o mais intrigante dos personagens. Muita gente vê Glover como uma espécie de Robbin Hood. Entretanto, ele também foi vítima de sua própria sana. Ele destruía dia a dia a indústria que o alimentava – seja oficialmente, no seu emprego, seja ilegalmente, com a pirataria física, que foi vendo minguar a clientela assim que a tecnologia avançava.

Num longo (longo!) artigo escrito pra revista New Yorker, Witt conta basicamente a história de Dell Glover, seu dia a dia, como ele fazia pra roubar os discos e qual sua importância no esquema, até o desfecho conhecido.

O texto e a história são tão bons, que demos aqui uma de Glover: roubamos o artigo e traduzimos sem pedir autorização (aconselha-se muito ler também essa entrevista pra Vice, até pra ver que nosso personagem já está atuando em outra frente). Mas ao contrário de Glover, a ideia é instigar o leitor a comprar o livro e tentar entender como chegamos até esse ponto da indústria. O personagem é só a ponta de um mecanismo que ninguém sabe exatamente como vai funcionar no futuro.

O HOMEM QUE QUEBROU A INDÚSTRIA MUSICAL
Texto: Stephen Witt
Tradução: Floga-se
Publicado originalmente em 27 de abril de 2015 no site da revista New Yorker (clique aqui pra ler o original)

Num sábado de 1994, Bennie Lydell Glover, um empregado temporário na fábrica de CDs da PolyGram em Kings Mountain, Carolina do Norte, Esteites, foi a uma festa na cada de um companheiro de trabalho. Ele estava tentando ser efetivado e a festa era uma chance de interagir com seus chefes. Naquela noite, o anfitrião colocou algumas músicas pra todo mundo dançar. Glover, sempre presente nos clubes de Charlotte, a uma hora de distância, nunca tinha ouvido tais músicas antes, embora ele curtisse o trabalho de muitos daqueles artistas.

Depois, Glover percebeu que o anfitrião havia roubado aquelas músicas da fábrica. Ficou surpreso. A política da fábrica dizia que todos os empregados deveriam assinar um termo “de tolerância zero ao roubo”. Ele sabia que os chefes da fábrica estavam preocupados com vazamentos, e ouviu dizer sobre empregados sendo presos por desvio de produtos. Mas naquela festa, até em frente aos supervisores, parecia óbvio que os discos haviam vazado. Ali, Glover tomou conhecimento de um comércio subterrâneo de discos em pré-lançamento. “Nós rodamos esses discos na fábrica durante a semana, e eles estavam no mercado alternativo no final de semana”, ele disse. “Foi um vazamento da fábrica”.

A fábrica era grande, com mais de noventa mil metros quadrados de área. Novos discos eram lançados nas lojas às terças-feiras, mas eles precisavam ser prensados, empacotados e embrulhados com semanas de antecedência. Num dia corrido, a fábrica produzia um quarto de milhão de CDs. Sua linhagem era nobre: a PolyGram era uma divisão da gigante holandesa Philips, a co-inventora do CD.

Um dos companheiros de trabalho de Glover era Tony Dockery, outro empregado temporário. Os dois trabalhavam em pontas opostas da máquina de embalagem, uns três metros de distância entre eles. Glover era um “dropper”: ele alimentava a máquina com as caixas de discos. Dockery era um “boxer”. ele embalava os discos em caixas pra transporte. Cada um recebia dez dólares por hora.

Glover e Dockery logo se tornaram amigos. Moravam na mesma cidade, Shelby (22 quilômetros de Kings Mountain), e Glover começou a dar carona pra Dockery pro trabalho. Eles gostavam do mesmo tipo de música. Ganhavam o mesmo dinheiro. Mais importante, eram ambos fascinados por computadores, um interesse pouco comum pra trabalhadores da Carolina do Norte no começo dos anos 1990 – o mais usual ali era comprar um rifle do que um computador. O pai de Glover tinha sido mecânico, e seu avô, fazendeiro e, depois, arrumava televisores. Em 1989, quando Glover tinha quinze anos, ele foi até a Sears e comprou seu primeiro computador: um PC de dois mil e trezentos dólares, com um monitor de uma cor. Pagou a prazo, com a ajuda da sua mãe. Mexendo com a máquina, Glover desenvolveu um conhecimento em montagem de hardware, e começou a ganhar uma grana arrumando computadores de amigos e vizinhos.

Na época da festa, ele estava experimentando o nascimento da cultura da Internet, usando a conexão da America Online (AOL). Logo, Glover também comprou um gravador de CD, um dos primeiros produzidos pra consumidores caseiros. Custou algo em torno de seiscentos dólares. Começou a fazer mixtapes de músicas que ele já possuía, e vendia pros amigos. Mas o gravador de CD demorava quarenta minutos pra gravar uma única cópia, então o negócio andava devagar.

Glover começou a considerar roubar CDs da fábrica. Conhecia alguns empregados que estavam fazendo isso, e um disco em pré-lançamento, de um artista de ponta, copiado pra um disco virgem, podia ser valioso (de fato, executivos naquela época viam esse como o grande risco do negócio). Mas a PolyGram não tinha uma oferta muito boa de artistas. A companhia tinha uma boa posição de dominância no segmento “adulto contemporâneo”, mas o tipo de pessoa que comprava os CDs fora do mercado não queria Bryan Adams e Sheryl Crow. Queria Jay Z, e isso a fábrica não tinha.

Por volta de 1996, Glover, conhecido como Dell, foi efetivado na fábrica, com aumento de salário, benefícios, e a possibilidade de fazer mais horas extras. Ele começou dobrando os turnos, voluntariamente, pra cada brecha que se abria. “Não podíamos permitir que ele trabalhasse mais do que seis dias consecutivos, mas ele tentava”, disse Robert Buchanan, um dos seus ex-chefes.

As horas extras possibilitavam que ele fizesse novos aquisições. No outono de 1996, a Hughes Network System ofereceu o primeiro acesso à Internet de banda larga via satélite. Glover e Docker assinaram o serviço imediatamente. O serviço oferecido tinha velocidade de 400Kb por segundo, sete vezes a velocidade da conexão discada.

Glover deixou a AOL pra trás. E ele logo percebeu que a verdadeira ação estava nas salas de bate-papo. A rede Internet Relay Chat (IRC) era não-comercial, mantida por universidades e pessoas físicas, e sem responder por determinados padrões de conduta. Você criava seu username e se juntava a um canal, indicado pelo jogo-da-velha: “#politics, #sex, #computers. Glover e Dockery se tornaram viciados em bate-papos; às vezes, mesmo depois de passar o dia inteiro juntos, eles ficavam na mesma sala de bate-papo após o trabalho. No IRC, Dockery era “St. James”, ou, às vezes, “Jah Jah”. E Glover era “ADEG”, ou, com menos frequência, “Darkman”. Glover não tinha passaporte e mal tinha saído do sul dos Esteites, mas o IRC lhe dava a oportunidade de interagir com estrangeiros do mundo inteiro.

Além do mais, ele podia compartilhar arquivos. Online, arquivos pirateados eram conhecidos como “warez”, derivado de “software”, e eram distribuídos através de uma subcultura que datava de pelo menos 1980, e que era chamada de “Cena Warez”. A Cena era bem organizada digitalmente em pequenos grupos, o que fez com que um ou outro corresse pra ser o primeiro a colocar novos materiais nos canais IRC. Softwares eram frequentemente disponibilizados no mesmo dia em que eram oficialmente lançados. Às vezes, era possível, ao hackear os servidores das empresas, ou através de um funcionário, piratear um pedaço do software antes dele estar disponível nas lojas. Ser uma fonte de vazamento antes do lançamento valia o prêmio máximo entre os piratas digitais: figurar entre a “elite”.

Lá pelo meio dos anos 1990, a Cena se movia entre a pirataria de softwares e revistas, pornografia, fotos e até fontes de computador. Em 1996, um membro da Cena com o nome de “NetFraCk” começou um novo grupo, o primeiro em pirataria com MP3: CDA, que usava o recém-surgido modelo MP3, um formato que permitia encolher os arquivos de música em mais de noventa por cento. Em 10 de agosto de 1996, CDA lançou no IRC o primeiro arquivo “oficialmente” pirateado em MP3 da Cena: “Until It Sleeps”, do Metallica. Em semanas, havia muitos grupos rivais no IRC e milhares de canções pirateadas.

Vídeo oficial de “Until It Sleeps”:

A primeira visita de Glover a um canal de troca de MP3 veio em seguida. Ele não sabia exatamente o que era um MP3 ou quem estava fazendo os arquivos. Ele só baixou um software pra tocar MP3, e pediu aos administradores do canal pra baixar arquivos. Poucos minutos depois, ele já tinha uma pequena biblioteca de músicas em seu computador.

Uma das canções era “California Love”, de Tupac Shakur, o single que se tornou sucesso inevitável, depois da morte de Tupac, algumas semanas antes, em setembro de 1996. Glover adorava Tupac, e quando o disco “All Eyez On Me” apareceu na fábrica da PolyGram, num acordo especial de distribuição da Interscope Records, ele chegou a embalar alguns discos. Agora, ele tocava o MP3 de “California Love”.

Vídeo oficial de “California Love”:

No trabalho, Glover fabricava CDs pro consumo de massa. Em casa, ele gastava mais de dois mil dólares em gravadores e outros hardwares pra produzi-los individualmente. Sua sobrevivência dependia da demanda continuada pelo produto. Mas Glover teve de se perguntar: se o MP3 podia reproduzir Tupac e se Tupac podia ser distribuído de graça, na Internet, pra que diabos servia um CD?

Em 1998, a Seagram anunciou que estava comprando a PolyGram da Philips e se fundindo com a Universal. O acordo incluía toda a rede mundial de prensagem e distribuição, inclusive a fábrica de Kings Mountain. Os empregados ficaram nervosos, mas a gerência pediu que não se preocupassem; a fábrica não estava fechando, mas crescendo. A indústria da música estava experimentando um período lucrativo sem igual, cobrando mais de quatorze dólares por um CD que custava menos de dois dólares pra ser feito. Os executivos da Universal achavam que esse cenário ia continuar. No prospecto de aquisição da PolyGram, eles não mencionaram o MP3 entre as ameaças ao negócio. Entendiam demais do negócio…

As linhas de produção foram aumentadas pra produzir meio milhão de CDs ao dia. Havia mais mudanças, mais horas extras, e mais música. A Universal, parece, havia conquistado o mercado de rap. Jay Z, Eminem, Dr. Dre, Cash Money – Glover embalou ele mesmo os discos deles.

Seis meses depois da fusão, Shawn Fanning, um estudante de dezoito anos, da Universidade Notheastern, inaugurou sua própria plataforma de compartilhamento de arquivos, o Napster. Fanning gastou sua adolescência nos mesmos subterrâneos do IRC que Glover e Dockery, e ficou impressionado com a ineficiência dos métodos de distribuição. O Napster tomou o lugar do IRC com um servidor central de “peer-to-peer” que permitia às pessoas trocar arquivos diretamente. Em um ano, o serviço tinha dez milhões de usuários.

Antes do Napster, um disco vazado causava danos apenas locais. Agora, era uma catástrofe. A Universal lançava álbuns com uma promoção pesada e caras campanhas de marketing: vídeos, rádios, televisão, e apresentações em programas de entrevistas na TV (os late-nights). A disponibilidade da música no pré-lançamento na Internet interferia no processo, desperdiçando meses de trabalho em publicidade e fazendo os artistas se sentirem traídos.

Até mesmo antes do lançamento do Napster, a fábrica começou a implantar um regime anti-furto. Steve Van Buren, que gerenciou a segurança da fábrica, pressionou por melhores sistemas ainda antes da fusão com a Universal, e ele instituiu um sistema de revista randômica.

Van Buren conseguiu que alguns contrabandistas fossem pegos e desligados. A gerência da fábrica tinha ouvido falar de um técnico que tinha tocado músicas em festas antes do lançamento delas, e Van Buren pediu que ele passasse pelo detector de mentiras. Ele não passou no teste e foi demitido. Mesmo assim, Glover ainda tinha contatos confiáveis na fábrica pra vazar discos. Um deles conseguiu sair com trezentos discos e os vendeu a cinco dólares cada. Mas esse era um comércio exclusivo, e poucos funcionários tinham conhecimento dele.

Nesse tempo, Glover havia construído uma torre de sete gravadores de CD, que ficava ao lado do seu computador. Ele podia produzir trinta cópias por hora, o que fez o processo ficar mais lucrativo, então ele percorria outras redes “warez” pra vender mais material: jogos Playstation, softwares, arquivos MP3 – qualquer coisa podia ser queimada num disco e vendida por alguns dólares.

Ele focou especialmente em filmes, por cinco dólares cada. Uma nova tecnologia de compressão podia diminuir um filme pra caber num único CD. A qualidade de vídeo era ruim, mas o negócio cresceu rápido, e logo ele tava comprando CDs a granel. Ele comprou uma impressora de etiquetas, e uma impressora a cores pra fazer maquetes de pôsteres de cinema. Preencheu uma pasta preta de nylon com imagens dos pôsteres e usou como catálogo de vendas. Meteu tudo no seu porta-malas e vendia os filmes direto do seu carro.

Glover ainda considerava muito arriscado vencer CDs vazados da fábrica. No entanto, ele gostava de se manter em dia com a música, e os contrabandistas o tinham como um cliente. Ele era um empregado fixo sem nenhum antecedente e um interesse em tecnologia, mas fora da fábrica sua reputação era enorme. Ele tinha uma moto de corrida japonesa, tinha várias pistolas e sua tatuagem era da Morte.

Seu colega Dockery, ao contrário, era muito careta pros contrabandistas, mas começou na pirataria também e passou a atazanar Glover pra supri-lo com os CDs vazados. Além disso, Dockery achava arquivos online que Glover não conseguia: filmes que ainda estavam nos cinemas e jogos de PlayStation que só iriam ser lançados em alguns meses.

Por um tempo, Glover trocou seus CDs vazados pelos softwares e filmes de Dockery. Mas logo ele ficou cansado de ser o correio de Dockery e perguntou o motivo dos discos serem tão valiosos pra ele. Dockery o convidou pra ir a sua casa, e mostrou que no último ano, ficou oferecendo os discos vazados de Glover pra uma rede ainda mais obscura no IRC, conseguindo ser aceito no grupo mais respeitado, o Rabid Neurosis, ou RNS.

Ao invés de piratear canções, o RNS estava pirateando discos inteiros, trazendo a mentalidade de softwares pirateados pra música. O objetivo era se antecipar à data oficial de lançamento, o que significava uma campanha de infiltração contra as grandes gravadoras.

O líder do RNS atendia pelo nome de “Kali”. Ele era mestre em vigilância e infiltração. Parece que gastava horas toda semana pesquisando e conhecendo as aquisições e acordos de prensagem que determinaram onde e quando um CD podia ser fabricado. Com essa informação, ele construiu uma rede que, nos oito anos seguintes, permitiu se infiltrar na rede de fornecedores de cada grande gravadora. “Esse material era a vida dele, porque ele sabia sobre todas as datas de lançamentos”, disse Glover.

Dockery – conhecido por “Kali” como “St. James” – foi a primeira grande chance. De acordo com documentos do processo, Dockery encontrou diversos membros do RNS numa sala de bate-papo, incluindo “Kali”. Ali, ele sabia quais os pré-lançamentos eram os desejos do grupo. Ele logo se juntou ao RNS e se tornou uma de suas melhores fontes. Mas, quando sua família começou a interferir, ele propôs a Glover que tomasse seu lugar.

Glover hesitou.

Entendeu que “Kali” era apenas um canal pra servidores secretos mais parrudos que formavam a espinha dorsal da Cena. Os servidores ultra-rápidos continham os melhores arquivos pirateados. Os servidores da Cena ficavam bem escondidos, e o acesso era permitido apenas pra endereços pré-aprovados. A Cena controlava todo seu inventário de maneira mais rígida do que a própria Universal.

Se Glover topasse subir seus CDs contrabandeados da fábrica pra “Kali”, ele teria acesso a esses servidores secretos e jamais teria que pagar por mídia de novo, filmes, música etc. Ele poderia ouvir o novo disco do Outkast semanas antes que qualquer um pudesse. Ele poderia jogar Madden NFL no seu PlayStation um mês antes de estar disponível nas lojas. E ele poderia ver os mesmos filmes que permitiram a Dockery ser reconhecido como um bom contrabandista.

Dockery arranjou uma sessão de bate-papo entre Glover e “Kali”, e os dois trocaram números de celular. Nas primeira ligação, Glover basicamente só escutou. “Kali” falou empolgado, bradando termos geeks, de um jeito californiano e com gírias roubadas do rap da costa oeste. Ele adorava computadores, assim como hip-hop, e conhecia todas as rixas entre artistas de diferentes selos. Sabia também que na sequência dos assassinatos de Tupac e Notorius B.I.G., aquelas rixas iam se acalmar. Def Jam, Cash Money e Interscope, todos tinham assinado acordos de distribuição com a Universal. A pesquisa de “Kali” continuava levando-o à fábrica de Kings Mountain.

Ele e Glover discutiram os detalhes de sua parceria. “Kali” rastrearia as datas de lançamento dos discos e diria a Glover qual material mais interessava. Glover contrabandearia os discos da fábrica. Ele então riparia os CDs vazados pra MP3 e, usando os canais codificados, enviaria pro computador pessoal de “Kali”. “Kali” arrumaria os MP3 de acordo com os padrões técnicos da Cena e jogaria tudo nos sites secretos.

O acordo soou bacana pra Glover, mas pra atender às solicitações de “Kali” ele tinha que conseguir álbuns novos da fábrica com mais frequência, três ou quatro vezes por semana. Seria difícil. Além da revista randômica, uma cerca foi erguida ao redor da fábrica. Saídas de emergência ganharam alarmes. Laptops eram proibidos na fábrica, assim como estéreos, tocadores portáteis, qualquer coisa que pudesse aceitar e ler um CD.

De vem em quando, aparecia um lançamento famoso – “The Eminem Show”, ele lembra, ou “Country Grammar”, do Nelly. Chegava numa limusine de vidros filmados, vindo do estúdio de produção numa maleta, carregada por alguém que jamais tirava os olhos da master. Quando um desses discos eram prensados, Van Buren mandava que revistassem todos os funcionários da fábrica.

As máquinas de prensagem eram controladas digitalmente e geravam um código de barras pra cada disco. A administração da fábrica gerava um relatório, rastreando cada CD impresso e qual tinha de fato sido enviado, e qualquer discrepância tinha que ser notificada. A fábrica agora podia rodar mais de meio milhão de cópias de um disco popular num só dia, mas o inventário podia ser rastreado no nível uma única cópia.

Empregados como Glover, que trabalhavam na linha de embalagem, tinham sorte quando se tratava de contrabandear CDs. Mais a frente da linha de produção, os discos ganhariam código de barras e estariam no inventário; antes, eles não tinham acesso ao produto final. A essa altura, a linha de empacotamento se tornara bastante complexa. A grande vantagem de um CD sobre o MP3 era a satisfação de ter um produto físico em mãos. A Universal de fato vendia essa embalagem. A arte do disco se tornara um ornamento. Os discos eram dourados ou fluorescentes, as caixas eram em azul ou roxo opaco, e a capa eram livretos em papel de alta qualidade. Dúzias, às vezes centenas, de discos extras eram impressos em cada prensagem, pra serem usados como substitutos em caso de dano durante a embalagem.

No final de cada turno, os empregados colocavam esse excesso de discos em caixas de sucata. Essa sucata mais tarde era levada ao moedor de plástico, onde os discos eram destruídos. Por anos, Glover teve centenas de discos perfeitamente bons naquelas lixeiras, e ele sabia que o moedor não tinha memória ou gerava qualquer tipo de registro. Se fossem vinte e quatro discos pra moagem e apenas vinte e três passassem por ali, ninguém haveria de saber.

Então, no caminho entre a esteira ao moedor, um empregado poderia tirar sua luva cirúrgica enquanto pegava um disco. Ele poderia esconder o disco na luva. Todo o resto seria destruído. Ao final de seu turno, ele voltaria ali, pegaria aquela luva com o disco e pronto.

Ainda restavam os seguranças. Mas, claro, também havia opções. Uma delas envolvia fivelas de cinto. Elas eram o acessório da moda na pequena cidade da Carolina do Norte. Muitas pessoas na fábrica usavam – grandes medalhões ovais. As fivelas sempre apareciam no rastreador, mas os guardas jamais iam pedir pra alguém tirá-las. Os discos eram colocados atrás dessas fivelas.

A partir de 2001, Glover era o maior vazador de música. Ele alega que nunca contrabandeou os CDs ele mesmo. Ao invés disso, ele tinha em mãos uma rede de funcionários mal remunerados e temporários. Oferecia dinheiro ou filmes em troca de discos vazados da fábrica. Em pouco tempo, Glover conseguiu ser promovido, o que permitiu com que ele agendasse os turnos na linha de embalagem. Se um lançamento premiado chegasse à fábrica, ele podia garantir que um homem de sua confiança estaria lá.

O padrão de qualidade levou a um aumento de trabalho na fábrica da Universal. Semanas antes de qualquer um, Glover já tinha os álbuns mais quentes do ano. Ele ripava os discos em seu PC com um software que “Kali” havia mandado, e devolvia os arquivos. Por telefone, eles agendavam o calendário dos vazamentos.

Glover deixava a distribuição pra “Kali”. Ao contrário de muitos membros da Cena, ele não participou de discussões técnicas acerca da taxa de bits ser variável ou constante. Ele ouvia os discos, mas frequentemente se enchia depois de uma ou duas audições. Quando isso acontecia, ele guardava o disco num armário e deixava lá.

Em 2002, seu arsenal tinha mais de quinhentos discos, incluindo quase todo grande lançamento que passou pela fábrica de Kings Mountain. Glover vazou “500 Degreez”, de Lil Wayne e “The Blueprint”, de Jay Z. Ele vazou “Rated R”, do Queens Of The Stone Age e “Away From The Sun”, do 3 Doors Down. Ele vazou Björk. Vazou Ashanti. Vazou Ja Rule. Vazou Nelly. Vazou “Take Off Your Pants And Jacket”, do Blink-182.

Glover não tinha acesso a grandes vendedoras como Celine Dion e Cher. Mas seus álbuns eram os mais procurados pela grupo demográfico que importava: a geração Eminem.

O típico participante da Cena era homem e viciado em computador, entre quinze e trinta anos. “Kali” – cujos artistas favoritos eram Ludacris, Jay Z e Dr. Dre – era o exemplo perfeito. Pra Glover, o ponto alto de 2002 foi maio, quando ele vazou “The Eminem Show” vinte e quatro dias antes do lançamento oficial. O vazamento foi direto dos sites da Cena pras redes peer-to-peer em horas e, embora o disco tenha se tornado o grande sucesso de vendas do ano, Eminem foi forçado a mudar a data de lançamento.

Todos os lançamentos da Cena eram acompanhados por um arquivo “NFO” (de “info”), um texto ASCII que servia como assinatura do grupo. Arquivos NFO eram uma maneira da Cena se gabar, destacar associados importantes e anunciar potenciais recrutas. Algo assim:

TEAM RNS PRESENTS
ARTIST: Eminem
TITLE: The Eminem Show
LABEL: Aftermath
RIPPER: Team RNS
192 kbps-Rap
1hr 17min total-111.6 mb
RELEASE DATE: 2002-06-04
RIP DATE: 2002-05-10

A linha mais importante era a data em que o disco foi ripado, que enfatizava a antecipação do vazamento. “Kali” escreveu muitas notas de lançamento ele mesmo, num tom sarcástico, muitas vezes provocando grupos rivais. “The Eminem Show” terminava com a pergunta: “quem mais você acha que conseguiria esse?”.

Vídeo oficial de “Sing For The Moment”:

Quem era “Kali”? Glover não tinha certeza, mas conforme o relacionamento deles evoluía, ele foi pegando algumas pistas. O código de área de “Kali” era 818, da região de Los Angeles. A voz ao fundo que Glover às vezes ouvia no telefone soava como se fosse a mãe dele. Também havia uma folha de maconha no emblema oficial do RNS: Glover achava que podia dizer quando “Kali” estava doidão. O mais impressionante era a arrogância hip-hop exagerada que afetava “Kali”.

“Kali” só se referia a Glover como “D”. Ninguém mais o chamava assim.

Glover suspeitava que, pelo jeito forçado de falar, como uma forçada gíria malandra, que “Kali” não era negro, embora também não parecesse ser branco.

Glover não tinha permissão pra interagir com outros membros do grupo, nem mesmo com aquele que era chamado de “coordenador de ripagem”. Esse era “RST”, cujo nome era Simon Tai. De uma segunda geração de imigrantes chineses, Tai chegou à Califórnia, antes de aportar na Universidade da Pensilvânia, em 1997. Como um calouro com conexão à Internet, ele sempre foi relevante no RNS. Depois de ficar no grupo de bate-papo por um ano, acabou sendo convidado a participar do RNS.

Ele também se candidatou a uma vaga de DJ na rádio da escola. Por dois anos, “Kali” cultivou o interesse de Tai no rap e convenceu-o a fazer contatos com o pessoal de marketing de vários selos. Em 2000, Tai, já um veterano na universidade, foi promovido a diretor da estação e ganhou a o acesso a discos promocionais. Todo dia, ele checava os e-mails da estação, e quando algo bom aparecia, ele corria pro dormitório dele e subia o disco. Bater um rival na Cena, às vezes, era uma questão de segundos.

Tai conseguiu dois grandes vazamentos naquele ano, “Back For The First Time”, de Ludacris; e “Stankoni”, do Outkast. Com suas credenciais da Cena estabelecidas, pelos próximos dois anos, Tai gerenciou os vazamentos da RNS. Junto com “Kali”, ele monitorou as agendas de distribuição das gravadoras e direcionou seus esforços pra ficar de olho em certos álbuns.

Pra achar os discos, o RNS tinha contatos internacionais de vários níveis, que se logavam anonimamente. De acordo com o testemunho no tribunal e entrevistas com membros da Cena, havia DJs de rádio: “Bidi”, no sul; “DJ Rhino”, no meio-oeste. Havia jornalistas britânicos. Havia “DaLive1”, um aficionado em house-music que morava em Nova Iorque, e usava seus contatos dentro da Viacom como fonte de vazamentos, na Black Entertainment Television e na MTV. Havia dois irmãos italianos, que dividiam o nome “Incuboy”, que diziam ser sócios de uma empresa de marketing promocional pro meio musical e tinham acesso a lançamentos da Sony e da Bertelsmann. No Japão, os discos às vezes eram lançados uma ou duas semanas antes dos Esteites, frequentemente com faixas extras, e Tai convocava “kwe21” e “x23” como fontes ali. E, finalmente, havia os ripadores legais, como “Aflex” e “Ziggy”, que gastando o próprio dinheiro compravam música legalmente no dia em que os discos apareciam nas lojas.

O único agente que Tai não tratava era Glover – “Kali” manteve sua existência em segredo, até mesmo dos outros membros do grupo. Glover se ressentia do isolamento, mas ser a fonte privada de “Kali” valia a pena. Em qualquer momento da sua existência, o número de filiados à Cena não passou de algumas centenas de pessoas. “Kali” estava próximo ao topo. Um pirata típico da Cena, subornando funcionários de lojas e quebrando softwares, podia ter acesso a três ou quatro servidores. Em 2002, Glover tinha acesso a duas dúzias.

Seus contatos fizeram dele um incomparável contrabandista de filmes. Ele construiu outra torre pra substituir a primeira, com gravadores de DVDs ao invés de CDs. Acompanhava o rápido avanço da tecnologia. Ele aumentou a velocidade de conexão de sua Internet de satélite pra cabo. Baixou os mais populares filmes do servidores seguros da Cena então queimava uma dúzia de cópias pra cada. Expandindo sua base de clientes pra além de seus colegas de trabalho, começou a ser reconhecido nas redondezas como “the movie man”. Por cinco dólares, ele vendia o DVD de “O Homem-Aranha” semana antes de estar disponível na Blockbuster, às vezes enquanto ainda estava passando nos cinemas.

Glover começou vendendo entre duzentos e trezentos DVDs por semana, frequentemente fazendo mais de mil dólares em dinheiro. Comprou um segundo PC e outra torre de gravadores pra atender a demanda. Sabia que era ilegal, mas achava que não levantava suspeitas. Todas as transações eram cara a cara, nada era registrado, e ele nunca depositava os ganhos no banco. Ele não vendia música, DVDs não eram feitos na fábrica da Universal, e ele estava certo de que seus clientes nunca haviam ouvido falar da Cena.

A Cena construiu uma distinção entre a cultura de compartilhamento online de arquivos e contrabando visando o lucro. Os servidores eram vistos como algo permissível no mercado. Usá-los pra contrabando, ao contrário, era visto como uma violação grave dos princípios éticos. Pior, sabia-se que atrairia a atenção da lei. “Kali” deixou claro que qualquer um com suspeita de vender material dos servidores seria expulso do grupo. Assim, pros membros mais participativos no RNS era algo em que se perdia dinheiro. Eles gastavam centenas de dólares ao ano em CDs, e milhares em servidores e equipamento, não tinham esperança de retorno.

Glover era uma exceção: ele sabia que não seria expulso assim do nada. Com os artista de rap da Universal em alta, “Kali” precisava de Glover.

O Napster original durou apenas dois anos, mas no seu auge o serviço diz ter tido mais de setenta milhões de contas registradas, com usuários compartilhando mais de dois bilhões de arquivos de MP3 ao mês. A pirataria musical se tornou pros dois primeiros milhares de usuários o que a experiência com as drogas teria sido no final dos anos 1960: uma geração com amplo desrespeito às normas sociais e às leis, com pouca preocupação pras consequências. No final de 1999, a Recording Industry Association Of America (RIAA), a associação de classe das gravadoras, processou o Napster, alegando que a empresa facilitava a violação de direitos autorais em escala sem precedentes. Napster perdeu o processo, apelou, e perdeu de novo. Em julho de 2001, diante de uma ordem judicial, o Napster fechou as portas.

Aquela vitória legal pouco teve efeito. Os antigos usuários do Napster viam o compartilhamento de arquivos pela Internet como uma prerrogativa inegável, e em vez de voltar pras lojas de discos, eles foram pros braços dos similares do Napster, como o Kazaa e o Limewire. Em 2003, a indústria se viu diante de sua maior queda no mercado, em mais de quinze por cento. As perdas continuaram pela próxima década.

RIAA tentou reafirmar sua primazia nos direitos autorais. Mas ações civis contra serviços peer-to-peer levaram anos através das várias cortes de apelação, e a política da RIAA de processar individualmente os compartilhadores se mostrou um desastre. Pra algumas gravadoras, o congresso estadunidense parecia inclinado a ajudar. Harvey Geller, representando a Universal, passou anos tentando persuadir os legisladores por uma lei mais rígida de direitos autorais. “Os congressistas tendem a agradar seus eleitores”, disse Geller, “e havia mais eleitores roubando música do que vendendo”.

Já o vazamento foi visto de forma diferente. Ninguém estava defendendo o contrabandista. Os vazadores aderiram a um rígido código de silêncio. Os grupos da Cena foram a fonte de quase todos os novos lançamentos disponíveis nas redes peer-to-peer, mas a maioria dos compartilhadores e usuários nem suspeitavam da sua existência. Tal briga legal seria impossível: ao contrário do Kazaa, o RNS não tinha endereço comercial pra onde uma intimação pudesse ser enviada. Somente processos criminais poderiam funcionar.

Em janeiro de 2003, Glover vazou a estreia oficial de 50 Cent, “Get Rich Or Die Tryin'”, pra “Kali”. Se tornou o álbum mais vendido nos Esteites naquele ano. Ele vazou também os discos de Jay Z, G Unit, Mary J. Blige, Big Tymers e Ludacris, e continuou no ano seguinte com o disco de estreia de Kanye West, “The College Dropout”. Depois de um susto, no qual Glover ficou preocupado que um lançamento pudesse ser ligado a ele, o momento dos vazamentos se tornou mais e mais o foco da questão. Os vazamentos de Glover começaram a bater na Internet duas semanas antes dos CDs chegarem às lojas, nem tão cedo que pudessem ser rastreados pela fábrica, nem tão tarde a ponto do RNS ser ultrapassado por outros piratas.

Em abril de 2004, o FBI e uma força-tarefa internacional identificaram uma centena de piratas. A unidade anti-pirataria da RIAA contava com investigadores que se infiltravam em salas de bate-papo da Cena e aprendiam sua linguagem. Eles tentaram entrar na Cena e rastrear o material vazado e sua disseminação na Internet. Sua procura mostrou a eles um grupo incrivelmente poderoso, o RNS, e eles compartilharam seus achados com o FBI.

Em dezembro de 2004, um artigo na Rolling Stone, escrito por Bill Werde, apresentou o RNS ao público em geral. O título da matéria era “CD Leaks Plague Record Biz” (“Vazamentos de CDs Assolam a Indústria Fonográfica”). “Em um período de quatro dias, um grupo vazou CDs do U2, do Eminem e do Destiny Child”, era o que avisava o subtítulo da matéria. Segundo o livro “Como A Música Ficou Grátis”, Witt diz que a equipe do rapper Eminen acreditava que o disco havia sido vazado ao ir pras distribuidoras, que levam os álbuns das fábricas de prensagem pra cadeias como o Wal-Mart. Mas a fonte estava errada. O CD vazado não viera da distribuidora, mas da própria fábrica de prensagem. Viera de Dell Glover”.

Três dias depois da matéria, Glover vazou “How To Dismantle An Atomic Bomb”, do U2.

Com a maior atenção, “Kali” decidiu retirar dos arquivos NFO do grupo qualquer possibilidade de identificação; a partir de agora, os arquivos só informavam a data que o disco havia sido ripado e a data que estava previsto pra chegar às lojas.

“Kali” achou melhor que o canal do RNS no IRC fosse mudado dos servidores públicos do IRC pra um computador no Havaí. Ele instruiu membros a se comunicarem apenas através desse canal, que era encriptado, banindo bate-papos comuns, como da AOL. E reafirmou a proibição contra pirataria física. Mas Glover recusou seguir as regras da Cena. Ele continuava acumulando CDs no seu armário. Não estava mais interessado em música, ou em ganhar pontos com algum grupo da Internet. Só o que importavam eram os servidores. Quanto mais ele pudesse participar, mais filmes ele podia baixar e mais DVDs ele podia vender.

Numa boa semana, Glover poderia vender trezentos discos, e fazer mil e quinhentos dólares em grana. E começou a diversificar. No início de cada semana, deixava quatrocentos discos em cada um dos três barbeiros que ele confiava em Shelby. No final da semana, ele voltava e coletava sua parte, de seiscentos dólares, por loja, totalizando mil e oitocentos dólares. Seu melhor vendedor fazia mais grana vendendo filmes do que cortando cabelo. Ao ver os lucros de Glover subindo, outros contrabandistas seguiram pra seu território. Mas Glover era imbatível, graças ao acesso que ele tinha aos filmes e novidades.

Muitos dos melhores clientes de Glover trabalhavam na fábrica, e pra aqueles que ele confiava mais, separava os melhores negócios. Ao invés de pagar cinco dólares por filme, o cliente podia pagar uma assinatura mensal de vinte dólares e ter o filme que ele quisesse – ninguém precisava dos discos mesmo… Glover tinha criado seu próprio servidor, e uma vez que você tivesse assinado o serviço, podia baixar o que quisesse. Havia DVDs, as últimas cópias de jogos, música, software, e mais. Na época, vídeo on demand era uma tecnologia do futuro, mas, se você conhecesse Glover, essa tecnologia já havia chegado. Ele estava administrando um Netflix pessoal de dentro da sua própria casa.

Glover começou a fazer compras extravagantes. Ele comprou consoles de videogame e presentes pra seus amigos e familiares. Comprou uma moto off-road. Comprou um carro usado e colocou faróis de xenon e um aparelho de som caro.

Em 2005, o RNS vazou quatro dos cinco discos mais vendidos dos Esteites. O número 1 e número 2 foram ocupados por “The Emancipation Of Mimi”, da Mariah Carey; e “The Massacre”, do 50 Cent. Glover vazou os dois. Os vazamentos do RNS rapidamente chegaram às redes de compartilhamento públicas, e, em quarenta e oito horas do aparecimentos nos servidores da Cena, cópias dos CDs pirateados podiam ser achados em iPods do mundo inteiro.

Ao final de 2006, Glover havia vazado perto de dois mil CDs. Ele não tinha mais medo de ser pego. Universal havia vendido suas empresas de manufatura de CDs, o que permitiu à companhia observar o deterioramento da mídia física de uma distância segura. Embora ainda com contrato pra prensar música pra Universal, o novo dono tratou a fábrica como algo sem futuro e parou de fazer manutenções. Os músicos contratados da Universal reclamaram do vazamento de discos, mas a cadeia da gravadora estava insegura como sempre fora.

Embora o RNS ainda fosse bem sucedido, muitos dos seus membros estava se desligando das atividades. Quando o grupo começou, em 1996, a maioria dos participantes era adolescente. Agora, beirava os trinta, e o glamour estava esvaecendo. Eles saíram de seus empregos em estações de rádio universitárias e encontraram terreno mais lucrativo no jornalismo musical, perdendo seus acessos a discos com antecipação.

Ouvir centenas de novos lançamentos todos os anos pode levar a um certo tipo de cinismo. Todos os músicos usavam Auto-Tune pra corrigir suas vozes; os compositores já copiavam seu último sucesso; os mesmos produtores trabalhavam nas mesmas faixas. Glover não se conectava com o rap da forma que costumava. Tony Dockery tinha renascido e só ouvia gospel. Simon Tai continuava pelo canal de bate-papo, mas ele não vazava mais discos havia anos. Até mesmo “Kali” parecia entediado.

Glover pensou em se retirar da Cena. Ele começou a vazar discos com vinte e poucos anos. Tinha agora trinta e dois. Tinha usado o mesmo corte de cabelo por dois anos, e vestido a mesma camiseta e jeans, mas sua ideia sobre si mesmo havia mudado. Ele não lembrava porque tinha atração por motos, ou porque achava necessário ter uma arma. E achava a tatuagem da Morte um tanto estúpida.

Seus lucros com DVD começaram a cair. Vazamentos da Cena estavam agora no domínio público poucos segundos depois de chegar aos servidores, e até aqueles que não se davam tão bem com tecnologia descobriam como baixar os filmes. Num par de anos, a renda do contrabandista Glover caiu pra algumas centenas de dólares por semana.

Glover falou sobre o que achava pra “Kali”. “Estamos fazendo essa merda por muito tempo”, disse ao telefone. “Nunca fomos pegos. Talvez seja hora de parar”. Surpreendentemente, “Kali” concordou. Embora a segurança da fábrica fosse cada vez menor, os riscos pros vazadores era grande. Entre a força-tarefa estrangeira, o FBI e a RIAA, havia um monte de equipe de investigadores trabalhando pra pegá-los. “Kali” já havia visto a força da lei funcionando. Alguns dos alvos das diligências de 2004 eram seus amigos, e ele foi visitá-los na prisão.

Então, em janeiro de 2007, um dos servidores do RNS misteriosamente sumiu. O servidor, hospedado na Hungria, começou a recusar todas as conexões, e a companhia que era dona não respondia. “Kali” mandou fechar o grupo. O último vazamento do RNS, lançado em 19 de janeiro de 2007, foi “Infinity On High”, do Fall Out Boy, pego de dentro da fábrica de Glover. Logo depois, o canal RNS foi fechado pra sempre.

Em poucos meses, Glover mais uma vez vazou CDs da fábrica, pra um cara que ele conheceu como “RickOne”, líder de um grupo da Cena chamado OSC. Embora não fosse mais rentável pra Glover, seu desejo por mídias gratuitas não diminuiu. “Saber que eu poderia jogar Madden dois meses antes de chegar às lojas era pra mim o Paraíso”, disse me.

“Kali” não estava disposto a desistir, também. Depois de fechar o RNS, ele continuou a vazar álbuns, o que espantou até mesmo os veteranos da Cena. No verão de 2007, ele contatou Glover e lhe disse que havia dois vazamentos mais a fazer: novos discos do 50 Cent e Kanye West, ambos com a mesma data de lançamento. Os rappers estavam competindo pra ver qual vendia mais, e a rixa havia sido capa da Rolling Stone. 50 Cent disse que se perdesse, se aposentaria.

Mas, como “Kali” provavelmente sabia melhor que todo mundo, ambos os artistas eram distribuídos e promovidos pela Universal. O que parecia ser um briga do hip-hop das antigas era publicidade pra incrementar as vendas, e “Kali” estava determinado em se envolver nisso. RNS havia vazado todos os lançamentos e vazar “Curtis”, do 50 Cent, e “Graduation”, do Kanye West, era uma questão de tradição.

O lançamento oficial estava marcado pra 11 de setembro de 2007, mas os discos foram primeiramente prensados na fábrica em agosto. Glover conseguiu-os na sua rede de contrabandistas e ouviu os dois. Glover curtiu ambos os discos, mas ele estava numa posição pouco usual: ele tinha o poder de influenciar nessa briga. Se ele vazasse “Graduation” e segurasse “Curtis”, Kayne poderia vender menos discos. Mas se eles vazasse “Custis” e segurasse “Graduation”… bem, ele faria 50 Cent se aposentar.

Glover decidiu que lançaria um disco por “Kali” e outro por “RickOne”. Ofereceu ao segundo o disco de Kanye West. Em 30 de agosto de 2007, “Graduation” apareceu nos servidores da Cena, com OSC levando crédito pelo vazamento. Horas depois, um angustiado “Kali” liga pra Glover querendo saber o que tinha acontecido. Glover responde que não tinha visto o disco na fábrica ainda, mas que “Curtis” havia chegado. Em 4 de setembro de 2007, “Kali” lança “Curtis” na Cena.

A Universal oficialmente lançou os discos em 11 de setembro. Apesar dos vazamentos, ambos venderam bem. “Curtis” vendeu mais de setecentas mil de cópias na primeira semana, e “Graduation” perto de um milhão. Kanye venceu, mesmo Glover tendo vazado seu disco antes. Ele havia acabado de fazer um experimento sobre os efeitos do vazamento nas vendas de música, um experimento que sugeria que, pelo menos nesse caso, um disco que foi vazado antes realmente se saiu melhor. Mas Glover estava feliz com o resultado. “Graduation” cresceu com ele. Ele gostou do disco de Kanye West, e achava que a vitória foi merecida. E 50 Cent não se aposentou afinal.

No dia seguinte, Glover foi pro trabalho às sete da noite, pra fazer um turno duplo, virando a noite. Terminou às sete da manhã. Enquanto se preparava pra sair, um colega puxou-o de lado: “tem alguém olhando sua caminhonete”.

Glover, então, à luz da manhã, viu três homens no estacionamento. Assim que se aproximou do veículo, tirou as chaves do bolso. Os homens olharam pra ele mas não se mexeram. Ele destravou a porta e só então os homens apontaram suas armas e falaram pra ele colocar as mãos na cabeça.

Os homens eram do da polícia local. Avisaram que o FBI estava revistando a casa dele naquele momento.

No jardim da frente, meia dúzia de agentes do FBI, com coletes à prova de bala, circulavam. A porta da casa havia sido aberta à força, e agentes estavam carregando milhares de dólares em tecnologia comprada ao longo dos anos. Ele encontrou um agente especial chamado Peter Vu esperando por ele lá dentro.

Vu, um veterano da agência, da divisão de crimes digitais, levou anos procurando a fonte dos vazamentos que estavam afetando a indústria da música. Seus esforços finalmente o levaram a essa casa normal, numa pequena cidade da Carolina do Norte. Ele se apresentou, e começou a pressionar Glover por informação. Vu estava particularmente interessado em “Kali”, e Glover passou os detalhes dispersos que tinha acumulado ao longo dos anos. Mas Vu queria o nome real de “Kali”, e, embora Glover tivesse falado com ele por telefone centenas de vezes, ele não sabia.

No dia seguinte, “Kali” ligou pra Glover. Estava agitado e nervoso. “Sou eu”, disse “Kali”. “Olha, acho que os federais estão atrás da gente”.

Vu antecipou a possibilidade de tal chamada e instruiu Glover a agir como se nada tivesse acontecido. Glover teve sua chance. Ele poderia ficar mudo e deixar a investigação seguir até “Kali”. Ou poderia avisá-lo.

“Chegou tarde”, disse Glover. “Eles me acharam ontem. Desligue”.

“Ok, entendi”, disse “Kali”. E então disse, “agradeço por isso”, e desligou.

Nos meses seguintes, o FBI fez muitas diligências, pegando “RickOne”, do OSC, e muitos membros do RNS. Também acharam um homem que acreditavam ser “Kali”, o homem que custou à indústria da música dezenas de milhões de dólares e transformou o RNS no mais sofisticado sistema de pirataria da história: Adil R. Cassim, um jovem de vinte e nova anos, tecnólogo da informação, que fumava maconha, ouvia rap, e vivia numa casa nos subúrbios de Los Angeles com sua mãe.

Em 9 de setembro de 2009, Glover chegou ao tribunal em Alexandria, Virginia, e foi indiciado por uma conspiração pra cometer delitos graves contra direitos autorais. Em seu indiciamento, Glover viu Adil Cassim pela primeira vez. Cassim estava com cabelos curtos e barba feita. Era pequeno, com uma considerável pança, e estava vestindo um terno preto.

Um mês depois, Glover se declarou culpado da acusação. A decisão foi difícil, mas Glover achava que suas chances de ser inocentado eram pequenas. Em troca de clemência, ele topou testemunhar contra Cassim. O FBI precisava de ajuda; a agência tinha minunciosamente revistado a casa de Cassim, e um time forense inspecionou seu laptop e não encontrou música alguma. Cassim não admitia ser membro do RNS, embora duas peças de evidência física sugeriam uma conexão com o grupo. Uma delas era um disco gravado, contendo uma cópia do currículo de Cassim, no qual, na aba “Propriedades” do Microsoft Word, havia o nome do autor do documento, Kali. A outra era o celular de Cassim, que continha o número de Glover. O nome nos contatos estava listado apenas como “D”.

O julgamento de Cassim começou em março de 2010, e durou cinco dias. Glover testemunhou, como o fizeram outros membros confessos do RNS, além de alguns agentes do FBI e técnicos em computação. Nos dez anos anteriores, o governo federal dos Esteites processou centenas de participantes da Cena, e ganhou quase todos os casos. Mas em 19 de março de 2010, depois de um curto período de deliberação, o júri declarou Cassim inocente (veja aqui).

Depois do julgamento, Glover passou a se arrepender de sua decisão de testemunhar e alegar culpa. Ele percebeu que talvez com uma defesa melhor ele pudesse também ser inocentado. Ele nunca teve certeza exata do estrago que os vazamentos causaram aos músicos, e chegou a considerar como algo menor que um crime.

“Veja o 50 Cent”, ele disse, “ele continua vivendo na casa de Mike Tyson. Ninguém no mundo pode feri-lo”. E continua: “é uma perda, mas também é uma forma de publicidade”.

No fim, Glover ficou três meses na prisão. Tony Dockery também se declarou culpado e passou três meses na prisão. Simon Tai nunca chegou a ser acusado de nada.

Nas suas sentenças, os advogados dos Departamento de Justiça escreveram: “RNS foi o mais infame e difundido grupo de pirataria da história, na Internet”. Em onze anos, RNS vazou mais de vinte mil discos. Durante boa parte desse tempo, o grupo teve em Glover seu melhor trunfo – mal havia uma pessoa com menos de trinta anos que não pudesse ligar sua coleção de música a ele.

No dia em que a casa de Glover foi invadida, os agentes do FBI confiscaram seus computadores, suas torres de duplicação, seus discos rígidos e seu PlayStation. Eles levaram algumas imagens de discos que ele coletou durante anos, mas deixaram pra trás o armário cheio de CDs – como evidência, eles eram inúteis.

Leia mais:

Comentários

comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.