OS DISCOS DA VIDA: BOREALIS

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O Borealis é consequência de uma paixão por música aflorada ainda na juventude e que foi crescendo e se diversificando com o passar dos anos. Pra quem nunca ouviu “Omnia”, o disco lançado em 2019 (leia resenha aqui), não faz ideia onde essa paixão levou Marco Antônio Barbosa, o Bart, cabeça pensante do Borealis.

Jornalista e escriba, Bart não se cansa em falar de seus discos preferidos e de histórias em torno dele: “nasci e cresci em São Gonçalo, a cerca de 30 km do Rio de Janeiro. Apesar da proximidade com a capital, e de ser um dos maiores (em população e extensão) municípios do estado, é, ainda hoje, essencialmente uma cidade do interior. Imagine na segunda metade dos anos 80 do século passado, pré-internet, pré-CD, pré-MTV. Pra um adolescente durango, conhecer aqueles LPs fabulosos que figuravam nas páginas da revista Bizz significava ter de ir ao Centro do Rio – não havia loja de disco que prestasse em SG. Mencionei que eu era (mais) durango? Eu economizava todo e qualquer trocado que pintasse pra, periodicamente, excursionar às lojas da capital. Meu pai me acompanhava, pra que eu não me perdesse pelas ruas da cidade grande. Foi numa dessas excursões com meu pai, em 1988, que comprei o disco que mudou a minha vida”, escreveu, quando falou sobre “Psychocandy”, do The Jesus & Mary Chain.

Ele é jornalista desde 1996, e escreveu sobre música e cinema em veículo como Jornal do Brasil, Extra, Veja Rio, Cliquemusic, Scream & Yell, Tribuna da Imprensa, Gula etc. Mas Bart tem um local só dele pra falar sobre música, o Telhado De Vidro, seu site (acesse, acesse, acesse!), com listas bacanas e outras coisas mais (como cinema e política, por exemplo).

Dos discos que mudaram sua vida, que o fizeram escrever sobre, se apaixonar e resolver se aventurar a ser ele mesmo resenhado/criticado, eis uma lista de dez (onze, a bem da verdade). Os seus Discos Da Vida começam com um certo sentido, pra quem já ouviu o Borealis, mas Bart vai nos surpreendendo lista adentro. Como sua música surpreende. Como seus textos surpreendem.

A seguinte lista não pretende ser uma relação de melhores de todos os tempos, ou mesmo de meus LPs favoritos. São os discos que mais marcaram a formação do meu gosto musical. Peço licença pra uma pequena barbeiragem, ao incluir dois discos em uma só posição; leiam lá e vocês vão entender.

Simon & Garfunkel, Dave Grusin – “The Graduate” (1968)
Durante minha infância, ouvia-se muita música lá em casa – mas no rádio. Não havia muitos discos. Meus pais não eram exatamente roqueiros: minha mãe gostava dos Beatles e de Clube Da Esquina (mas não tinha os LPs) e meu pai era mais chegado a um easy listening, coisas como Paul Mauriat e Acker Bilk. Mas dois ou três discos da pequena coleção me causaram fortes impressões. Caso do “Reach Out”, do Burt Bacharach (de quem sou fã até hoje e a quem, por sorte, consegui entrevistar em 1999) e uma coletânea de hits da Dionne Warwick. Entretanto, o disco mais marcante foi a trilha-sonora do filme “A Primeira Noite De Um Homem” (“The Graduate”), cheia de sucessos do duo Simon & Garfunkel. “The Sounds Of Silence”, “Mrs. Robinson” e “Scarborough Fair” são as minhas mais remotas referências de música pop. Minha mãe ouvia muito e eu cantarolava (embromando) as músicas sem parar.

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Ouça “The Sounds Of Silence”:

João Gilberto – “Amoroso” (1977)
Quando eu tinha uns oito ou dez anos (primeira metade da década de 1980), eu costumava ouvir a Rádio JB AM junto à minha mãe. A programação era muito boa, muita MPB e algum pop internacional mais classudo. E tocavam várias músicas do João Gilberto, o dia todo: “Wave”, “Estate”, “Caminhos Cruzados”, “Triste”, “Tintin Por Tintin”… Eu já sabia quem era João porque minha mãe era fã e eu lembrava daquele famoso especial de TV no qual ele cantava com a Rita Lee. Então João sempre foi uma presença musical na minha vida, desde cedo. Anos depois, descobri que aquelas músicas todas que rolavam na JB eram, quase sem tirar nem pôr, o repertório do LP “Amoroso”. É meu disco brasileiro predileto de todos os tempos, pra mim superior até aos três primeiros álbuns, que cristalizaram a bossa nova. Essas lembranças de João me inspiraram a escrever um ranking completo com todas as músicas que ele gravou.

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Ouça “Wave”:

The Smiths – “Hatful Of Hollow” (1984)
Não é o melhor álbum dos Smiths (“Meat Is Murder”), nem foi o primeiro que ouvi (“The Queen Is Dead”), mas essa coletânea é o disco deles que mais escutei. Um pouco por falta de opção (minha discoteca era pequena na época), um pouco porque o LP mostrava bem a versatilidade da banda. Os Smiths foram a primeira banda que chamei de “minha”, uma descoberta completamente aleatória e individual que fiz: ouvi “This Charming Man” tocar no rádio em algum momento de 1985 e fiquei fascinado. Era uma época em que eu estudava inglês e ficava tirando as letras, traduzindo, me identificando com as deprês juvenis do Morrissey… “Hatful Of Hollow” era bom de ouvir porque tinha dezesseis músicas, a maioria delas curtinhas, incluindo clássicos como “William It Was Really Nothing”, “Heaven Knows I’m Miserable Now”, “How Soon Is Now?” e “Reel Around The Fountain”. A versão de “Still Ill” (com a gaitinha) é melhor que a gravação original do álbum de estreia.

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Ouça “This Charming Man”:

The Jesus & Mary Chain – “Psychocandy” (1985)
Já escrevi sei lá quantas vezes sobre esse disco, e é possível que seja o LP que mais mudou os rumos do meu gosto musical. Depois de ouvi-lo, nunca mais consegui retornar ao rock “normal” – quer dizer, pra mim, o normal passou a ser o barulhento, o dissonante. O Jesus aparecia na Bizz toda hora (“Psychocandy” foi o disco do ano de 1986, segundo a redação da revista), mas não tocava em rádio, os clipes não passavam… pra completar, eu morava em uma cidade (São Gonçalo) com poucas lojas de discos, ninguém conhecia a banda. Finalmente consegui pôr a mão numa cópia, uns dois anos depois do lançamento, e pirei. Era uma época em que eu passei a conhecer muita coisa alternativa ouvindo a rádio Fluminense FM e lendo a Bizz. De vez em quando, descolava um exemplar (com meses de atraso) do Melody Maker, pra sacar o que estava rolando na Inglaterra. Peregrinei (sozinho) ao primeiro show do J&MC no Brasil, em 1990, no Canecão, outra experiência impactante.

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Ouça “The Living End”:

New Order – “Substance” (1987)
Junto aos Smiths e ao Jesus, o New Order fechava a trinca de artistas que formou meu caráter. Essas três bandas me “condicionaram” a aceitar e a procurar um rock menos óbvio, incluindo os nomes que ainda iriam surgir (Pixies, My Bloody Valentine, Nirvana, Pavement…) e os resgates do passado (Velvet, Stooges, The Fall, PiL, Modern Lovers, Gang Of Four…) Virei fã do New Order assim que os discos começaram a sair no Brasil, em 1987, também por influência da Bizz. O New Order (e o Joy Division) passaram a me acompanhar até hoje, e são bandas sobre as quais também já escrevi inúmeras vezes. Já até tirei foto ao lado do Peter Hook! Com toda certeza, “Substance” é o disco que mais ouvi na vida, um resumo do melhor que o New Order tinha a oferecer e uma crônica da evolução do grupo – das raízes pós-punk à exuberância eletrônica e melódica do fim dos anos 1980, com diversas mutações no meio. Esse é pra ter em vinil, porque as edições em CD trazem vários pequenos cortes em algumas músicas (pra caber tudo num disco só). Minha cópia original sumiu – um dos pouquíssimos discos que perdi até hoje – em algum momento da década de 2000 e só fui comprar outra há pouco tempo.

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Ouça “Ceremony”:

The Beatles – “Magical Mystery Tour” (1967)
Eu cheguei atrasado aos Beatles, por algumas razões. Primeiro, a banda estava meio fora de moda na segunda metade dos anos 1980; a formação musical que eu absorvia da Bizz privilegiava mais o rock alternativo, o punk e o pós-punk. Segundo, eu não tinha a figura do irmão/primo-mais-velho-que-emprestava-discos-antigos. Até que surgiu o namorado de uma das minhas primas, que era um cara bacana e antenado (ele me emprestou a primeira Bizz que li) e que gostava de rock antigo, especialmente de Beatles. E o “Magical Mystery Tour” foi o primeiro disco dos Beatles que ele levou lá em casa. Eu obviamente sabia quem eram os Beatles e a sua importância, mas nunca tinha escutado um disco de cabo a rabo. E acabou que “Magical Mystery Tour” foi uma excelente introdução, com seu lado A mais loucão e o B cheio de sucessos (“Strawberry Fields Forever”, “Penny Lane”, “Hello Goodbye” e “All You Need Is Love”). Daí em diante comecei a correr atrás dos outros discos, que eram facilmente encontráveis nos sebos; muita gente se desfez dos vinis pra recomprar tudo em CD, no fim da década de 1980. Os Beatles foram a porta pro começo da exploração do classic rock e outros sons dos anos 1960 e 1970, um tipo de música no qual eu não prestava atenção até então.

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Ouça “I Am The Walrus”:

De Falla – “De Falla”/”DeFalla 2″* (1987/1998)
Não consigo separar esses dois discos: conheci-os praticamente ao mesmo tempo, nunca consegui decidir qual dos dois é o melhor e pra mim eles são uma obra só. Eu sempre fiz uma distinção clara entre “rock brasileiro” e “rock”. O primeiro pode ser legal, acessível, mexer com a memória afetiva etc… Mas qualquer comparação honesta com os EUA e a Inglaterra vai mostrar que 90% do “rock” que se faz aqui não passa de sombras projetadas na proverbial caverna. Creio que, a cada geração, apenas uma ou duas bandas nacionais foram capazes de se igualar em criatividade e ousadia à produção estrangeira – e no fim dos anos 1980, o DeFalla era capaz. A banda gaúcha era, ao mesmo tempo, os nossos Stooges, a nossa Gang Of Four e os nossos Beastie Boys, barulhento, escatológico, suingado e acima de tudo 100% sintonizado com o que se fazia no rock alternativo na época. O DeFalla era o grupo brasileiro favorito da minha turma de amigos, uma galera também chegada em Fellini, Mercenárias, Smack, Violeta de Outono, Black Future e outros sons de maluco que não tocavam na rádio, ninguém conhecia, ninguém gostava. Só nós.

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Ouça “Não Me Mande Flores”:

*N.E.: Os dois primeiros discos do DeFalla também são conhecidos com outros título. O primeiro, de 1985, cuja capa está representada aqui, aparece em várias publicações com o nome de “Papaparty”, mas qualquer pessoa que comprou o disco à época o chamava de “DeFalla”. O segundo recebeu o título de “It’s Fuckin’ Borin’ To Death”.

Vários – “Colors – As Cores Da Violência” (1988)
“As Cores Da Violência” é um filme policial dirigido por Dennis Hopper e lançado em 1988. Pouca gente se lembra dele hoje, eu mesmo nunca assisti. No entanto, comprei naquela época a trilha-sonora do longa: meu primeiro álbum de hip hop. O gênero ainda era uma relativa novidade no Brasil e naquele período começaram a chegar mais lançamentos por aqui. Comprei o LP depois de pirar no remix que o Coldcut fez pra “Paid In Full” (Eric B. & Rakim), uma das músicas da trilha. O disco ainda tinha a faixa-título, um clássico do Ice-T; faixas de Salt-n-Pepa, Big Daddy Kane e um troço estranho chamado “Six Gun (44 Mag Mix)”, creditado a um certo Decadent Dub Team – uma mistura pioneira de rap e rock industrial. Nunca mais abandonei o hip hop.

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Ouça “Paid In Full”, remix do Coldcut (vale ler também este artigo):

Vários – “Atlantic Rhythm’n’Blues 1947-1974, Vol.6” (1985)
Outra coletânea que me abriu as portas de um estilo que eu não conhecia: a soul music. Eu já estava na faculdade e costumava emprestar discos pra um colega que, em troca, me mostrava coisas novas. Nesse intercâmbio ele me cedeu o volume 6 da coleção Atlantic Rhythm’n’Blues, uma série de sete discos duplos que dava uma geral no catálogo de black music lançado pela gravadora Atlantic. A coleção inteira é indispensável, mas o número 6, que abarca o período 1966-69, é o mapa da mina. Tem Aretha Franklin (“Respect”, “Think”, “Chain Of Fools”), Otis Redding (“Try A Little Tenderness”, “The Dock Of The Bay”), Wilson Pickett (“Land Of 1000 Dances”) e mais uma porrada de maravilhas. Imagine a reação de um moleque que se considerava muito entendido de música (só por conhecer umas bandinhas obscuras) ao ouvir “Try A Little Tenderness” pela primeira vez. Lembro exatamente daquele momento.

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Ouça “Try A Little Tenderness”, com Otis Redding:

Daft Punk – “Homework” (1997)
Quando este disco saiu, em 1996 (na verdade, a data de lançamento oficial é janeiro de 1997), eu estava meio enjoado de rock e andava ouvindo muito rap e música eletrônica. Eu sempre gostei de eletrônica, já nos anos 1980 ouvia Kraftwerk, Bomb The Bass e, claro, New Order, mas meu interesse no estilo cresceu muito na década posterior. A descoberta do Daft Punk se deu, por coincidência, na mesma época em que eu comecei a brincar de fazer música no computador, usando programinhas (hoje) rudimentares, desses que vinham em CDs encartados em revistas de informática. O insight que tive ao ouvir “Homework” deve ter sido similar ao dos moleques ingleses que ouviram os Sex Pistols em 1976: “cara, ISSO AÍ eu consigo fazer”. O título do disco já entregava tudo: “dever de casa”. Eu ainda não sabia, mas a audição da estreia do Daft Punk foi, de uma certa maneira, a gênese do Borealis.

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Ouça “Da Funk”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Benjamin Back”.

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