OS DISCOS DA VIDA: SOBRE A MÁQUINA


Foto: Fernando Teixeira

O som do Sobre A Máquina pode ser difícil de ser definido: experimental, industrial, post-rock, alternativo… Talvez a banda – e você mesmo – já tenha ouvido algumas dessas associações e outras tantas inventadas ao longo desses poucos anos que o trio está junto.

É certo, entretanto, que qualquer que seja a definição, Cadu T. Emygdio C. e Ricardo G. foram bastante afetados por sua própria criação. E essa edição de “Os Discos da Vida” não permite rotular essa afirmação como falaciosa.

Há em cada um dos integrantes distinções claras de gostos e de influências, mas há também muitos pontos de intersecção, principalmente no que se refere ao primeiro disco da banda, o “Decompor”, de 2010. Ele está na lista dos três. E isso é sintomático de uma banda que, apesar das diferenças de criação musical, se entende perfeitamente.

Aproximação. Esse é um dos privilégios da música.

CADU T.

Bem, achei bem dificil listar apenas cinco discos, muita coisa ficou de fora, mas depois de muito pensar e ir escrevendo, acho que no momento esses cinco entram…

Einstürzende Neubauten – “Zeichnungen Des Patienten O. T.” (1983)
Essa banda e o Throbbing Gristle subverteram tudo na minha concepção de música até o momento que fui apresentado a eles. De sua época até hoje, mesmo que tenham mudado muito desde então, o Einstürzende Neubauten continua sendo desafiador. O EN dos primeiros discos era algo que quebrava com quase tudo que conheço daquela época – e até hoje. Quando me deparei pela primeira vez com o vídeo “Halber Mensch” de Sogo Ishii (vídeo que recebeu o mesmo nome de outro grande disco da banda), abrindo com “Armenia” sendo tocada num enorme galpão, desacreditei de tudo. Era impressionante como aquela sonoridade ao mesmo tempo que caótica, desesperada e realmente pesada podia me soar agradável, e soava, da maneira mais estranha possível, talvez por ser uma quebra de hábito. Era anti-música, o avesso de tudo e ainda assim era visceral e apaixonado era mais pesado do que qualquer banda de metal que havia ouvido, era mais emotivo do que qualquer música do Roberto Carlos e era mais contestador e anárquico do que todas as bandas punk que ouvia na época.

Ouça “Armenia”:

Peter Brötzmann Sextet/Quartet – “Nipples” (1969)
Quando a primeira faixa desse disco entrou pelos meus ouvidos, me senti completamente sugado ouvindo os dois saxes urrando por socorro. Todos no disco são incríveis, Brotzmann e Evan Parker travam um duelo inacreditável de saxes. Foi nesse disco que ouvi o Derek Bailey tocando sua guitarra pela primeira vez… Enfim, só ouvindo pra entender do que tô falando, mas é o tipo de coisa que hipnotiza. Se não hipnotizar, você vai simplesmente dar stop porque achou um porre. “Nipples” dividiu águas pra mim, pois nunca havia ouvido nada assim no jazz. Foi muito mais impactante na minha “criação” do que outras coisas não menos importantes que na primeira ouvida também me impressionaram muito, como o Ornette Coleman Double Quartet no “Free Jazz” ou o Coltrane no “Love Supreme”. Aprendi a ver as possibilidades indo pra onde nem se imagina com essa vertente do jazz. É uma ode à liberdade, à unicidade de cada momento, criação e destruição ao mesmo tempo.

Ouça uma improvisação ao vivo do quarteto:

Swans – “Children Of God” (1987)
A frase “menos é mais”, nunca foi tão clara e certa pra mim quanto quando escutei Swans pela primeira vez, com seus loops/grooves lentos, intensos e agressivos (dependendo da fase). Desde a sujeira e opressão apresentadas no “Filth”, o Swans era um desafio excitante, a repetição como opção onde a música vai sendo marcada pelas variações de sensibilidade de algum dos elementos ou de vários deles em momentos diferentes, a predileção pelo grave forte, os detalhes, respiração. Cada pequeno ruído vira algo muito significativo. Aquele clima construído com marteladas lentas e que da agressividade mais intensa pode vir a ser repentinamente suave, com a entrada de Jarboe, escolho “Children Of God” justamente por isso. Foi o disco que mais marcou por apresentar essa variação explícita: ora caótico, ora lírico, é simples e complexo ao mesmo tempo.

Ouça “New Mind”:

Sigur Rós – “()” (2002)
Deparei-me com essa banda de nome estranho no Soulseek de alguém e não imaginava que ela me surpreenderia muito. Ela tem uma aura muito estranha, que me faz sorrir com lágrimas nos olhos. Parece que dá pra sentir o frio da terra deles ao mesmo tempo que te faz pensar num abraço quente e caloroso. A ausência de título nas faixas, o nome peculiar do disco, tudo me chamou a atenção. Nunca simpatizei com Enya e odeio quem faz essa comparação – até hoje ouço – mas essa banda também mudou meu jeito de pensar música. É o tipo de melancolia da qual me alimento vez ou outra quando o caos cansa, assim como Low que acabei não listando por conta do Sigur Rós, que retrata toda uma época. As melodias são tão simples e tocantes que rasgam tudo, desarmam. Enfim, eu vou ficar falando e falando e nunca vou chegar no que eu quero dizer: o importante é que esse também está listado, é meu preferido deles.

Ouça “Untitled #1″ (a.k.a. ‘Vaka’)”:

Sobre a Máquina – “Decompor” (2010)
Pode parecer pedantismo, mas esse disco também mudou minha vida. Quando comecei a trabalhar no “Decompor”, estava num momento complicado, eram desabafos muito sinceros, não esperava que viria a ser um disco e muito menos que seria uma banda. Gravei a primeira demo do que seria o “Decompor” como um exercício de desabafo mesmo, tocando. Descobri a melancolia em BPMs baixíssimos. Não esperava que ao mostrar pro Emygdio e pro Ricardo fizesse com que eles quisessem participar daquilo. Era uma aura pesada, hipnótica, mas muito diferente do que eles faziam e ouviam. E o mais legal é que o resultado da adesão dos dois foi extremamente satisfatório e estranho porque por mais que sejamos muito diferentes, percebemos que as idéias se debatiam e se completavam, que juntas faziam do trabalho algo extremamente complexo mesmo que feito com simplicidade. Descobrimos semelhanças que não imaginávamos ter. Consigo enxergar algo que embora tenha influências que possam ser salientadas, entra de choque no critério de qualquer um. Existe muita coisa mas ao mesmo tempo me soa natural. Um som difícil de definir, de fato, talvez porque seja muito nosso, do Sobre a Máquina, foi a realização de um trabalho que posso dizer: mesmo que não fosse meu, seria transformador ouvir.

Ouça “Rotina”:

EMYGDIO C.

Los Hermanos – “Ventura” (2003)
Minha relação com o Los Hermanos foi meio inusitada, pois passei boa parte da minha adolescência ouvindo rock clássico e não dava atenção ao cenário brasileiro atual. Meu único contato com o som dos caras era através dos singles que via por acaso na MTV na casa de um colega, ou escutava no rádio de algum coletivo rumo ao centro do Rio. Sempre ficava muito impressionado com o que ouvia, mas por algum motivo que desconheço nunca corria atrás de nada da banda. Até o dia em que resolvi dar uma “chance” ao grupo. Retirei os fones aos 1 min e 5 segs da primeira música, desci as escadas da loja e comprei este álbum. No dia seguinte, voltei e comprei todos os outros. Aquilo foi uma revolução para mim. Sempre gostei de música
brasileira, mas não sabia que era possível tocá-la daquele jeito. Aquilo me impressionou tanto que umas semanas depois, eu já estava escrevendo e compondo em português, coisa que nunca havia arriscado antes. Acho que eu e toda a minha geração fomos profundamente atingidos pela forma como o Los Hermanos fazia música, coisa que não acontecia nessa proporção talvez desde o final dos anos 60, com a Tropicália e toda a geração vinda da Bahia.

Ouça “Cara Estranho”:

Sobre A Máquina – “Decompor” (2010)
Talvez quem esteja de fora não entenda o motivo desde álbum figurar na minha lista. De fato, geralmente discos que mudam a vida de alguém são feitos por outra pessoa ou pessoas, mas acontece que ao finalizar este trabalho, deparei-me com um som que não sabia explicar de onde surgiu, na verdade acho que não sei até hoje. Fui pego totalmente de surpresa pelo resultado final, e por um bom tempo não me via como alguém que tivesse participado do processo de criação do “Decompor”, só fui entender mais tarde… Percebi que havia mudado durante o processo e não tinha me dado conta ainda, ele foi feito sim por outra pessoa, a diferença é que levou certo tempo para me tocar que esta outra era eu mesmo.

Ouça: “Conflito”:

Jorge Ben – “Força Bruta” (1970)
Anos 60 e 70, sempre eles… Não sei o que ocorria com os músicos daquela época pra serem tão criativos a ponto de revolucionar forma e estética dentro da música tantas vezes, em relativamente tão pouco tempo. Um exemplo perfeito disso é Jorge Ben. Em 1963, ele mudou todas as regras do jogo quando apresentou ao Brasil e ao mundo um jeito diferente de se tocar violão, no seminal “Samba Esquema Novo”, e quase 10 anos depois, com o lançamento deste “Força Bruta”, lá estava novamente Jorge Ben mudando a história da música brasileira. Se antes seu violão era guiado pelo estilo samba jazz das bandas que o acompanhavam, agora o regente era Jorge Ben e a fábrica de ritmos que era seu violão percussivo, uma verdadeira força bruta. Aliado ao Trio Mocotó, que teve que inventar uma nova forma de acompanhamento pra seguirem o violão desenfreado de Ben, acabaram criando o que viria a ser conhecido como samba rock. Curioso que esse disco, apesar de bastante pesado e ritmado, é essencialmente melancólico. Parece que a dor fez com que ele evoluísse, trouxe paralelamente a Tim Maia, uma forte influência da música negra americana produzida na época. Com o tempo Jorge aprimorou e desenvolveu sua criação, mas este disco, muitas vezes esquecido perante aos vindouros “A Tábua de Esmeralda” e “África Brasil” foi o começo de tudo.

Ouça “Oba Lá Vem Ela”:

John Coltrane – “A Love Supreme” (1965)
Sempre fui interessado por jazz, me fascinavam a figura e a música dos “boppers” capitaneados por Charlie Parker e Dizzy Gillespie e o jazz fusion do Tribal Tech e Allan Holdsworth. Sempre enxerguei o estilo como uma música que apesar de bela esteticamente, era cerebral e complexa. Isso mudou completamente quando escutei esse álbum. Não que ele fosse mais “simples”. Na verdade, Coltrane já havia se firmado como sucessor direto de Charlie Parker por causa de seu virtuosismo e pelo uso massivo de improvisação baseada em acordes. Mas a partir do início dos anos 60, ele e um grande número de artistas negros passaram a questionar o meio em que viviam e – por que não? – questionar a si mesmos. Numa jornada de auto-reflexão e conhecimento interno, nomes como Horace Silver, Donald Byrd, Pharaoh Sanders, Yussef Lateef, Max Roach e, por fim, o próprio John Coltrane acharam na filosofia oriental resposta pros seus questionamentos e trouxeram isso pra sua música. Composta como uma homenagem a Deus em quatro atos, esse álbum é uma obra-prima da primeira a última nota. Era Coltrane se entregando por completo a sua fé e a sua arte. Pela primeira vez, se permitiu colocar voz em uma gravação, entoando o mantra que dá nome ao disco, que é puro sentimento. O retrato de um artista totalmente exposto.

Ouça “Acknowledgement”:

Deep Purple – “Machine Head” (1972)
Esse álbum do Deep Purple foi meu primeiro contato com rock clássico, na época eu morava em Maricá, uma pequena cidade do Estado aqui do Rio, que não tinha internet, exceto por um pequeno servidor que era empresariado pelo pai de uma colega. Então, eu pagava para ele baixar uma espécie de mixtape de bandas escolhidas por mim. Numa dessas, eu solicitei que fosse baixado algo do Deep Purple, logo ele gravou o CD e nele estava a faixa de abertura do “Machine Head”, “Highwat Star”. Aquilo me levou à loucura. Posteriormente, pedi o CD completo e fiquei completamente chocado com o que ouvi. Acho que até hoje sei tocar todas as músicas, que eram extremamente desafiadoras, devido ao alto nível técnico dos integrantes e seus longos solos e improvisações. Foi uma grande escola e a partir daí surgiu meu forte interesse por tudo que foi produzido musicalmente nos anos 60 e 70.

Ouça “Highway Star”:

RICARDO G.

Queens of the Stone Age – “Songs For The Deaf” (2002)
Acho que esse foi o disco que ouvi mais vezes na vida. Ouvi falar de Queens Of The Stone Age pela primeira vez um pouco antes do Rock in Rio 3, numa Bizz especial sobre o evento. Li que eles tavam super bombados lá fora e que vinham pra tocar no dia do metal, sendo que eles não eram metaleiros. Infelizmente só tive a oportunidade de ouvir o “Rated R” depois do show deles por aqui. Pouco mais de um ano depois, vi o clipe de “No One Knows” na MTV. Mudou minha concepção de rock pra vida. No “Songs For The Deaf” está a melhor formação da banda, com Josh Homme, Nick Oliveri e Dave Grohl, fora o gênio Mark Lanegan. Na minha opinião, o melhor disco de rock dos anos 2000. Tá tudo no lugar: produção, timbres, mixagem, sem falar nas composições – que tem melodias incríveis e estruturas pouco convencionais ao pop. Dave Ghrol disse que o Queens foi a melhor banda na qual ele já tocou.

Ouça “No One Knows”:

John Coltrane – “A Love Supreme” (1965)
Quando ouvi o “A Love Supreme” pela primeira vez, já trabalhava com o Cadu e o Emygdio, há uns 3 anos. Não dei muita bola de início, porque tinha ouvido o disco como som ambiente. Errado, muito errado. Levei o disco pra casa. Quando terminei de ouvi-lo, fiquei quieto por uns cinco minutos, tentando entender o que tinha acontecido. Tentei imaginar como alguém podia ter concebido aquelas melodias e guinchos tão perfeitos. Nesse registro, Coltrane vai da melodia mais suave ao noise mais perturbador num compasso. Parece que o sax está literalmente dando um sermão inflamado e apaixonado. Quando Elvin Jones bate um gongo no início do disco, você já sabe que algo grandioso está por vir. Coisa de gênio.

Ouça “Resolution”:

The Beatles – “Revolver” (1966)
Todo mundo sempre fala do “Sgt. Pepper”, mas eu prefiro o “Revolver”. Beatles foi a primeira banda que me foi apresentada na vida, por intermédio dos meus tios. Eles tinham uma banda de baile nos anos 60, então Beatles é Deus pra eles. Mas eles sempre me mostraram mais a fase rock’n’roll da banda. Acho que as pessoas daquela época absorveram mais os Beatles iê-iê-iê. Quando fiquei mais velho, passei a procurar mais os outros discos e fui pirando. Eu achava incrível aquelas roupas e aqueles sons. O disco todo é uma finesse, mas foi em “Tomorrow Never Knows” que minha cabeça explodiu, com todas aquelas camadas de guitarras invertidas, garças indo de um lado pro outro nas caixas em pan e sons que eu não fazia ideia do que eram (e ainda não faço). Acho que o que sempre me deixou mais impressionado foi como a banda foi evoluindo absurdamente em pouquíssimo tempo. E, apesar do que todo mundo fala do “Pepper”, acredito que foi no “Revolver” que a banda atingiu o apogeu criativo.

Ouça “Tomorrow Never Knows”:

Los Hermanos – “Ventura” (2003)
Esse aqui é “pelos velhos tempos”. Passei a adolescencia inteira ouvindo. E, assim como o “Revolver”, acho que só eu prefiro o “Ventura” ao “Bloco (Do Eu Sozinho)”. Ainda que eles já tivessem feito belas canções e que ainda viriam a fazer no “4”, acho que a safra do “Ventura” é imbatível, pela diversidade de gêneros. E mais: o modo como eles filtraram todos esses gêneros de forma homogênea sem soar repetitivo ao longo de 15 canções. É perceptível a sintonia entre Camelo e Amarante nas composições, mesmo que o disco não tenha nenhuma parceria como teve no “Bloco”. Arrisco-me a dizer que foi esse disco que definiu a forma de se fazer/compor/tocar música brasileira na última década. Não é preciso muito esforço pra ouvir ecos do “Ventura” em discos de bandas indies, dos novos artistas da MPB, além das várias músicas que foram pinçadas desse álbum por outros intérpretes.

Ouça “Último Romance”:

Sobre A Máquina – “Decompor” (2010)
Fazer o “Decompor” foi algo de incrível. Tanto pela dificuldade pra fazê-lo, como pelo resultado final e o reconhecimento que tivemos com ele. Durante as gravações do “Areia”, ficávamos lembrando os perrengues e noites mal-dormidas que passamos. Só pra ilustrar, o equipamento e os softwares que tínhamos eram tão precários que pra ouvir um take de guitarra era preciso 24 minutos: 8 pra tocar, 8 pro take ser processado pelo computador e mais 8 pra ouvir se tinha ficado bom. Acho que o “Decompor” nos deu uma nova dimensão do que é produzir um disco. De condensar um zilhão de ideias de forma coerente com um conceito. De mixar e equalizar frequências de 30, 40 faixas numa só música. Como o Emygdio disse uma vez, acho que o grande mérito do “Decompor” é ir além das barreiras de nichos e atingir pessoas com gostos diversos e de formas completamente diferentes. O processo todo foi incrível.

Ouça: “Fôlego”:

Na próxima edição de “Os Discos da Vida”, Hominis Canidae.

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Lê Almeida”.

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Comentários

comentários

3 comentários

  1. Excelente sessão. Não conheço nada do que o Cadu falou, só, lógico, o Sobre a Máquina. Tem disco aí que também entraria na minha votação.

    Alias, o Hominis deve por uns 25 cds de punk/hardcore desconhecido aí se bem conheço a figura! hahaha

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