PENSE OU DANCE: A CRÍTICA É SAUDÁVEL


Ilustração por Leandro Devitte

Em “Deus, Um Delírio”, Richard Dawkins fala sobre conscientização de uma maneira inusitada: “numa nave espacial da ficção científica, os astronautas estavam nostálgicos: ‘Só imagine que lá na Terra é primavera!’. Você pode não enxergar imediatamente o que há de errado, tão impregnado é o chauvinismo inconsciente do hemisfério norte naqueles que moram lá, e até em algumas pessoas que não moram. ‘Inconsciente’ é precisamente correto. E aí que entra a conscientização. Há um motivo mais profundo que apenas um artifício engraçadinho para o fato de que na Austrália e na Nova Zelândia é possível comprar mapas do mundo com o pólo Sul no alto. Que conscientizadores esplêndidos seriam esses mapas, pendurados nas paredes de nossas salas de aula do hemisfério norte! A cada dia, as crianças seriam lembradas de que o “norte” é uma polaridade arbitrária que não detém o monopólio do ‘alto’. O mapa as intrigaria e as conscientizaria. Elas iriam para casa e contariam para os pais — e, aliás, entregar às crianças algo com que elas possam surpreender os pais é um dos maiores presentes que um professor pode dar. Foram as feministas que me conscientizaram para o poder da conscientização. O termo ‘herstory’ é obviamente ridículo, no mínimo porque o his de ‘history’ não tem nenhuma ligação etimológica com o pronome masculino his (‘dele’ — N. T.). É tão etimologicamente bobo quanto a deposição, em 1999, de uma autoridade de Washington, cujo emprego da palavra ‘niggardly’ (‘de forma mesquinha’ — N. T.) foi considerado ofensa racial. Mas até mesmo exemplos idiotas como ‘niggardly’ e ‘herstory’ conseguiram promover a conscientização. Quando passa nosso calafrio filológico e paramos de dar risada, ‘herstory’ nos mostra a história a partir de um ponto de vista diferente. Os pronomes de gênero estão notoriamente na linha de frente desse tipo de conscientização. Ele ou ela deve perguntar a si mesmo ou a si mesma se o senso de estilo dele ou dela vai um dia permitir que ele ou ela escrevam desse jeito. Mas, se conseguirmos deixar de lado a infelicidade imposta à língua, isso nos conscientiza para os sentimentos de metade da raça humana. Homem, humanidade [mankind], os ‘Direitos do Homem’, ‘todos os homens foram criados iguais’, ‘um homem, um voto’ — o inglês parece excluir as mulheres com frequência demais (no grego e no latim isso não acontece). Quando jovem, nunca me ocorreu que as mulheres pudessem se sentir desprezadas por um termo como ‘o futuro do homem’. Nas décadas que se seguiram, todos nós fomos conscientizados. Mesmo aqueles que ainda usam ‘homem’ em vez de ‘ser humano’ o fazem com um ar de desculpa consciente — ou de truculência, em defesa da linguagem tradicional, até de forma deliberada para irritar as feministas. Todos os participantes do Zeitgeist foram conscientizados, até aqueles que preferiram responder negativamente firmando posição e redobrando a ofensa”.

Com atenção, é possível perceber o quão importante a parábola é pra inúmeras áreas do relacionamento humano, porque trata também de todos os registros pré-concebidos durante gerações e gerações, e que constroem nossas míseras verdades dia após dia.

Quando o astronauta fala que “lá na Terra é primavera” (e astronautas vêm essencialmente do Hemisfério Norte – aquele brasileiro, Marcos Cesar Pontes, me desculpe, mas não conta), ele está desconsiderando que do outro lado do planeta é, oras, outono. E ele desconsidera porque o mundinho dele é fechado, bem menor do que o próprio globo que explora lá do espaço.

O mesmo vale pro mapa mundi. Colocar a Oceania no canto superior esquerdo dará um nó na cabeça de 90% da população que jamais se deu o trabalho de questionar a convenção de que o continente fica no Sudeste e, portanto, deve se enfiar – e de lá não sair – na parte inferior direita do mapa. Sul é embaixo; Norte é em cima. Convenções apenas. Até os astronautas limitados com a visão citada acima sabem que além dos limites da órbita terrestre não há pontos de referência pra se cravar onde é “cima” e onde é “baixo”.

Conseguir desconstruir convenções quaisquer, as mais infantis possíveis, é parte essencial pra conseguir desconstruir quaisquer outras que vamos amontoando durante a vida, a maioria delas inconscientemente, sem padrão, sem questionamento. Elas acabam se tornando “nossas verdades”. E verdades não são absolutas – é tudo uma questão de conhecimento, de vivência, de ponto de vista (às vezes) e da importância de quem nos conta tal fato como verdade.

Um bom exemplo é que cientistas conseguiram recentemente acelerar partículas elementares, conhecidas como “neutrinos”, a uma velocidade maior do que a da luz. Os franceses, autores da façanha, estão checando e rechecando os dados. Se comprovado, o caso pode gerar uma reformulação na teoria da relatividade de Albert Einstein.

Se nem as verdades de Einstein são absolutas, por que as nossas seriam? É tudo uma questão de conhecimento: o que sabemos agora pode deixar nossas verdades no nível da conscientização; mas negar informações que a confrontem, ou simplesmente as ignorar, é comprar passagem só de ida ao obscurantismo.

Mas com cientistas é um pouco mais fácil de tratar, afinal, eles se baseiam em experimentos e são radicais com relação aos seus resultados: pra alguém contra-argumentar, é preciso estar bem embasado cientificamente. E com o resto da humanidade, como derrubar certas verdades, aquelas pequenas, do dia a dia?

Pior é quando se tratam de verdades impossíveis de comprovarem-se verdadeiras, aquelas que transitam pelo campo da subjetividade, do famoso achismo, do gosto, do paladar, do humor e – o pior dos mundos – das crenças alimentadas desde criança (como todas as religiões) e dos prazeres fúteis diários e individuais (no caso das artes em geral). Gosto é gosto e não se discute? Você pode até achar isso, mas quando entra a conscientização em jogo, será melhor mudar de opinião.

Toda arte tem seus signos e significados e códigos de leitura e entendimento. Ok que você não os conheça profundamente: mesmo assim estará apto, não só pelo gosto, mas pela percepção do entorno, do contexto, pra criticar, avaliar, julgar e desmerecer ou enaltecer tal obra. Quando deixamos o gosto ao deus-dará, sem a contextualização, ele pode causar estragos, principalmente fechando os olhos pra outras verdades, determinando preconceitos.

Por contexto entenda-se sua própria história (a memória pode agir contra ou favor do julgamento), a história do artista e do movimento artístico, a sociedade, a trajetória de criação, os objetivos, a retaguarda de formação do artista e muitas outras coisas. Quando você diz, portanto, “eu gosto e pronto, ninguém tem nada com isso”, está em seu direito pleno, com seu gosto ninguém pode bulir, mas estará abrindo uma brecha pra que sua preferência seja questionada por alguém mais embasado e poderá, destituído de amarras, claro, enfrentar a desqualificação daquele seu júbilo artístico.

O que acontece é que a equação não fecha, seja por falta de estrutura cultural de um dos debatedores da questão, seja por falhas de caráter, seja por mera oposição ao debate. Ninguém quer ser contrariado, ninguém quer ver derrubada suas próprias verdades, as quais se agarram com dentes afiados. Só que isso sempre vai acontecer: seres humanos têm histórias diferentes, vidas diferentes, culpas diferentes, visões do mundo diversas. Do contário, tudo seria muito chato.

Mas a crítica, pra falar do nosso meio aqui no Floga-se, principalmente na música pop e jovem, encontra obstáculos intermináveis em três frentes: no fã, no artista e no próprio crítico.


O artista

O artista pressupõe-se que seja um alguém com a mente mais aberta, com menos verdades a serem derrubadas: ele, afinal, cria suas obras a partir dos estímulos culturais e pessoais de toda a vida, seus símbolos e códigos estão expostos pra análise e julgamento de todos. Mas nem sempre: muitos artistas têm horror à crítica, porque é um fã de si próprio, que não suporta qualquer tentativa ou movimento mínimo de desqualificação de sua obra.

Trabalham no inconsciente desse artista algumas convenções criadas por ele mesmo, durante toda sua vida, incluindo aí, talvez, o fato dele achar que obras artísticas estão acima do bem e do mal, e outras tantas que desembocam numa foz de cegueira egocêntrica, pretensão ou soberba.

Se a crítica disser que o sambinha mixo de fulano de tal é uma afronta aos ouvidos (e explicar de uma maneira rasa a diferença entre um samba mixo e um samba de responsabilidade), é capaz do cidadão derrubar a explicação e se insurgir com a fúria de uma turba golpista de estado, bradando que não, ele não faz samba, o crítico é que não entendeu, o lance dele é bossa-pop-qualquer-coisa e que o escriba não sabe tocar samba, que não conhece samba pra falar, em vista da explicação rasa que deu. Mas veja o mesmo quadro mudando de direção: a crítica diz que o artista faz um baita sambão de qualidade, um deleite pros ouvidos, colocando a mesma explicação rasa sobre a diferença entre um samba mixo e um de responsabilidade; e eis o milagre, eis que o artista se sentirá lisonjeado com tais palavras, agradecerá com fervor e até replicará o artigo pra familiares, amigos e tudo o mais, sem se importar se a explicação está correta ou se o escriba sabe ou não tocar samba, se ele entende do metiê.

Esse artista foi confrontado, colocaram o pólo Sul de sua arte na parte de cima do mapa, confundindo tudo o que ele havia planejado como resposta do público (e obviamente a insurreição contra a crítica negativa virá no mesmo peso que ele crê que a crítica tenha sobre os leitores, seu público-alvo, avaliando que isso pode prejudicar seu bolso e as contas a pagar no final do mês, e o impacto disso na sua carreira dali pra frente).


O fã

O curioso é que o fã se porta da mesma forma. Se sente acima de qualquer confronto com sua verdade pessoal com relação àquele artista ou obra. Uma resenha negativa e o crítico é desqualificado por quaisquer motivos. Nesse caso, o fã estará pronto, com pedras nas mãos e insanidade afiada. A mesma resenha, agora com adjetivos elogiosos, não será mais entendida como vazia, fria, errônea, pouco embasada. Todos esses defeitos serão milagrosamente ignorados pra focar-se nos elogios, no enaltecimento daquele objeto de culto.

O confronto leva ao raciocínio, à queda de preconceitos. O medo e a preguiça do confronto levam à falta de esclarecimento, à letargia, à não-conscientização, à negação de uma outra verdade. Se você entender confronto como algo bruto, desgastante, cruel, sanguinário, é bom lembrar que uma simples conversa discordante sobre se vai chover ou não mais tarde já é um confronto – ou seja, não vai doer nada, por outro lado a fuga do embate tem efeitos colaterais mais assustadores.


O crítico

O terceiro ponto – e esse é ainda mais importante – reside na figura do crítico, que em tese é o fomentador de toda a discussão. Sendo assim, ele não pode se ilhar em torno da sua pretensa “liberdade de opinião” pra dizer o que bem entender, sem achar que não está sujeito a levar o troco na mesma moeda. Ele não pode bater e sair correndo depois. Quem dá opinião, está apto às mesma penalidades do acaso interpretativo e poderá ser julgado por isso, e certamente não nas mesmas medidas do seu julgo. Aquelas linhas são a sua obra e como tal merecem uma re-crítica tal aberta e essencial quanto.

Embora seja muito mais fácil ao fã e ao artista confrontarem o crítico do que as próprias verdades, não vale ao crítico a fantasia hedionda da vítima. Ele é o provocador e ninguém assume esse papel impunemente.

Nesse triângulo, todos precisam rever seus conceitos quando confrontados – ou sustentá-los com os argumentos próprios, profundos, fundamentados (mesmo se valendo de ironias e afins). É preciso conscientizar, ou reconscientizar, como bem determinou Dawkins. A crítica é salutar, bem como o confronto. Fugir dele é fugir de uma nova verdade – é ficar vendo o mundo sempre da mesma forma, do mesmo ângulo. Quem se presta ao debate, mesmo negando por negar as tratativas alheias, está a um passo de uma nova conscientização, ou está flexível a ela, talvez só precise ouvir o argumento certo.

Porque debate e crítica não são oposição, não numa relação saudável. Crítica é pra todo o bem uma exigência saudável na troca de experiências e aprendizado. E é sempre um convite pra você se repensar. Que tal?

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