PENSE OU DANCE: A GENTE SOMOS CORRUPTOS

“Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”. O bordão “gosto de levar vantagem em tudo”, você sabe, acabou virando a Lei de Gérson.

Gérson, o Canhotinha de Ouro, campeão com a Seleção Brasileira no México, em 1970, e o “cérebro” daquele time extraordinário. Pois é.

A história é essa, segundo o Almanaque de Comunicação: “em 1976 o jornalista e publicitário José Monserrat Filho, ex-militante do partido comunista e um dos fundadores do Clube de Criação do Rio de Janeiro-CCRJ, convidava o ex-campeão da Copa de 70, o meio-de-campo Gerson para ser o protagonista de uma campanha de lançamento dos cigarros Vila Rica, marca da J. Reynolds, concorrente da Souza Cruz. O jogador gravou em estúdio, dirigido pelo cineasta Cacá Guedes, seguindo o roteiro de Monserrat que era Diretor de Criação da Caio Domingues, agência com menos de três anos de atividades no mercado”.

A ideia era passar a informação de que a marca era mais barata, com a mesma qualidade dos concorrentes, e seria mais vantajoso escolhê-la.

Aos mais novos, que cresceram sem ver um comercial de cigarro sequer na vida, pode ser até bizarro ver uma peça dessas, ainda mais com um atleta de Seleção Brasileira (mas já aposentado à época), e um apresentador que acende o cigarro em frente à câmera, na caruda. Mas, lembre-se, era chique, bacana, cool, fumar um cigarrinho, era coisa de gente fina, elegante. O Vila Rica era cigarro pras classes baixas, e foi líder de mercado por muito tempo por causa dessa propaganda.

Entretanto, a propaganda passou à história pelo bordão famoso – e não pelos motivos desejados.

“Levar vantagem em tudo”, de lá pra cá, se tornou sinônimo de mau-caratismo, do espertalhão, aquele que quer vencer de qualquer maneira, que acredita como religião que “os fins justificam os meios”. Pobre Canhotinha de Ouro, virou “lei” da safadeza.

Há quem defenda a atitude. Um artigo na Superinteressante, de fevereiro de 2004, chega a distorcer um tanto o problema: “o enunciado da lei de Gérson põe a nu a essência do nosso caráter sem pudor: somos um povo que gosta de levar vantagem. E daí? Alguém aí teria orgulho de fazer parte de uma nação de trouxas e otários?”.

Claro que não – mas lá vem a explicação: “ninguém aqui vai defender um comportamento antiético ou ilegal com base no enunciado da lei de Gérson. Se ela existe, é em primeiro lugar reflexo da nossa realidade. Veja o caso das nossas empresas. Na hora de dar entrevista e aparecer na mídia, todas querem loas a sua responsabilidade social corporativa e boa cidadania. Na hora de declarar imposto, de desempatar alguma pendenga judicial ou de conseguir autorização para obras, estão todas atrás do primeiro Rocha Mattos de plantão para livrar-lhes a cara, já que, em meio à nossa barafunda legal, a propina é questão de sobrevivência e só ela faz a economia andar”.

E segue: “parece que o povo brasileiro vive uma tensão entre duas forças. Por fora, a força da imagem. Em público, todos têm de ser como que sacerdotes, com comportamento impecável, retidão moral absoluta, espinha dorsal inflexível. Os políticos corruptos são condenados com virulência, qualquer deslize de executivos tem de ser punido de forma exemplar (…). Por dentro, porém, irrompe a força de Gérson. Ninguém agüenta essa pressão hipócrita. Todos querem o melhor para si – e que mal há de haver nisso? De posse da menor fímbria de poder, de uma tênue nesga de oportunidade, não raro transgredimos as mesmíssimas regras cuja transgressão acabamos de condenar nos outros. Julgamos, condenamos, enforcamos e esquartejamos Gérson. Mas Gérson somos nós. Eis nosso dilema”.

Não deveria ser um dilema. Deveria ser uma certeza. “Por fora” e “por dentro”, haveríamos de nos revirarmos de ódio pelos atos ilícitos que buscam fins prejudiciais aos outros.

Certo, o capitalismo é assim, matematicamente falando: há um número “x” de riquezas produzidas e se ela vai mais pra uns é porque outros ficam com menos. Beleza, estamos todos de acordo com isso, aparentemente, mas é preciso conseguir esse “mais” a qualquer custo?

A matéria que saiu no Fantástico no último domingo, dia 18 de março de 2012, enojou todo mundo. Pelo menos “por fora”. Empresas ofereciam descaradamente a um repórter travestido de gestor público vantagens, porcentagens e afins pra vencer a concorrência. Num hospital (um agravante considerável). Se uma empresa fechar contrato, a porcentagem da “bola” que vai pro gestor público é a porcentagem do dinheiro de todos que vai pro buraco e não pra Saúde. Inclusive de quem corrompe e de quem é corrompido (todos pagamos impostos em algum momento, oras).

É um ato vil, idiota e burro, como se vê.

A curiosa hipocrisia do fato é que certamente, esses corruptores, que fazem acertos, cartas marcadas, propinagem, quando no seu reduto social, pregam a legalidade acima de tudo, contra políticos e governos corruptos, bradam a pulmões inflados frases como “essa país só tem bandido”, “esse país não vai pra frente”… Você conhece a linha de raciocínio.

O corruptível igualmente deve se indignar, quando entre amigos e conhecidos, nos bares e elevadores, contra os roubos em Brasília, os desvios de verba, a politicagem, a jogatina velada e tudo o mais.

Porém, querem levar vantagem em tudo. À primeira oportunidade – à qualquer oportunidade – agarrarão com toda força que puderem a “vantagem”, não importa de quem sair, quem vai perder, quem vai sofrer. Uma das bandidas lá no vídeo do Fantástico fala sobre a “ética do mercado”. Ética. Como se ela soubesse o que é isso. Talvez esteja falando em níveis mafiosos. Mas ética é outra coisa.

Tenho pra mim que ética “são todas aquelas questões sobre certo e errado, que desembocam em questões sobre felicidade e sofrimento de seres conscientes”. Quando estamos prestes a influenciar a felicidade ou sofrimento sobre um ser consciente, estamos diante de uma questão de ética, temos uma responsabilidade ética pra com esse ser.

É por isso que não basta de indignar e se enojar com o visto no Fantástico, se no fundo, diante de qualquer oportunidade do destino, você sucumbirá à tentação de causar um sofrimento a alguém, mesmo que você não conheça esse alguém.

Pra não ficar num cenário muito distante, pense no trânsito, sempre o maldito trânsito. Não é preciso viver numa cidade avassaladoramente antiética como São Paulo, pra surfar nos absurdos da guerra do exército de quatro rodas.

No trânsito, é sempre cada um por si, e sempre o outro está errado, nunca a gente. Nunca é a gente que para em cima da faixa de pedestres; certamente também nunca é a gente que trafega pelo acostamento escapando do tráfego das estradas; tenho certeza que nunca é a gente que para em fila dupla, “rapidinho”, pra pegar o filho na escola, não se importando com quem vem atrás; também jamais é a gente que dá aquela paradinha “rapidinha” num local proibido só pra embarcar ou desembarcar alguém; nunca é gente que muda de faixa sem sinalização, que passa em sinal vermelho, que não dá preferência ao pedestre ou ao ciclista, que se lixa pro usuário do transporte público, que polui o ar, que dá um jeitinho com o despachante pra não fazer a prova obrigatória na renovação da carteira de motorista… Nunca é a gente. São sempre os idiotas dos outros, aqueles corruptores sem coração.

Nas pequenas coisas, somos todos corruptores e adeptos da Lei de Gérson. De fato, o Estado toma mais do que devolve, mas a insurreição deve se dar no nível das urnas, ou na insubordinação direta, ou na porrada, ou sei lá como. Mas deve se dar no nível ético da atuação. É utopia, por certo. Há a todo momento, em todo lugar, em todas as questões da vida, um obstáculo ético a ser debatido. Em algum instante, há de se sucumbir. Somos todos seres humanos e nosso coração é algo flexível, ele se comove pelo o que nos importa.

Talvez, como já disse aqui, “a sociedade brasileira prefira uma polícia que aceite suas ‘pequenas’ corrupções, que faça vista grossa, pelo menos pra si (…). No fim, acho que todo mundo prefere uma polícia assim, maleável, flexível, que não leva tão a ferro e fogo ‘uma ordem’ da lei, pra continuar ajustando as normas às suas necessidades egoístas”.

E repito o vídeo com a tese:

Roger, do Ultraje A Rigor, tinha quase razão: a gente não “somos inútil”; quando se trata de levar vantagem, o brasileiro é muito eficiente. O certo talvez fosse “a gente somos corruptos”. Mas “levar vantagem em tudo” não é algo pra se ter como lema, nem pra se vestir a capa do orgulho. Numa sociedade séria, educada e “evoluída” (sabe-se lá o que isso quer dizer), é motivo de vergonha.

O questionamento precisa ser diário. Indignar-se com os espertalhões é um bom começo. Saber se você também não é um espertalhão é o “x” da questão.

Leia mais:

Comentários

comentários

4 comentários

  1. Falando propriamente de corrupção na gestão pública ,isso existe em qualquer país. A diferença é a apuração e punição dos envolvidos , que é sem dúvida mais rígida na Europa ocidental, Japão e Estados Unidos, principalmnente, do que no Brasil…Agora valores éticos mudam de acordo com o tempo e espaço na qual estamos inseridos, vide a própria campanha publicitária da qual o Gérson participou.Lembrando que nem sempre o que é legal é justo e cabe a qualquer um assumir as consequências dos seus atos, mesmo que apenas sejam sanções sociais de pessoas tão anti-éticas como nós.

  2. Falando propriamente de corrupção na gestão pública ,isso existe em qualquer país. A diferença é a apuração e punição dos envolvidos , que é sem dúvida mais rígida na Europa ocidental, Japão e Estados Unidos, principalmnente, do que no Brasil…Agora valores éticos mudam de acordo com o tempo e espaço na qual estamos inseridos, vide a própria campanha publicitária da qual o Gérson participou.Lembrando que nem sempre o que é legal é justo e cabe a qualquer um assumir as consequências dos seus atos, mesmo que apenas sejam sanções sociais de falsos éticos.

  3. […] A Pense Ou Dance seguiu refletindo e provocando. Em “março”, o “Fantástico”, programa dominical da Rede Globo, exibiu uma matéria que expunha o óbvio: corrupção nas relações comerciais entre Estado e “iniciativa” privada. Um repórter se fez comprador de um hostipal no Rio de Janeiro e, com uma câmera escondida, atraiu os urubus que fazem de tudo pra conseguir uma pedaço de carniça. Em rede nacional e horário nobre, o brasileiro se viu nu, do jeito que veio ao mundo, corrupto, malandrão e achando que dinheiro público é “dnheiro de ninguem”. Pior, era dinheiro da saúde. Sim, definitivamente, “a gente somos corruptos”. […]

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.