PENSE OU DANCE: A HETEROGENEIDADE DAS IDEIAS

Hoje cedo, peguei o metrô pra vir trabalhar. Metrô lotado, como de praxe (mas que tenho consciência ser sossegado diante de outras linhas de São Paulo, bem mais caóticas e vandalizadoras da civilidade). Nele, as caras de sempre, anônimas, mas as de sempre: cansadas, desconfortáveis, apressadas, conformadas.

Olhar pros lados e tentar adivinhar quem esteve entre os mais de cem mil manifestantes que tomaram as ruas da capital paulista em 17 de junho de 2013 era um exercício divertido pra passar o tempo. E inócuo. São as mesmas pessoas de sempre, trabalhadores das mais diversas atividades, que retomam o dia após, de alguma maneira, se expressarem nas ruas – ou nos bares, ou nas redes sociais, ou entre amigos.

O exercício é inócuo porque o manifestante dessa noite já tida como histórica, a que levou mais gente às ruas desde os cara-pintadas em 1992 (cuja maior manifestação, com duas milhões de pessoas, fez essa de 2013 parecer reunião de condomínio), não tinha um rosto ou uma posição política definidas, como não tem toda manifestação de proporções gigantescas.

Não foram “só” 65 mil em SP:

O Movimento Passe Livre (MPL) pede claramente a redução da passagem de ônibus em São Paulo, de R$ 3,20 pra R$ 3,00. É uma pauta simples e direta. No programa Roda Viva, da TV Cultura, que foi ao ar na mesma segunda-feira que se deu a tomada das ruas, a dupla de porta-vozes do movimento fez um esforço pra marcar posição pelos vinte centavos, a despeito da grita nas redes sociais de que “não são só vinte centavos”.

Faz sentido. É preciso ter uma pauta de negociação ou como o movimento poderia sentar com a prefeitura e conversar? Vai abrir as conversas falando “abaixo a corrupção” ou que quer o “o direito de se manifestar”? Provavelmente o prefeito também quer isso. Mas o que o prefeito tem que entender, nas vistas do MPL, é que o transporte de São Paulo pode continuar subsidiando os tais vinte centavos. É uma discussão política, de marcar posição.

Vencida a batalha, o MPL deve querer partir pra cima da sua maior pauta, o transporte gratuito e amplo pra população, de preferência de boa qualidade, e com gerência do Estado sobre execução de terceiros. Entretanto, essa primeira batalha dos vinte centavos precisa ser vencida.

A porca torce o rabo quando se coloca mais de cem mil pessoas nas ruas, principalmente após a pancadaria lamentável promovida pela Polícia Militar dias antes, na quinta-feira, 13 de junho. Os vinte centavos realmente deixam de ser o foco pra maioria. Muita gente deve ter se unido pelo simples desejo de mostrar que tem, sim, o legítimo direito de dar sua opinião nas ruas. Outros tantos aproveitaram pra gritar contra os gastos absurdos na Copa do Mundo (já é a segunda Copa mais cara da história), contra políticos, contra partidos políticos, contra “a corrupção”, contra “o capitalismo”, contra o que fosse possível gritar.

Todos têm legitimidade. Muitos manifestantes propuseram a mudança de foco dos vinte centavos pra algo mais amplo e disperso como “luta por ‘direitos'”, sendo sabe-se lá exatamente quais direitos. E a luta o MPL país afora virou simplesmente “os protestos”, justamente porque é difícil definir pelo o quê de fato se protesta. O direito de se manifestar é um bom direito a se lutar quando alguma força reacionária tenta esmigalhar essa prerrogativa democrática. Mesmo desviando o foco, não importa, estão ali compondo uma massa que dá ao movimento original, o MPL, a pressão necessária pra colocar o governo na linha das suas reivindicações. Quanto mais gente nas ruas, melhor.

Mas ali no chão o que se viu foi gente com atitudes reprováveis ao cunho democrático. Pediam um movimento apartidário, porque os partidos políticos são instituições talvez com o pior índice de aceitação popular, banhados em corrupção e fisiologismo, e há o temor de que certas bandeiras se apropriem de uma manifestação que é, por princípio, popular. O próprio MPL não rechaça a participação dos partidos políticos, nem mesmo dos mais à direita, desde que abracem a causa do transporte. Por que aqueles cem mil, então, partiram pra intolerância e vias de fato com quem carregava bandeiras partidárias?

Partidos políticos são necessários na atual formatação democrática brasileira. Eles transformam a política em algo prático, nas diversas tribunas de representação do povo, e aglutinam movimentos sociais. Eles deveriam te representar, sim. Quer mudar na marra, arrancando bandeiras? Melhor votar em quem se propuser a coragem de fazer uma reforma política que dê menos margem de manobra a aventureiros na tantas siglas que infestam as eleições.

Manifestantes torceram o nariz também pra quem gritava “contra a Dilma” ou “contra a corrupção”, algo tão genérico quanto reacionário por ter um viés, digamos, “anti-petista”. Ora, se é uma manifestação que prega não ser “só pelos vinte centavos” e sim “por direitos”, dê ao lado oposto o mesmo direito que prega a si. É um saco quando tentam ressignificar o tema principal, mas é um efeito colateral aceitável pra quem quer ter volume nas ruas e, principalmente, pra quem quer possuir o direito universal à liberdade de expressão. Nem todos abraçam as mesmas bandeiras. É só olhar ao redor no metrô, nos ônibus: as pessoas são diferentes, fazem tarefas diferentes, pensam diferente. Ainda bem.

As ruas são espaço de todos, mesmo dos contrários. Não viver com essas diferenças é não dar o mesmo direito de liberdade que pede pra si. Mais uma vez, é preciso entender os meio-termos.

Entretanto, no todo, mesmo com as pancadarias promovidas por idiotas como no Rio de Janeiro e pela polícia em várias situações, dá um certo prazer ver brasileiros, principalmente jovens, se movimentando (e tomando o Congresso Nacional, um ato de enorme simbolismo!) e se fazendo ouvir. O jovens sempre precisam ser ouvidos quando gritam, porque gritam por algo. Já falei disso, recentemente.

É compreensível o incômodo das pessoas digamos “mais politizadas” com baboseiras reacionárias como “o gigante acordou”, “o povo acordou” – acordou mesmo e pro quê exatamente? Contra o que chamam de “lulopetismo” ou coisa que o valha? Ou contra desvios de conduta em geral, apartidários? São temas que desvirtuam o foco principal e caminham contra o que é um processo legítimo e democrático, que são pessoas eleitas pelo voto direto – nos cargos devem ficar até o final, e qualquer ideia contrária a isso, é golpe.

Não se incomode. Atente-se ao fato de que, como diz o advogado José Garcez Guirardi, professor da Direito GV/SP, “de certa maneira, há uma relação de consumo com a política hoje. As pessoas estão consumindo política, não produzindo política”. É uma diferenciação interessante. “Isso ocorre porque a relação de consumo se tornou a relação matricial da nossa sociedade. Quando você compra um produto, está desinteressado de todo o longo processo que o levou às suas mãos, envolvendo escolhas, sacrifícios de pessoas, etc. E assim que aquilo satisfaz sua necessidade imediata, você o descarta sem preocupar também com consequências. (…) Na hora de construir, que é muito mais difícil, pois pressupõe articulação de interesses diferentes, as pessoas não conseguem avançar”.

Apesar do emaranhado heterogêneo, estão nessas manifestações, das Diretas-Já aos caras-pintadas e ao MPL, legítimas explosões de intenção do povo brasileiro, com sangue jovem de quem jamais foi às ruas com tanta veemência lutar por algo. Da batalha pra descriminalizar a maconha, pelos direitos das mulheres, contra a Copa ou qualquer outra pauta, sempre se tira um pouco do que se viu nesse 17 de julho. Mas na proporção que se avultou, foi uma noite histórica. Governantes deveriam refletir. São sempre os mais velhos e os alocados no poder quem se recusam a ouvir.

Se essa massa toda está mudando o país é difícil de dizer – o futuro do MPL tende, inclusive, a ser sombrio, abraçado a um partido qualquer e atuando no jogo estabelecido. Acho até que não está se mudando nada profundamente, diante a lógica de consumo de ideias. Mas o aprendizado dessa experiência toda pode surtir algum efeito positivo em mentes jovens de hoje – as que nos governarão no futuro.

Tomara que eles ao menos aprendam as principais lições: que uma conquista social não dá passe livre pra ninguém se estabelecer como detentor de uma nova ordem – humildade ainda é artigo raro na política nacional – e que os muitos rostos e mentes que constroem o povo brasileiro são maravilhosamente diferentes. É só olhar em volta.

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