PENSE OU DANCE: O BEBÊ CHORÃO

O bebê chora e atira algum objeto ao longe. Ele chora e atira as coisas, fica “agressivo”, porque alguma coisa o incomoda e ele não consegue se expressar, ou porque, por não saber nem o que é “se expressar”, se irrita com quem não “o compreende” e precisa chamar atenção à sua causa.

Não é preciso ser pediatra pra sacar que há uma lógica nesse cenário. É terrível querer falar algo e ninguém te ouvir ou te compreender. Numa situação dessa, o instinto manda reagir e chamar atenção de qualquer maneira.

As massas são como bebês. Insatisfeitas, elas vão tentar se fazer ouvir de qualquer modo, nem que pra isso, tenham que se tornar “agressivas”.

Em sociedade, o diálogo é o que nos faz mais próximos do que imaginamos como “civilizados’. Sem diálogo, a reação é o conflito. Não há nada de errado e anti-natural nisso. Por outra, é até esperado.

Some-se a esse quadro um bando de jovens insatisfeitos. Não insatisfeitos com algo especificamente, mas apenas sendo jovens – jovens são impacientes, inconformados, raivosos, querem mudar o mundo. Se você não os ouve – e os mais velhos quase nunca se predispõem a ouvir os jovens – eles vão se fazer ouvir. O inconformismo não só faz parte deles, como é salutar que seja assim. Tentar reprimir esse inconformismo é criar futuros adultos panacas e idiotizados.

Podem se fazer ouvir de várias formas. Com arte, por exemplo. Quantas e quantas bandas e movimentos foram criados com jovens entediados e insatisfeitos com a condição de… de qualquer coisa?

Coloque na lista o rock com o Beatles, o Elvis, o Rolling Stones; o punk, com o Stooges, o Ramones, o Sex Pistols; o rock nacional, quebrando a pasmaceira brega-MPB-cafona dos anos 70 e a mesmice dos festivais… De lá pra cá, com todas as derivações, ainda vemos um Arctic Monkeys aqui, um Restart acolá, uma música torta mais adiante, rappers gritando situações de injustiça.

Mas a expressão pode vir também de outras maneiras, digamos menos artísticas. Os protestos no norte da África e na Turquia, recentemente; os caras-pintadas, no Brasil, no começo dos 90; os europeus na primavera de 1968; sempre há inconformismo por trás, é a insatisfação o motor dessas mudanças.

Questionar o sistema vigente é tudo o que uma sociedade deve fazer sempre, se quiser avançar, evoluir, mudar e se equilibrar com justiça. Jovens, por obrigação histórica, devem cumprir esse papel. E, consequentemente, os mais velhos, já acomodados dentro do sistema, irão chiar, chamar todos de baderneiros que querem destruir “a ordem”. Claro, essa é uma “ordem” estabelecida por eles e os favorece.

Mas a “ordem” é um conceito bastante maleável. Não há ordem quando um tanto de gente está insatisfeita com essa “ordem”. Há conflito. Sociedade que evita o conflito deve dialogar. Se não dialoga, clama pelo conflito.

A única “ordem” que reconheço é a natural: se há leis e normas constituídas, o jovem por natureza deve questioná-las. Faz parte do aprendizado. As normas e leis não estão aí à toa, elas têm um motivo, uma história, é uma entendimento social (espera-se que seja), foram construídas por ideais passados e precisam ser respeitadas. Mas isso não impede de serem questionadas.

Não há, pois, assunto que não mereça ser questionado. Derrubar ditadores é uma boa desculpa pra tomar as ruas. A liberação da maconha também. O preço das passagens do transporte público igualmente.

Mas do ditador ao transporte público, o número de pessoas atingidas diminui um bocado, inversamente proporcional ao número de pessoas “estabelecidas” dentro dessa “ordem”. Por que diabos um cidadão que comprou seu carro em trocentas prestações e largou o sistema precário de transporte, e agora vive parado no trânsito, vai compactuar com uma manifestação que não mais lhe diz respeito e, pelo contrário, só atrapalha ainda mais o trânsito?

As manifestações que estouraram em várias cidades brasileiras por conta do aumento das passagens do transporte público dividiram opiniões.

Os “moderados” acreditam que “protestar é permitido, mas sem atrapalhar o trânsito”. Ora, o trânsito nas grandes cidades, é bom lembrar, está sempre um lixo de qualquer forma, mas isso é o de menos. O que importa é lembrar que pra manifestação ser relevante ela precisa ser ouvida, vista e – cereja do bolo – incomodar, porque só incomodando a “ordem” estabelecida é que as reinvidicações ganham destaque e forçam o diálogo antes negado.

Já os radicais vão desde o pedido de proibição total e absoluta de qualquer manifestação, até o desmerecimento da causa. No caso dos protestos em São Paulo, alegam que a “liberdade do manifestante se encerra quando começa a liberdade do próximo”. Erro conceitual: liberdade não pode ter limites, senão deixa de ser liberdade. Há radicais mais idiotas, como Arnaldo Jabor, que alegam que estão discutindo por “apenas vinte centavos”. Foi em cadeia nacional, na Rede Globo:

Vale lembrar aos radicais como Jabor que, do alto de sua pretensão intelectual-elitista, vinte centavos podem não fazer falta, mas tem um pessoal que sente no bolso o aumento, a ponto de “ter que pular refeições” (em São Paulo, a tarifa subiu de R$ 3,00 pra R$ 3,20; no Rio, foi pra R$ 2,95, que na prática, pela falta de troco, é R$ 3,00).

E os “liberais” aceitam as manifestações, mas vêem tudo de longe, sem participar. Repudiam, entretanto, o quebra-quebra e a violência.

Um dos porta-vozes do Movimento Passe Livre (MPL) diz que o quebra-quebra não é desejável, mas “a gente não é liderança nem dono do movimento. Tem um certo respaldo porque tem história de luta em várias cidades e em São Paulo. Só que uma coisa é o Movimento Passe Livre. A outra é a reivindicação contra aumento, que ganhou uma dimensão muito maior”. Leia a entrevista aqui. O rapaz tem 19 anos.

A briga não é por vinte centavos. O transporte público deveria ser de graça, como o PT já discursou, mas mudou de ideia com o tempo, por questões “políticas”. Tarifa-zero é utopia? Não sei dizer, contas públicas são um troço complexo, mas certamente seria o ideal, e uma boa solução pras cidades. Há experiências interessantes que talvez você não conheça. Não sei se funciona pra cidades gigantes como São Paulo e Rio de Janeiro, por questão de custo, principalmente.

Mas historicamente, desde 1950, o poder público brasileiro prioriza e investe muito mais em transporte privado (aliado à filosofia consumista dos últimos governos). Como o dinheiro público brasileiro sempre foi mal gerido, não havia o suficiente (nem vontade política, é certo) pra carros e transporte público. Pra cada metro de ruas e avenidas abertas, foi um tanto de verba que deixou de ser investida no transporte público. Hoje, a defasagem talvez seja impossível de ser resolvida. Ou se alguém milagrosamente conseguir, não será pra essa nem pras imediatamente próximas gerações. O caos urbano perdurará. É esse o modo que queremos viver?

Quem anda de carro e acha que protestos como esse atrapalham o trânsito, sinto informar, mas deveria rever os conceitos e olhar pra si: trânsito é feito de carros, e quanto mais carros, mais trânsito. Há engenharia ruim feita por “órgãos competentes”? Deve haver mesmo, mas se você botou um carro na rua, a culpa é sua também. Se você é mal educado no trânsito, a culpa é sua duas vezes. Não transfira a culpa pros outros. Nem o argumento de que “não há opção ao carro” é desculpa pra uma cidade como São Paulo.

Uma recente pesquisa mostrou que “a argumentação de motoristas que dizem que largarão o próprio carro quando tiverem um transporte público decente não é verdadeira. Não ocorre, por exemplo, quando uma nova estação de metrô é construída”. Aí a solução pode ser outra, mais dura ainda aos motoristas. Leia na íntegra aqui.

Se as atuais manifestações sobre transporte público não têm pautas adequadas e não discutem com amplitude o problema, elas são ao menos uma porta de entrada. Se os manifestantes são playboyzinhos mimados brincando de política, assumindo ingenuamente um dos lados do fla-flu de mentes arcaicas, ao menos estão levantando a bola pra um problema sério.

A mobilidade nas cidades é um problema atual, seríssimo e tende a piorar. Lutar por isso vale a pena, mesmo que incomode um bocado. Até quando vamos dar as costas a esse bebê chorão que quer nossa atenção?

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Comentários

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3 comentários

  1. O problema é que uma manifestação dessas (no caso do trasnporte) vai, no máximo, levar a medidas de curtíssimo prazo por parte do estado, que visa acabar com a revolta.

    Medidas para melhoria real do transporte público são de longo prazo, e a população nao vai (proavavelmente nao) se rebelar por um período extenso de tempo.

    Os agentes respondem a incentivos. O governo aumenta a taxa. Os “jovens” respondem com sua insatisfação. O estado responde com alguma medida pra amenizar o caos. Os “jovens” respondem à essa pequena vitoria e se dispersam. A população responde votando no cara que resolveu este problema. O estado não recebe incentivos pra aplicar politicas de longo prazo.

    Eu particulamente acho muito importante essa mobilização, que não quer aceitar aumento dos preços sem qualidade de transporte. Mas ao mesmo tempo eu nao vejo como isso pode ser uma solução. No fim das contas, me parece mais um simbolismo do que algo realmente efetivo.

  2. Esse problema chegou a este estagio porque ninguém está satisfeito com a situação.

    As pessoas que usam transporte público estão cansadas de serem tratadas como lixo, como um estorvo para a cidade.

    E os motoristas estão cansados de não verem soluções para o nó criado nas vias públicas.

    O direito de ir e vir deve ser soberano, mas obviamente por uma questão social e mesmo ambiental (tanto de ocupação das vias quanto ecológica) o transporte público deve ser privilegiado em relação ao transporte individual mas nenhum dos dosi devem ser relegados.

    A esperança, mesmo que a base de tantos conflitos e vítimas é que esse assunto seja tratado de forma séria pela sociedade e discutido amplamente. E espero, seja aberto precedente para que discutamos também saúde, segurança, trabalho, etc.

    A sociedade não pode ficar esperando e reclamando muito nas redes sociais por iniciativas do Estado, nós é quem devemos puxar a discussão.

  3. […] Entretanto, no todo, mesmo com as pancadarias promovidas por idiotas como no Rio de Janeiro e pela polícia em várias situações, dá um certo prazer ver brasileiros, principalmente jovens, se movimentando (e tomando o Congresso Nacional, um ato de enorme simbolismo!) e se fazendo ouvir. O jovens sempre precisam ser ouvidos quando gritam, porque gritam por algo. Já falei disso, recentemente. […]

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