PENSE OU DANCE: O DOGMATISMO E OS BEATLES

É provável que você já tenha ouvido a frase mais famosa entre os cagões de boteco: “gosto, futebol, religião e política não se discutem”. Eis um cidadão que você não pode chamar pra beber. Porque são as quatro coisas mais bacanas e inflamáveis pra se discutir numa mesa de bar – ou em qualquer lugar.

Primeiro, porque discutir é legal. Discutir futebol (sobre fãs e idolatria, falarei numa oportunidade próxima), política (idem), gosto e religião resume muito sobre o caráter de qualquer um. Porque nossas verdades são quase todas baseadas em tradições usualmente idiotas e dogmas obscurantistas (e dogmas são, de acordo com o seu dicionário aí, “ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar” – não só religiosas, mas filosóficas, políticas, sociais…).

As ideias passadas de geração pra geração precisam ser contestadas, seja pela luz oferecida pela ciência, seja por inconformismo.

Pegue por exemplo o dogma da virgindade de Maria, a mãe de Jesus. Caso Jesus tenha de fato existido, há de se questionar o mito de como ele foi concebido. No Velho Testamento, Isaías, no capítulo 7, versículo 14, fala sobre “a ‘jovem’ que dará à luz um filho (…)”. Uma boa Bíblia trará como nota a confusão da tradução de “jovem”. A tradução grega parthenos traz “a virgem”, do hebraico almá, que significa “uma donzela”, uma “jovem casada”. Não há nada que fale sobre virgindade. É uma tradução errônea apropriada pelos autores dos evangelhos de Lucas e Mateus (1,23), pra moldar a vida de Jesus às profecias do Velho Testamento.

O fato de uma mulher virgem dar à luz (hoje, com os avanços da ciência, é plenamente possível – e não se trata de milagre – mas não entre os homens do século I, é bom lembrar) parece miraculoso demais, de modo que nem mesmo outros autores de evangelhos parecem acreditar nisso. Na Epístola Aos Romanos (1,3), Paulo fala sobre o filho de Deus, “nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus”. “Segundo a carne”, veja. Não há referência direta à virgindade de Maria.

É óbvio que a leitura literal de textos tão antigos e manipulados pela vontade de imperadores ignorantes de três séculos após os fatos presumidamente ocorridos pode também ser aberta. Mas parece-me igualmente óbvio que um tema como o sexo sempre foi algo que o tal Deus nunca mostrou muito apreço: sempre foi algo pecaminoso, a ponto de seu filho ter sido gerado pelo Espírito Santo e não pelo marido de sua mãe, José, no ato deliciosamente carnal, com gemidos, carinhos e ejaculação. “Pode-se dizer que a civilização ocidental aguentou (e segue tendo que aguentar) dois milênios de neuroses sexuais simplesmente porque os autores dos evangelhos de Mateus e Lucas não sabiam ler hebraico corretamente”, numa boa definição de Sam Harris.

Mas o dogma da virgindade não é único moldado pela Igreja pra seus propósitos. Forastieri escreveu em 2009 um texto bem bacana de como o mito do nascimento de Jesus e do Natal foi criado pelo Conselho de Nicea, em 325 D.C.. Tal tradição seguimos até hoje, sem questionar muito. Porque são dogmas. Não se discutem. Uma mulher virgem pode dar à luz um filho e sobre isso não se discute.

Experimente, pois, dizer a um muçulmano ou a um cristão devotos que sua mulher o está traindo. Experimente dizer que seu fusca velho vale, na verdade, oito milhões de dólares. Jure de pés juntos. Em ambas as afirmações, os cidadãos comuns, porém religiosos, crentes, “tementes” a seus deuses, irão questionar e pedir provas contundentes sobre e, se possível, rir da sua cara.

Por outro lado, diga a eles que o livro que eles têm no criado-mudo e que levam pra passear todo domingo aos respectivos templos, foi escrito por um ser invisível, ser esse que irá atirá-los ao fogo eterno, caso ousem questionar as afirmações absurdas ali escritas acerca do universo, da ética e da moral, da história e da vida; e certamente nenhum dos dois cidadãos pedirá prova alguma e irão acreditar cegamente em tudo, porque são coisas que não se discutem.

O dogmatismo nos leva ao obscurantismo. Nem mesmo o dogmatismo científico é válido. Uma das leis máximas da física, a Teoria da Relatividade, está sendo questionada nesse momento, porque a ciência permite e busca e exige esse inconformismo. Quando uma descoberta é feita ou uma teoria é elaborada, ela é imediatamente jogada à curiosidade feroz dos cérebros científicos pra ser destruída. Se sobreviver, é ela que dita a verdade sobre aquele determinado assunto. Ou seja, há discussão.

Mas esqueça a religião por ora e pense em alguns outros dogmas. Dogmas próximos de você. Pense, da mesma maneira, o quão improváveis são algumas “verdades” que gerações passada vão nos entupindo. Pense nos Beatles, por exemplo.

O maior dogma da música talvez seja: não há banda como os Beatles, nem nunca haverá. A qualidade e a importância do quarteto parece indiscutível, mas quanto a sua “superioridade”, ou intangibilidade, é melhor pensar de novo. O que faz os Beatles serem intocáveis por crítica, apreciadores de música e fãs; e a banda de sucesso atual ser intocável apenas por fãs histéricos e inconsequentes?

O embate parece risível qualquer que seja o combatente, mas nem tanto (troque “a banda de sucesso atual” por qualquer artista ou banda, de qualquer estilo, que a juventude realmente goste agora). Os Beatles nem sempre foram unanimidade. E eis uma das suas qualidades: a de subverter a lógica dominante da época. A tal “banda de sucesso atual” está longe de ser unanimidade (nem pra galhofa, nem pra exaltação), mas pode vir a ser, em pouco tempo, por outros méritos, observados por fãs que amadurecerão e tomarão de assalto editorias de rádios, revistas, sites, agências de publicidade, programas de televisão, moldando esse gosto e o público de sua geração – ou, o que é mais provável, infelizmente, remodelando e reafirmando os dogmas do passado, das gerações anteriores, sem questionar, porque isso, enfim, dá um trabalho danado.

Reafirmar um dogma também dá trabalho e leva um bocado de tempo. Os argumentos dos evangelistas beatlemaníacos passeiam pelas vias do “clássico”, da “influência”, da “originalidade”, do “tradicional”, do “impacto cultural” e por aí vai. Um meme tão enraizado que foi promovido a dogma.

Por partes. Clássico eu descartaria. Há quem ache o Blink-182, com 20 anos de carreira, algo clássico. Influência sobre novas bandas é uma linha que costura várias dúvidas: o que influenciou os Beatles, tipo o country e o blues (ou até mesmo Little Richard), não deveria vir na frente, portanto, em termos de importância nesse quesito? O que se prega, na mesma via da “originalidade”, é que os Beatles criaram tudo o que veio depois. Não foi bem assim, é claro, embora seja preciso colocar na conta deles a tremenda carga de ousadia, inconformismo e experimentação que se exige de uma banda de tamanha importância e dessa envergadura – tudo o que seus fãs precisariam ter, mas são limitados pela preguiça e pela catarata crônica de enxergar os novos tempos.

Os Beatles “bons”, “The Ballad Of John And Yoko”, mas já tirando uma com eles mesmos:

O impacto cultural à época é inquestionável, mas isso passou, já foi, como passará o impacto do Justin Bieber, e hoje, como discos do Elvis, de Bob Marley, do Led Zeppelin, dos Sex Pistols e um bocado de outros, que seguem vendendo a boas pilhas, o quarteto de Liverpool pode ser considerada uma banda de estupendo fôlego comercial e nada mais. Ademais, dizer que as menininhas que se esgoelam por Luan Santana e por Justin Bieber, por exemplo, são reflexo cultural do mesmo tipo de histerismo da beatlemania é ignorância, pra dizer o mínimo (é bom lembrar que antes de experimentarem alguns bocados de psicotrópicos, deixarem a barba crescer e pararem de tomar banho, os quatro Beatles eram o equivalente ao Bieber dos anos 1960, tá certo?).

Tem o lado musical: há um tronco genealógico que liga o quarteto a pelo menos metade das bandas legais da atualidade, mas o mesmo crédito se pode dar ao Rolling Stones, ao Velvet Undergound, aos Stooges, aos Ramones, a Robert Johnson, ao Nirvana e ao Radiohead (por que não?) etc. etc. etc… Não há, pois, essa exclusividade aos Beatles. Aliás, musicalmente, são questionáveis várias criações do grupo, muitas delas simples besteiras descartáveis juvenis, como “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, “Fallin’ In Love Again”, “She Loves You”, “Can’t Buy Me Love”, “Yellow Submarine” (“descartáveis” que o dogmatismo tratou de fazer perdurar) etc.

Sério que artisticamente falando isso é bom?

E o que dizer da infantilidade dessa letra? “Say you don’t need no diamond rings/And I’ll be satisfied/Tell me that you want those kind of things/that money just can’t buy/I don’t care too much for money/Money can’t buy me love”.

Ou dessa: “When I see you every day/I say, mmm-mmm, hello, little girl/When you’re passing on your way/I say, mmm-mmm, hello, little girl/When I see you passing by/I cry, mmm-mmm, hello, little girl/When I try to catch your eye/I cry, mmm-mmm, hello, little girl”.

Que tal essa outra pérola? “Here comes the sun/Here comes the sun/And I say/It’s all right”.

Experimente colocar essas letras na boca da Britney Spears ou da dupla sertaneja mais descolada do momento. Os Beatles podem.

Na verdade, não que a letra importe muito na música pop. Não importa, longe disso. A letra e o vocal podem ser um “outro instrumento” pra embalar. E música pop é esquecível. Ninguém exige poesia profunda e grandes questionamentos filosóficos em música adolescente. Só que a dogmatização da banda se dá dos mais velhos aos mais jovens – e tudo o que os Beatles fazem, incluindo letras como essas, é tratado como supra-sumo da arte de fazer rock (um termo velho por si só), exemplo a ser seguido.

E chegamos à “tradição” e aí é que a porca torce o rabo, como diria sua avó fanzoca dos Beatles. Pai ensinou filho, que ensinou seu neto, que os Beatles são legais. Pronto. Não é preciso saber mais nada. Se bobear, nem ouvir. Quantas pessoas que você conhece que realmente conhecem os Beatles com profundidade? É que o lance virou um dogma, um conteúdo de bíblia da música, a ponto até mesmo de infectar os trabalhos solos de seus integrantes, que são tidos como tão geniais quanto. Não são. Solteiros, oferecem ainda mais produções intragáveis.

Mas dizer que os Beatles enchem a paciência como qualquer outra banda é como dizer que Deus não existe em qualquer meio social, inclusive não-religioso (e nesse sentido, a brincadeira midiática de Lennon se tornou profética, como atesta levantamento feito em setembro de 2009 e cujos dados se mantém mais ou menos iguais ainda hoje, o que não é pouca coisa, levando-se em conta o fanatismo religioso cada vez mais feroz no atual século; porque falar que não gosta de Beatles, ou que os Beatles são um pé-no-saco, causa mais furor que se dizer ateu).

Nada nos Beatles, nem sua qualidade musical, nem sua importância histórica, são indiscutíveis, embora eu mesmo goste de Beatles e coloque a banda entre minhas 500 preferidas – lá na rabeira, à frente do Foo Fighters, mas acredito que você há de concordar que essa é uma colocação louvável (pros Beatles). Você pode questionar o mito da virgindade, o mito de um Poseidon dominador dos mares, o mito da homossexualidade genética e outros mitos tão idiotas quanto, alguns com diferentes graus dogmáticos (se é possível usar essa construção) – e, além, você deve questioná-los. Então questione. Ouça com atenção. Essa balela de que os Beatles são intocáveis é o mito dos mitos da música pop. E todo mito entronado deve ser destruído, ou pelo menos dever ser tentado.

Se você conseguir passar algumas vezes por toda a discografia do quarteto sem um dano cerebral, ou uma dor de cabeça que seja (culpa da naftalina e do pó), dê-me a resposta sincera depois. Aponte ali algumas besteiras e pronto, bastou pra perceber que a banda não é indiscutível. Ela é das grandes (no meu caso, das 500 grandes), mas não é indiscutível. É um meme, um dogma nesse caso, que merece reavaliação – ou, como alguns corajosos dizem, destroçado.

Nenhum padre, pai, irmão, cônjuge ou livro de história pode dizer no que você deve acreditar. Ou que banda gostar. Ou do que gostar. Por outra, poder, pode. Se você vai engolir sem questionar são outros quinhentos, depende de você. Nesse papo-furado dos Beatles eu nunca caí.

Por que os Beatles estão entre as 500 bandas mais bacanas pra mim? Porque ninguém que faz essa música pode ser ruim de fato:

Mas eu ainda prefiro essa versão, com o Violeta de Outono:

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Comentários

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9 comentários

  1. Ótimo texto! Eu que me considero um cara sem dogmas, não atentava p/ esse fato, apesar q eu só ouço com frequência mesmo apartir do Revolver, mas me despertou p/ não ficar defendendo c/ unhas e dentes os Beatles em mesa de bar, hehehe…

  2. texto muito bem construído e embasado, mas tende a nos fazer acreditar que os beatles não sobreviveriam a um bom questionamento, a uma audição mais aprofundada… talvez aí é que esteja o grande mérito deles: um dos poucos fenômenos pop de massa que superam esse tipo de barreira, pelo menos pra muita gente.

  3. pra mim, a conclusão desse texto é que não dá pra discutir a arte objetivamente, o que meio que foi de encontro com o que vc disse no começo. eu acredito que gosto se discute mas não se impõe. assim como os beatles não são intocáveis nenhuma banda ou artista é intocável. ‘intocável’ é por um gosto acima de outro, logo impondo

    apesar disso vc tentou ‘desclassificar’ objetivamente quando falou das letras, por serem muito simples. as pessoas gostam de uma arte porque se sentem bem ou se indentificam ao consumi-la. a letra (ou música) simples é apenas mais direta, o que pode ser bom ou não, dependendo do que vc procura (contexto/objetivo). ‘infantilidade’ é uma coisa valorizada, por ex., no twee pop. se existe um público se relacionando/identificando com a arte, então aí tá o ‘valor’ dessa arte

    concordo que o dogma ‘beatles é foda’ existe e é passado pra frente sempre, mas se a banda não tivesse uma fundação forte pra isso, o ‘hype’ não se sustentaria

    então o valor dos beatles, pra mim, independente de qualquer coisa, é o fato de muitas pessoas, até hoje, se identificarem, se sentirem bem, se emocionarem com a arte deles

  4. É isso aí!
    Tudo neste mundo deve ser questionado.
    Eu questiono a excelência dos Beatles todo dia.
    E todo dia chego à conclusão que eles sao a melhor banda do mundo 🙂

    Eu ia dizer que eles estão entre as minhas 500 bandas preferidas também, mas no topo. Mas eu nao sei se conheço 500 bandas.

    Mas ta certo. Fãs dogmáticos acabam queimando o filme do objeto de adoração deles. Os fãs sao tão chatos que a gente antipatiza com o artista antes de conhecer, e acaba perdendo coisas boas. Sofrem desse mal o Raul Seixas, o Bob Dylan, o Legião, etc. Mas vai mais longe: quanta gente deixa de ler Machado de Assis por conta de um século de fãs chatos que o velho amealhou?

  5. Fernando,

    Não concordo com grande parte do que você escreveu sobre os Beatles – mas como concordo com tudo que escreveu sobre a imbecilidade do dogma:
    – Loas! Seu texto é duca!

  6. Apesar de idolatrar os Beatles durante a vida inteira, concordo com parte do seu texto, Fernando. Bem escrito, argumentos bons e fortes, pois até eu, “beatlelada” (como costumam me chamar, de tão fanática que sou) confesso que já questionei sim a honra dos Beatles como a melhor banda do mundo. Tanto que, minha música favorita não é deles e sim do Queen. Apesar de fã xiita, chata e arrogante, gosto de discutir isso (as vezes não admitindo que uma banda é mais genial que Beatles). E assumo, não gosto tanto dos primeiros albuns assim, só sirvo pra encher o saco cantando I Wanna Your Hand e She Loves You.

  7. Adoro Beatles, e eles estão entre minhas bandas favoritas sim. Mas tbm sempre achei q nem tudo q fazem é assim tão mágico e especial. Talvez eu pense assim pq meus pais e avós nunca foram seus fãs e os conheci de verdade já na adolescência. E acredito q isso q vc falou serve não só pros Beatles, mas no caso do Brasil, serve tbm pra muitos cantores da mpb, especialmente Chico Buarque.

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