PENSE OU DANCE: O VALOR DA MUSICA

No dia 29 de setembro, uma terça-feira, quando a Câmara dos Deputados decretou, por 441 a 38 votos, o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, o primeiro eleito pelo voto direto em quase trinta anos, acusado de uma articulada e descarada corrupção, eu não estava ouvindo a transmissão ao vivo – por rádio e tevê – do mais importante capítulo da história republicana brasileira. Eu estava com um ídolo.

Nesse dia, eu e uma amiga, por conta de um trabalho da faculdade, estávamos na casa de Angeli, o cartunista, o próprio, pra uma entrevista que não esqueço jamais. Era final de tarde, começo de noite. O cômodo onde ele nos recebeu está mais na minha memória do que qualquer outro acontecimento daquele dia: três paredes lotadas de vinis, do chão ao teto. E discos bons. Ramones, Velvet, Cure, jazz, essas coisas.

Durante a conversa, ele recebeu um telefonema e nos deu a notícia: “o Collor já era”. Mas foram os discos que ficaram na minha cabeça.

Naquela época, eu já tinha um bocado de discos também. Mas a quantidade não devia chegar ainda aos quatro dígitos, até porque era uma fase de transição pros recém-apresentados CDs (um momento em que muita gente se perguntava se dava fim aos discos de vinil e recomprava a coleção em CD, caminho seguido pela maioria, ou se duplicava a discoteca). Em resumo, a coleção de Angeli impressionou um garoto ainda universitário como eu e sem dinheiro pra tomar qualquer uma dessas decisões.

A mensagem daquele dia, pra mim, um adorador de música, um pretenso colecionador, não foi de vitória da democracia, mas de provocação: “quer ter todos os discos que deseja? Trabalhe e ganhe dinheiro pra isso!”. Virou uma ordem na minha vida, que, enfim, ficou no passado.

Esse dia histórico veio à memória não pelos vinte anos que o impeachment completa em 2012, mas por conta de algo que fiz essa semana: eu comprei uma música.

Comprei, comentei que comprei e todos pra quem comentei fizeram cara de “por quê?”. O espanto é compreensível, embora mereça de alguém como eu, em resposta, uma outra dose de espanto – ou de frustração.

Paguei pela música, no iTunes, noventa e nove centavos, com um gift card. Noventa e nove centavos. Mesmo assim, houve quem demonstrasse espanto: “por que não baixou de graça?”. Pois é, é bem simples baixar de graça (a música que comprei é facilmente “baixável” por aí – o disco inteiro é), mas vale fazer a pergunta: por que não baixar, se custa apenas noventa e nove centavos? Qual o preço que faria você largar o download gratuito e pagar pelo trabalho de alguém?

As respostas a essas e outras perguntas que um bocado de gente faz, seguindo a indústria musical, enfrentam um tempo em que nem mesmo precisam mais existir. Suspeito que não haja importância imaginar ou sugerir o preço de uma música, porque ela simplesmente parece não ter valor algum.

Tirando o colecionador de discos físicos (vinil ou CD), aquele sujeito que gosta de ter o produto em mãos e encher suas prateleiras como o Angeli; e aquela parcela da sociedade que não tem desenvoltura pra baixar músicas de graça na Internet – ou dinheiro pra comprar o caro produto final nas lojas, e por conta disso recorre a camelôs; sobra pouca gente que de fato se dispõe a gastar suas migalhas financeiras com música. A maioria recorre à infindável e gratuita biblioteca virtual.

Pressupõe-se assim que pra essa gente a música não tem valor.

É possível ver nas redes sociais o entusiasmo de fãs de música com o lançamento do novo disco de determinada banda, mas esse entusiasmo passa longe sequer da ideia de reverter a euforia em compra. Intui-se que pra essa gente, o artista deve criar, compor, pagar o estúdio, a mixagem, a masterização, a capa, a distribuição, lançar suas músicas e não receber por isso. Pouca gente da nova geração se dispõe a pagar por esse trabalho (claro, a culpa não é só dos jovens, é minha também, é sua, é do seu vizinho).

Pouca gente coloca valor ou enxerga valor na música como produto final. Quem paga por ela, recebe um olhar de espanto, como se fosse um ato de burrice, um desafio aos novos tempo, uma remada contra a maré. O fim do Megaupload causou mais chororô do que o fim da lógica.

É preciso buscar saídas.

Sou daqueles que professam que shows devem ser uma válvula de escape financeira dos artistas. Mas, obviamente, não é uma conta que se fecha só com shows, a não ser que o artista tenha uma boa quantidade de fãs dispostos a gastar alguns dólares de ingresso semanalmente e em várias partes do mundo. Esses são minoria, como dá pra imaginar. Por isso, é de se aplaudir iniciativas como essa da Amazon, embora esteja longe de ser suficiente. Quanto mais alternativas melhor.

Mas não estou aqui a tentar desenvolver um argumento que defenda os músicos, sempre mordendo a menor das fatias quando o dinheiro trafega nas vias oficiais. Estou espantado é com o espanto. Comprar música hoje em dia choca as pessoas – se você não for colecionador ou usuário abaixo do médio da Internet.

Aceito cada vez mais o argumento de que é preciso achar um jeito equilibrado pra que a música volte a ter valor, senão vamos ver em pouco tempo um mercado repleto de consumidores que não se julgam piratas, que são só cretinos; e músicos que se preocupam menos com a qualidade da obra (independente da criatividade), trabalhando em nichos cada vez menores, pra assimilar um menor impacto de investimento na obra que está criando.

Colecionadores vão sempre existir. Discos vão sempre existir. Músicos vão sempre existir. Mas é um mercado que não se sustenta com pouca gente metendo a mão no bolso. Então, é preciso resgatar os valores disso tudo: da música como arte pra humanidade e como renda pro seu criador.

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