PENSE OU DANCE: UMA DIVISÃO MAIS JUSTA

Acredito que todo mundo concorda: os serviços de música online, que proliferam aos montes nessa segunda década do novo século, são ótimos pra muita gente – pro público, que paga pouco e tem acesso a trocentos milhões de músicas; pros donos dessas empresas de tecnologia, que vendem um produto que não é deles, a música; e pros mesmos tubarões da indústria musical de sempre, que conseguem trazer pra legalidade uma vasta gama de consumidores que era atraída pela pirataria.

Só não é exatamente bom pros músicos. Já falei sobre isso aqui. Vale ler antes de continuar.

Esses serviços usam o que pode-se chamar de “sistema pari mutuel”, ou “sistema mútuo” de divisão de receitas. É assim: todo o dinheiro coletado vai pra um grande bolo, daí o serviço (o Spotify, o Deezer, Rdio etc.) tira sua parte de 30% e o que sobra é distribuído aos artistas (ou donos dos direitos), baseado nos números de execuções de suas músicas. Se quiser se aprofundar, eis mais uma vez o link onde o Spotify fica transparente nessa questão (iniciativa que reverencio).

Em resumo, se o artista (ou detentores dos direitos – que às vezes são muitos pra uma única canção) quiser ganhar mais, precisa convencer as pessoas a ouvirem mais e mais sua música nesses serviços.

Parece razoável e justo, se você pensar em (desculpe-me pelo termo) “meritocracia”. Porém, sabemos que não há meritocracia quando parte-se de pontos de partidas diferentes. Em outras palavras, a Kate Perry sempre vai ter mais audições do que uma bandinha indie iniciante qualquer brasileira, pelo simples fato de que a Kate Perry tem uma enorme estrutura de marketing atuando por todo canto. E não só ela, claro. Parece óbvio que os grandes medalhões da indústria vão sempre abocanhar a maior parte dos 70% que sobraram no grande bolo do sistema – embora nem eles estejam lá muito satisfeitos, como se vê com a criação do Tidal, por exemplo. Há de se equilibrar a questão.

Isso porque há um porém nessa questão que pouca gente leva em conta: esses serviços de streaming não ganham dinheiro com execuções de música. Eles ganham dinheiro com assinatura (e com peças de publicidade aos assinantes gratuitos). E isso deveria fazer toda a diferença.

Vamos entender como.

Digamos que eu seja um grande fã da Herod, banda brasileira de post-rock. De fato eu sou mesmo. Eu poderia ouvir a banda via Bandcamp e de graça na Internet, já que o quarteto paulistano oferece toda sua obra de graça aos seus ouvintes. Mas fã que é fã deveria querer que seu artista fosse remunerado pela sua obra pra que ele continue criando, produzindo, gravando.

Lá vou eu ouvir a maravilhosa faixa “Collapse”, do seu aclamado disco de 2013, “Umbra”. Ouço uma, duas vezes, três vezes. E só. Não ouço mais nada, de nenhum outro artista. E eu já paguei nesse mês os R$ 14,90 cobrados pelo serviço de streaming.

Pra quem vai esse dinheiro?

R$ 4,47 vai pro serviço em questão – o que, convenhamos, é “justo”, se você levar em consideração que houve um trabalho humano e tecnológico considerável pra desenvolver e manter tal serviço ativo; se você acha 30% “muita coisa”, isso é outra discussão.

R$ 10,43 vai pro grande bolo.

Mas quem recebe exatamente esses R$ 10,43? Bem, ele é dividido entre os artistas mais executados naquele período e certamente a Herod não está no meio. A banda que ouvi ali “uma, duas, três vezes” vai receber… menos que um centavo?

Como isso pode ser justo se eu, naquele mês, só ouvi a Herod e não ouvi Fernando & Sorocaba, Kate Perry ou Coldplay? Por que são justamente eles que vão ficar com todos os reais e centavos restantes da minha mensalidade?

Por incrível que pareça, é muito fácil resolver isso.

Bastaria atrelar a mensalidade aos hábitos de consumo de música daquele ouvinte naquele período de mês. Se eu ouvi só Herod naquele mês, só a Herod receberia os 70% restantes da minha mensalidade. Não parece mais justo? A banda receberia num mês R$ 10,43, o que no sistema atual, a US$ 0,007 por audição, levaria 481 execuções pra chegar a esse valor.

Se no mês eu resolvesse ouvir, por exemplo, cem músicas, sendo trinta e três da Herod, trinta e três do Coldplay e trinta e três do Fernando & Sorocaba, não seria justo cada um receber R$ 3,48, ou um terço dos 70% da minha mensalidade?

E se eu pagasse a mensalidade e não ouvisse nenhuma única música naquele mês? Parece-me justo que os artistas que me levaram a assinar o serviço, baseado na quantidade de audição em todo o período em que sou assinante, recebesse uma divisão proporcional desse dinheiro que entrou pro grande bolo e não foi “consumido”.

Dessa forma mais justa, o assinante está pagando diretamente àqueles artistas que ele ouviu ou ouve – e mais ninguém.

Uma outra mágica, em teoria, poderia acontecer. Ao invés de incentivar sua base de fãs a ouvir suas músicas, a banda poderia incentivar sua base de fãs a virar… assinante do serviço, querendo crer que seus fãs vão querer pagar pra ouvir suas músicas.

Isso equilibraria as coisas na questão da “meritocracia”, já que fãs da Kate Perry levariam dinheiro pra Kate Perry, sem esmagar as possibilidades de uma Herod ou artistas médios conseguirem uma rentabilidade justa.

É óbvio que estruturas massivas de marketing ainda seriam determinantes pra artistas do mainstream continuarem ganhando mais, o que de fato pouco mudaria pras grandes gravadoras. E é óbvio que os serviços de streaming deveriam continuar fazendo seus serviços de curadoria (a ferramenta mais usada pra isso são as playlists) pra incentivar as pessoas a descobrirem novos artistas. Mas fãs pagariam diretamente, com suas assinaturas, as bandas e gêneros que eles mais gostam, e não pagariam por tabela aqueles artistas que nem pensariam em ouvir.

E o serviço sempre ganharia, já que o bolo dos seus 30% cresceria. Conseguir mais assinantes não é o que um Spotify mais quer?

Além do mais, faria sentido esse tipo de estratégia que questionei aqui. Quanto mais artistas, melhor.

Você pode estar se perguntando agora, diante de tão clara constatação de que é possível remunerar de maneira todos os artistas, por que diabos isso não é feito?

A resposta pode estar em várias frentes.

Tecnologicamente é possível separar cada ouvinte em pequenas baias de preferências, identificando seus hábitos – isso é o Google e o Facebook fazem desde o início do século XXI – mas o custo dessa alteração seria impeditivo?

As gravadoras estão pouco se lixando pra artistas que não vão dar um tostão pro seu bolso. E os serviços de streaming são todos sustentados e apoiados pela alta indústria musical. Os artistas e selos médios não têm força pra forçar qualquer tipo de mudança.

E por fim, há a questão prática: de fato funcionaria e faria grande diferença na divisão dos 70% do bolo? Tirei esse texto basicamente desse outro aqui, já bem conhecido, escrito em 2014, cujo autor tem várias reflexões bacanas sobre o mercado (estadunidense, basicamente), e onde há uma tabela, ao final do texto, numa simulação mostrando que, sim, faria diferença pros artistas.

Então… por que não?

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