RESENHA: AQUILES GUIMARÃES – A VIDA DOS NOSSOS ANIMAIS

“A diferença entre o compositor e o cavalo é que o compositor transforma capim em música”. A diferença entre o compositor usual e o experimentador é que o experimentador transforma qualquer coisa em música, seja o capim, seja o cavalo. Aquiles Guimarães partiu de uma premissa inusitada: “utilizou como material sonoro regravações de áudio de vídeos do YouTube onde animais tocam instrumentos e cantam”.

A curiosidade em torno da experiência já vale a experiência em si, mas o resultado está pra além da mera curiosidade. Guimarães consegue nos trinta minutos de “A Vida Dos Nossos Animais” um interessante resultado que mistura pianos aleatórios, onomatopeicos cânticos de animais, um bocado de nonsense, e acarreta uma certa coesão. Mas, veja, nada é o que parece ser, embora tudo possa ser.

“Este trabalho é uma obra de ficção, qualquer dessemelhança com nomes, pessoas, animais, fatos ou situações terá sido uma mera coincidência”, diz o autor. Os nomes, os textos, os executores, tudo faz parte da loucura que envolve a obra. “Procurei, sempre que possível e com algumas exceções, a intervenção mínima, para que os gestos em questão fossem fielmente apresentados”, escreve o autor no livreto que acompanha o disco – livreto essencial pra compreender a viagem da proposta (a frase do compositor e do cavalo, que abre este texto, é atribuída a um inventado Gustave Charpéntier).

Embora a “piada” perca a graça no decorrer do trabalho, a seriedade que envolveria o suposto experimento suprime qualquer riso decorrente. Isso porque o trabalho impressiona quando se dimensiona o tamanho da encrenca pra realizá-lo. E, apesar da forma, as canções são de todo modo simples. À exceção da faixa inicial, uma maçaroca que envolve até “Atirei O Pau No Gato”, todas as outras são de invariável interesse. Avançando um pouco mais nos temas, é possível percorrer dramas, catarses e medos (“Larmes Canines De L’Amour (Aria Dramatique)”, “Toccatina Cavallo Labbro” e principalmente a trinca “Valse Pour Une Voix”, que parece um canto tribal, “À La Recherche De L’Os Perdu”, um choro angustiante, e “The Singing Cheshire”, praticamente um canto gregoriano).

Se você entrar na brincadeira e mergulhar no “campo patafísico”, aquele de “soluções imaginárias”, a obra de Aquiles se assemelha, eventualmente, a mostras como a do Museu de Zoologia UCL Grant, em Londres, que apresentam pinturas feitas por macacos, gorilas, chimpanzés e até mesmo elefantes. Curadores acreditam que tais trabalhos “levantam a problemática sobre a identidade da arte”, extrapolando os limites do que é ser artista e do que pode ser considerado “arte”. Aí, a coisa fica séria. Se estamos na busca pelo “belo”, certamente tudo é possível, mesmo que o “belo” seja baseado em estruturas determinadas por cada momento na história e cada sociedade – o “belo” é variável, como muito já se disse.

Trata-se de compreender o que entendemos como “arte”, mas também trata-se de desprender as amarras ou limites que se impõe a qualquer expressão artística. A discussão, mais profundamente, passa por questões filosóficas, sociológicas, psicológicas e antropológicas, claro, e nem se pretende chegar nisso aqui. Mesmo na linha ficcional, “A Vida Dos Nossos Animais” é mais uma pimenta nos olhos de quem já se acomodou. Nesse sentido, cumpre muito bem o papel: não é só um curioso experimento bem construído e criado, é uma divertida peça teatral de música.

1. Variationen Über Fünf Themen
2. Larmes Canines De L’Amour (Aria Dramatique)
3. Toccatina Cavallo Labbro
4. Félin Soliloque
5. Valse Pour Une Voix
6. À La Recherche De L’Os Perdu
7. Improvisazione Al Trotto Ritmo
8. The Singing Cheshire
9. Pocilga

NOTA: 7,0
Lançamento: 8 de abril de 2019
Duração: 30 minutos e 42 segundos
Selo: Seminal Records
Produção: Aquiles Guimarães

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