RESENHA: ASHLEY PAUL – LOST IN SHADOWS

Mas a música problematiza a relação com o real de forma que demonstra ao ouvido que os sons estratificados são apenas uma possibilidade endurecida. Cantando sobre os reflexos em que papéis de gênero se desassociam da natureza biológica, Ashley Paul resgata uma individualidade capaz de reverter a experiência no real vigente. Os sons “estranhos”, festivos e introspectivos convivem porque, pra cantora, só a partir da mistura é que o real pode ser invadido. Armada com a noção de coexistência, a força pra não sucumbir às estruturas vigentes passa pelo noção de que elas são apenas constructos.

Os sons lentos e arrastados distendem uma percepção moldada pelas experiências corporais, em que atribuições científicas são deixadas de lado pra beleza incipiente ser continuamente apresentada. Sobre o que as composições de formas-livres, com sons estridentes, podem falar a não ser sobre um testemunho que invade qualquer cronologia formal? Talvez a resposta esteja na capacidade de Paul angariar tantos fãs do livre-improviso quanto os de gravações em campo, à medida que a liberdade de sua música transita entre o onírico e um eterno-devaneio de quem caminha por um terreno continuamente nublado. Tal habilidade de render múltiplos instrumentos ao mesmo campo difuso que permite a ideia de “trânsito-estanque” reforçada ao longo de todo o disco. Como uma forma de arte tão bizarra e radical, surpreende que carregue consigo um amor rigidamente estabelecido.

Os sussurros líricos aparecem assombrados por algo invisível que se estabelece desde o início do disco. Os sons permitem a tentativa de formular o inapreensível, de maneira tal que, esteja ela falando sobre a filha recém-nascida ou sobre o vento, tudo surja como novidade poética que se transforma enquanto escapa. No entanto, o que sempre chega ao ouvinte é a distorção dessa apresentação, mediada por barulhos que sempre inauguram sustos enquanto se desvanecem.

Uma das características definitivas das faixas é que elas parecem sempre estar sucumbido ao irrestrito – como se elas fossem formas fixas continuamente desaparecendo, deixando inquietos rastros de existência. Usualmente focando no amor que prescinde de coisas como papéis sociais, ela cria um campo cujas silhuetas sempre atraem o que é difícil de determinar (os trabalhos de Paul parecem emergir do que é estranho e disforme, transformando-se numa familiaridade recipiente, disposta a acolher o indeterminado, aceitando-o).

Claro, o choque de percepção é musicado com o paradoxo do que é estranho enquanto os sussurros dela são definitivamente familiares. Em adição ao reconhecimento que brota de sua música, Ashley Paul capta os sons do mundo pra transformar em seus, pra transformá-los noutra coisa a partir de sua criação. Como muitos músicos contemporâneos influenciados pela música experimental, Ashley Paul transita no campo da expressão-pura, irrestrita à composição formal. Seu memorável afeto está disposto a acolher tudo que brota do mundo e da vida.

01. Blanquita
02. Reflection
03. Bounce Bounce
04. Night Howl
05. The Between
06. Breathless Air
07. Frayed Dreams
08. What Happens
09. Two Ships
10. Delirium
11. Broken Limbs

NOTA: 8,5
Lançamento: 5 de abril de 2018
Duração: 31 minutos e 06 segundos
Selo: Slip
Produção: Ashley Paul

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