RESENHA: GARFO – PRA COMEÇAR BEM

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Quando eu tinha 15 anos, era bem sozinho e só queria ter amigos. Levou uns dois anos pra que me soltasse mais e fizesse amigos. Nós saíamos e conversávamos sobre nossas pretensões: escrever, compor, ser diretor de cinema etc.

Então, a vida aconteceu e cada um foi pra seu lado com seus projetos fracassados, seus projetos bem realizados, seus empregos ordinários, casaram, se divorciaram, morreram, se mataram etc. Eu tive muitos amigos desde então e alguns desencontros, todos com suas desgraças, seus estilhaços, suas histórias. Agora, parece que também sou meu amigo, depois de acompanhar por tantos anos a história complexa de cada um. Tenho certeza que todo mundo encontra um amigo em si depois de acompanhar que todos estão assustados e não fazem a mínima ideia do que está acontecendo ou pra onde estamos indo.

É muito exigente e demanda o melhor de si ser um bom amigo pros outros, mas isso eu só fui perceber quando me mudei e fiquei sozinho numa cidade onde não conhecia ninguém.

Passei então a tentar ser um melhor amigo pros outros e pra mim, tentando sabotar minha indiferença e ironia pra realmente me engajar com as histórias alheias, tão intricadas e profundas e sensíveis.

Algumas vezes, alguns álbuns exigem que você esteja num ponto específico da vida e sente sozinho no seu quarto e os escute e dialogue com eles como se fossem um novo amigo e compartilhassem suas histórias como você escuta um bom amigo numa mesa de bar. Algumas vezes, geram sensações e emoções e isso refrata você, implicando diretamente em seus esboços reflexivos sobre sua vida e sua história. Algumas vezes, trazem sentimentos tão fortes que você encontra partes perdidas nas letras, nos arranjos e no turbilhão emocional que a música é capaz de realizar. Algumas vezes, eles falham e se desmaterializam assim que acabam, como um conhecido com quem você não compartilha absolutamente nada em comum.

Eu deveria ter deixado a nota de que isso começou como um pequeno desabafo sobre o rumo da vida e não sobre as inexplicáveis vibrações no peito que o disco causa. Em vez disso, eu tô tentando o meu melhor pra explicar como ele me fez perceber minha juventude e passar certos aspectos da vida a limpo. Eu ainda não aprendi a desenvencilhar um disco de minha experiência.

Então, mais sobre mim. No começo deste ano, eu tava sentando caçando coisas novas pra ouvir e me deparei com o Garfo no Bandcamp e achei o nome do disco bonito e gostei da capa e fui dar uma escutada.

Começa lento e quieto, mas perde tais aspectos logo depois do primeiro minuto de disco, transformando-se em uma celebração da noite ébria que se instala. As letras falam de sensações despertadas a partir da observação do mundo, de como o que é exterior puro transforma-se em matéria sensível quando convertido ao corpo. Afetuosas como são, devolvem o corpo devorado em forma expressiva que equilibra a relação entre as forças.

Eu não saberia o que acharia das letras se elas não fizessem tanto sentido pra mim, mas é impossível falar com indiferença sobre o que está grudado na carne. Elas são sobre essas coisas indecifráveis que são os objetos do mundo experimentado, numa tentativa aberta de se relacionar e estar aberto aos acontecimentos, às pessoas e assumir que na própria frustração interna há uma força residual que se expressa como discurso artístico.

Acho que o que consigo tirar disso tudo é o seguinte: nunca é exatamente sobre o valor musical, pelo menos pra mim, mas sobre sentir algo diferente que eu realmente não sabia ser possível experimentar.

Ouvir as músicas e perceber que o acaso fez possível que sua história construída desde o nascimento deixasse possível se relacionar com algo ou alguém que você nunca imaginou conhecer. Ouvir através dos aspectos concretos e encontrar pontos magnéticos enquanto o tempo passa e, se possível, criar afetos enquanto a vida se desenrola e a morte se aproxima.

1. Noite Ébria
2. Tá Tudo Bem
3. Da Costa
4. Vendaval
5. Para Rodrigo e Vinícius
6. Roxo
7. A Cara Do Ódio
8. O Combate
9. Pra Acabar Bem

NOTA: 8,0
Lançamento: 1º de janeiro de 2020
Duração: 24 minutos e 25 segundos
Selo: Independente
Produção: Gabriel Guimarães

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