RESENHA: GODASADOG – ESCORPIÃO

“Hoje”, o disco anterior, é de 2013 (veja aqui). Três anos depois, a dupla Godasadog lança o segundo disco, “Escorpião”, dia 21 de novembro, de maneira independente.

Victor Meira (também da Bratislava) e Adam Matschulat se encontram novamente, mas agora à distância, com Victor em São Paulo e Adam em Londres, pra produzir um trabalho bem ao modo dos novos tempo, de maneira online, com conversas e debates sonoros por canais eletrônicos.

“Foi um processo de enviar partes pra receber réplicas, entregar mais coisas, e ir somando, sempre com o carinho de não limitar o campo criativo do outro, mas também com assertividade, pra que a música não virasse uma geleia disforme e imprecisa. Algumas músicas foram compostas e gravadas em 2014, outras em 2015 e algumas ainda agora em 2016. Dentro do universo de cada música tem lapsos temporais e diálogos estranhos entre o eu de 2013/14, e o eu de 2016, assim como o Adam compôs também algumas bases lá em ’13 e ’14 e outras mais recentes”, explica Victor Meira no comunicado oficial à imprensa.

Ainda segundo o comunicando, “o novo trabalho nasce sob o signo mais polêmico do zodíaco: Escorpião. A dupla traz um tom distante, como se conversasse com o oculto, o duvidoso, o estranho, costurando percepções sugeridas”.

Mas na prática, pouco se ouve dessa ideia interessante. Ao contrário do “estranho”, do “duvidoso”, a dupla parece reconfortar-se no acessível. Durante as oito faixas, salvo exceções, o disco soa como se estivesse estacionado na prateleira das rádios mais preguiçosamente pop dos anos 1980. “Festa”, a que abre o processo, é um Guilherme Arantes sem a naftalina – peço desculpas se você gosta de Guilherme Arantes.

Há uma pretensa elegância nesse disco. O Godasadog parece querer dizer ao ouvinte que a dupla está disposta a agradar, como aquela visita que toma todo o cuidado do mundo pra não dar uma mancada na casa dos outros, medindo as palavras pra não ofender o pai do anfitrião, evitando certos assuntos, concordando com outros (independente disso demolir suas próprias convicções). “Escorpião” é um disco que não incomoda, mas também não se faz notar.

O que, paradoxalmente, é uma pena. Porque o Godasadog tem letras interessantíssimas. “Festa” é sobre o deslocamento dentro da sociedade: “Ouvi a festa de trás do muro do mundo / Uma sombra se formou na minha cabeça / a ideia do prazer escondido / fora de alcance / proibido / sussurrado nas gargantas do meu ouvido”. “Espera” é sobre a impossibilidade de se encaixar nas exigências: “Hoje eu não vou me atrasar / Eu preciso esperar / eu tenho que esperar”.

“Trauma” é sobre a violência natural da vida: “Xícaras estilhaçadas de chá / um corpo inchado de açúcar / sangue preto de homem coagulado / vago mais / (…) onde eu despejo os cacos de trauma?” (eis uma pergunta que vou me apropriar a partir daqui, porque os traumas cotidianos merecem uma pergunta dessa).

Porém, como disse, há exceções. “Infância”, com seu rap elegante (aqui, um elogio), destoa da fluidez fácil do disco. Seu final oferece o motivo de se fazer esse disco: “porque a Terra corre solta, gira aflita enquanto muda / e a gente segue montado no casco da tartaruga / vou riscando as páginas desse meu livro velho / contando tudo o que faço, do berço ao cemitério”. “Treta” também está nesse bolo de exceções: defende a juventude que teima em peitar o status quo do Brasil atual, da retirada de direitos, se expressando com as armas que possui (“Os ternos rasgados / e os carros queimados / redenção / Eu acredito na treta / na treta, na treta sente o molotov queimar / Eu acredito na treta / na treta, na treta / desfigurar a imagem / será lançado à margem / não vai ter mais vantagem sobre nós” – valeria colar aqui a letra toda), enquanto a montagem da música, em camadas de vozes confusas defende bem a temática. E “Sargas”, o tema instrumental final, vale o peso de se chegar até lá.

“Escorpião” não tem peso, o que é uma pena. A contundência das suas letras sobressai-se em tempos de bandas que têm pouco a dizer. É um disco bem intencionado, infelizmente. Fosse punk, noise, grindcore, sei lá, talvez casasse com poesia tão cortante. Ou talvez eu é que esteja pensando dentro da caixinha, achando que tais temas tenham que estar encaixados em certas sonoridades.

O fato é que meu cérebro não concatenou as coisas. “Escorpião” tem algo a dizer, definitivamente, mas não diz do jeito certo. Fico imaginando essa juventude que sai puta da vida às ruas, quebrando vidraças de bancos e incendiando pneus e carros, protestando contra governos que insistem em retirar seus direitos e perspectivas de vida, pedisse desculpas por fazer tudo isso pra ser ouvida. Essa é a arma dela contra o sistema que se esforça pra se manter como é, com os mesmos privilégios.

O que espero é que a arte chegue na casa dos outros com os dois pés na porta, sem pedir licença e muito menos desculpas. É certo que há outras formas de se lidar com o oponente. O Godasadog escolheu amaciar o trato.

1. Festa
2. Espera
3. Trauma
4. Infância
5. Treta
6. Bairros
7. Escuridão
8. Sargas

NOTA: 4,0
Lançamento: 21 de novembro de 2016
Duração: 33 minutos e 38 segundos
Selo: Independente
Produção: Victor Meira e Adam Matschulat

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