RESENHA: HOLLY HERNDON – PROTO

A coleção de músicas do último trabalho de Holly Herndon demonstra um apelo aos sentidos. Em sua áurea comumente chamada de avant-garde, as dissociações das vozes formam um coro erigido através da música de laptop. Há uma completa recusa em seguir prognósticos da música mainstream, ainda que se apropriando, nitidamente, de procedimentos dela pra formatar um campo em que a subjetividade artificial ganhe o espaço que merece.

Herndon vê seu procedimento como se houvesse “…no real trajectory for that, there’s no real model for that…”. “Proto” explora a tecnologia não como mediação entre o ser humano e o mundo, mas como um ente em que há subjetividade própria, uma manifestação que foge do controle criativo da produtora. E isso não é transfigurar um conceito primário à necessidade do ouvinte, mas “talk about the actual joy of the music-making and that it is hopefully music that people can just hear and enjoy without necessarily knowing all the ins and outs of it” (“falar sobre a verdadeira alegria da criação musical e a música que as pessoas esperam ouvir e curtir sem necessariamente conhecer todos os meandros”). O resultado é um fonema quebrado que surge dentro de uma embalagem domesticada, um cavalo de troia, cuja invasão disruptiva quebre a objetividade da palavra e permita que uma contínua imanência se aproprie da trajetória circunscrita do disco.

Herndon oferece múltiplas abas de um navegador que colecionam uma experiência própria enquanto ficam esquecidas, ao tempo em que o usuário desce o feed do Twitter. Há uma vida própria, espectral, propagandas de cinco segundos, vídeos de famosos, sons do Skype, uma múltipla dimensão cujo início e fim passam desapercebidos, pacotes digitais libertando-se das melodias relatáveis e ganhando estranheza com um idioma anteriormente conhecido. Claro, a velocidade com que os nervos percorrem esse percurso não estipula um período determinado e as superfícies digitais desafiam uma lógica de racionalização. É tudo uma reação rápida de uma superfície que se basta.

Se você quiser adentrar mais e mais nessas abas, há de se ter a noção de que elas são intermináveis. Elas fecham e geram cookies, mercadorias que diagnosticam em qual molde do algoritmo de tags relacionáveis você se encaixa. A história de um muro, entre si e o outro tecnológico, que é quebrado e reconstituído ciclicamente, sendo o usuário/ouvinte responsável tanto por parte da destruição como parte da construção, sendo que a outra parte se esvai, dissolve-se e é consumida. “Proto” é uma resposta à utilização pós-moderna da tecnologia, porque não conceitua a linguagem ou a relação de poder como originários da subjetividade, mas aufere a subjetivação da tecnologia, antes impensável nos moldes humanistas. É uma mistura surreal da convivência com a tecnologia, um resultado da paranoia de estar sempre online. Críticos, eu incluso, ainda não conseguem classificar essa relação porque não há como não ser refém dela. Em vez de moralizar esta narrativa, a produtora permite que o outro tecnológico ganhe vida, surgindo com barreiras e empatias próprias. Essas faixas trazem a recusa da simplificação, uma abertura completamente percebida porque necessitam de uma correlação pra existirem. Mais ao ponto, o procedimento de Herndon é desmistificar o tesão, tão comum entre ouvintes e músicos contemporâneos, de se encontrar a referência. Não importa a fonte ou o sample, mas como a criação da diferença e da harmonia pode ser percebida musicalmente. Também, neste álbum, a inteligência artificial é creditada como responsável pela produção, estabelecendo um aceno público de que a criatividade não é privilégio dos seres humanos. Em tudo isso, as músicas de Herndon demandam uma valorização radical do que se entende por criação.

Ainda assim, até em que se sabe, “Proto” necessita da estipulação humana pra ser concebido em qualquer dimensão.

A música de Herndon abraça a criação digital como uma alternativa concreta aos algoritmos. A diferença não surge da sonoridade radical, mas da utilização diversa desses mesmos sistemas online que condicionam uma padronização sociocultural. Faixas como “Extreme Love” afirmam uma fragmentação selvagem; ouvindo-a cuidadosamente, percebe-se uma divisão entre paisagem lunática e afirmações contínuas de dúvidas sobre espaço, asteroides e buracos negros. Elas são maravilhas de um tempo perfurado que une o astrofísico absoluto ao ser humano isolado em seu quarto, apenas com a luz azulada do notebook sinalizando algo em meio à escuridão. Ao mesmo tempo, elas são tocadas com algum ritmo, alguma harmonia quebrada que permite os questionamento mais complexos, dentro de uma estrutura sonora relativamente simples e melódica. Essas faixas induzem uma inclinação à plena digitalização, mas são músicas em seu sentido mais tradicional. Não relegam o passado. Alimentam-no.

A opacidade, os questionamentos vazios, é perfurada por uma velha certeza de composição musical, que beira o classicismo ou a música religiosa. A melhor das faixas em exibir isso é “SWIM”, que parece ser um intercâmbio entre os períodos mais sombrios e aceitáveis de uma sociedade pós-apocalíptica. Herndon tem sempre vozes distorcidas ao seu dispor, que funcionam como instrumentos de uma construção alternativa em cima de antigas construções sonoras. “Evening Shades (Live Training)” prova a inclinação religiosa, mas interpelada por um cenário decadente em contínuo desmoronamento, como se a ação passasse-se numa espécie de mosteiro digital localizado numa indústria ruidosa depois de uma explosão nuclear.

Conceitualmente, o sucesso de Herndon é em catalogar a tensão entre a contínua alimentação cibernética e um legado musical com o qual ela trabalha (ela foi criada no Tennessee, em meio a lições bíblicas e corais religiosos). Em adição a isso, ela trabalha o álbum como um elemento de composição anterior a alguma formulação engajada.

Ela pega emprestado esses “si” digitais que circulam normalmente em prol de empresas capitalistas (Google, Facebook) pra tentar diagnosticar a ruptura em que eles possam ser potências criativas. A extração pra de ser grotesca e bizarra e há uma troca de possibilidades entre vozes mercantilizadas. O comprometimento de Herndon com a gênese digital é em criar uma alternativa em que a automação saia do papel malévolo tão normalmente difundido nas ficções científicas pós segunda guerra mundial. Herndon sai da reclamação óbvia e fácil de “somos todos algoritmos” pra estipular uma realidade palpável em que a dimensão criativa seja potencializada pela inteligência artificial. Isso parece ser a demanda certa ao imaginar computadores como co-intimidades que auxiliem na visualização de um futuro livre. Há uma braveza pouca vista na música e teoria crítica contemporâneas, que assume no presente uma transformação mais profunda do que simples armadilhas verbais.

01. Birth
02. Alienation
03. Canaan (Live Training)
04. Eternal
05. Crawler
06. Extreme Love (com Lily Anna Hayes e Jenna Sutela)
07. Frontier
08. Fear, Uncertainty, Doubt
09. SWIM
10. Evening Shades (Live Training)
11. Bridge (com Martine Syms)
12. Godmother (com Jlin)
13. Last Gasp

NOTA: 10,0
Lançamento: 10 de maio de 2019
Duração: 44 minutos e 07 segundos
Selo: 4AD
Produção: Holly Herndon e Mat Dryhurst

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