RESENHA: KANYE WEST – YE

“A verdade volátil das nossas palavras deveria denunciar incessantemente a impropriedade da nossa expressão residual”.
– Henry David Thoreau, Walden

Talvez os sons excessivos da produção atual vão estabelecer outra relação, uma relação na qual as gerações vindouras criem uma intimidade brusca com quem produz a música e a assimilação do conteúdo seja como ambos desvendando enigmas através das fraquezas um do outro. É o caminho que rejeita as estipulações fáceis e faz o ouvinte imergir nas desconformidades e, principalmente, nas fragilidades de todos. A composição deste disco não poderia vir numa hora mais apropriada pra mim, em que cada vez mais confundo qual a minha posição perante as coisas e qual a posição coletiva e, principalmente, se realmente tem alguma diferença.

Por essas pessoas que me rodeiam e são tão diferentes de mim, eu passei a sentir um enorme agradecimento. O que o originou é que elas têm histórias completamente opostas às minhas, e eu cada vez mais espero poder me emocionar com o convívio com outrem. Eu ouvi este disco numa época em que não me importa mais a estabilidade das relações, mas sim o que elas podem cocriar enquanto perdurarem.

Kanye West segue lembrando-me de que estamos todos perdidos, tanto eu quanto ele, e que – embora fosse mais fácil ficar afirmando nossas divergências financeiras ou políticas – uma amizade pode brotar nessa perdição. Kanye West guia-me por um mundo de presunções e paranoias, em que as coisas mais impossíveis estão acontecendo e nossa exposição é sempre retirada do contexto original pra ser alçada na fantasmagórica tribuna virtual (O disco de Kanye West conclui de forma bem enfática como as pessoas acham que o problema sempre está fora delas, de que a causa pras coisas horríveis acontecendo sempre vêm do outro. As afirmações individualizadas surgem da incompreensão, e não de algum posicionamento específico alheio, e essa incompreensão confunde medo com resistência – daí as palavras de enaltecimento por uma “causa” em caixa alta nas redes sociais. Um álbum como “YE” reflete as oscilações de humor neste mar de convergências. Kanye West distorce projeções pra especificar um fenômeno que oprime a individualidade do ser que, então, uma vez percebendo-se sem saída, prefere por retaliações morais do outro. “Wouldn’t Leave” termina com um spoken word do rapper falando algo sobre lealdade, enquanto a canção se desmancha em um bonito arranjo de piano, confirmando a confusão do posicionamento de si no oceano alheio: ele está falando sobre ele mesmo, sobre alguém específico ou está generalizando?).

É horrível ver alguém caluniando outrem, mas o alheio aparece no álbum como espelho oscilante das obsessões sociais aleatórias. A agressividade de “Yeezus” fazia você querer desmanchar esta pressão, enquanto “The Life Of Pablo” tentava construir um santuário próprio pra abstrair-se, mais ou menos purificado, de toda a loucura. Então, de repente, surge este álbum que é uma tentativa de harmonizar com os outros o que era escudo-próprio em “The Life Of Pablo” (a resolução de Kanye West pode oferecer esperança porque as afirmações no disco, ainda que dotadas de um imenso narcisismo, demonstram um movimento na direção do outro. Diferentes personalidades e constructos são levados em conta pra afirmar a confusão de quem se percebe desmantelado no caos social. Kanye West, cantando e produzindo músicas, luta por uma conectividade e reconhecimento que seriam impossíveis apenas pessoalmente. O que significa estender sua arte a uma lacuna de sua pessoa pra ser um compositor melhor, ao contrário do que afirmou Meaghan Garvey em resenha pra Pitchfork. Escrevendo letras como “No Mistakes”, Kanye West comprova que ainda quer ser o melhor rapper do mundo e apenas mudou a abordagem pra isso – aliás, como é possível pra Garvey inferir que ele não tem mais essa ambição e relacionar essa afirmação à criança de Chicago que ela nunca conheceu? Não é difícil ver que as pessoas estão preocupadas com as afirmações políticas do rapper, mas por quê? Porque são diferentes das delas? Por que elas projetam no ídolo uma idoneidade que nunca conseguirão esboçar? Talvez nós estejamos consumindo paradoxos e usando ideologias borradas pra autoafirmar uma imagem própria de liberdade que nos é negada. Talvez a interação diária com pessoas da mesma bolha não só criem ciclos críticos autoimunes, mas também execrações automáticas pra não ser abandonado desta bolha. Kanye West, uma vez percebido a ameaça desses olhares maldosos, constrói um disco pra ser consumido com a parcela ainda não moralista dos ouvintes, transformando a incompreensão em algo partilhado. Algumas linhas hilárias de Kanye West não o impedem de afirmar que ele mesmo se assusta consigo e seus pensamentos. O álbum abre com raciocínios aleatórios que demonstram um pouco de fragilidade, mas jamais deixam de exibir uma autoafirmação incansável).

Então Kanye West não quer escapar de suas opiniões e fantasias secretas de modo escorregadio. Neste ponto, afirmar-se através de potenciais erros transforma-se em base sólida pra progredir através da hiperexposição. Mas, como em “Ghost Town”, talvez as pessoas percebam isso de modo unilateral e o amor irrestrito transforma-se em uma percepção reduzida do que o disco trata. No início de “Violent Crimes”, ele diz a suas filhas: “Fallin’, dreamin’, talkin’ in your sleep” e depois as tira desse contexto idílico pra demonstrar um mundo impugnado de violência e tristeza (outro elemento crucial deste rap é que ele não pede perdão a ninguém, mas impõe-se através da aceitação).

Canções como “Yikes” estão compromissadas com o medo real que o rapper sente de continuar fazendo o que tem feito: “Sometimes I scare myself, myself”. Apesar de essas fantasias secretas não aparecem tão épicas quanto em outros trabalhos (o disco não tem nem vinte e cinco minutos), é a condensação afirmativa que possibilita uma forma de lidar com elas sem negá-las. De acordo com Kanye West, ele não aceita conselhos de pessoas menos bem sucedidas do que ele. O rap permanece como o campo da contradição progressiva, em que não recuar e afirmar-se no tribunal contemporâneo é o método-contínuo de sobrevivência artística e íntima. A manifestação do artista não apenas possibilita uma relação com o objeto que é sua arte, mas, quando puxada ao paradoxo, permite ao ouvinte que reavalie suas relações com as coisas que julga importantes. E nada mais firme do que a estética particular do rap pra evidenciar resíduos escondidos atrás das máscaras sociais. Essa qualidade assombra porque afirma, crua e metaforicamente, que há um outro completamente inacessível (essa inacessibilidade produz os fantasmas do desprezo e do cinismo).

Sua natureza hiperexposta confunde-nos porque não está facilmente demarcada na bússola moral a qual, invariavelmente, recorremos. Nossa reação é bruscamente espelhada quando o rapper falar de todas as coisas diárias (comer, tomar café, mexer no Instagram, andar de carro) em sua confusão habitual, enfrentada por nós todos os dias. As passagens valem porque o delírio de alguém cuja imagem é bombardeada diariamente nos grandes veículos readquire um espantoso valor expressivo quando confrontada com coisas que se julgam cotidianas.

As vozes, emprestadas por outros cantores no disco, são todas partes do mesmo delírio do desconhecimento. Profusão de palavras como “Make no mistake, girl, I still love you” podem soar esquisitas em meio às palavras mais “ofensivas” e ambíguas, mas, a partir de “The Life Of Pablo”, o rapper tem polido incríveis versos simples e bonitos em meio ao martírio das aparências consumidas. Confusão, medo e espanto também são revelados em versos como “And nothing hurts anymore, I feel kinda free”. O que todas essas afirmações que se contradizem e se justapõem significam? O que ele está fazendo reunindo tantos samples, vozes e versos opostos e colocando-os no mesmo quadro?

Kanye West faz músicas cujos humores alteram-se sobrepostamente sem nenhum receio de parecer espalhafatoso. A paixão expressiva não se detém sobre o alcance dos fatos ou dos tipos diferentes de produzir faixas no mesmo álbum, ela alardeia-se com o mesmo ímpeto sobre todos os fatores (bons e ruins e indiferentes) que existem na vida do rapper. Está tudo ali: “See, that’s my third person / That’s my bipolar shit …”. É como um tipo de confusão sobre os valores e a maneira de imunizar-se pra elas não o sufocarem. Kanye West desenha os prazeres e suas possíveis ou não consequências e o tipo de paranoia e sensibilidade que isso traz simultaneamente.

É envolvendo-nos em suas contradições que o álbum consegue ser fidedigno das complexidades que a vida exige. Kanye West destina toda sua agressividade, redenção e empatia ao mesmo todo. Nessa tenuidade movediça que ele caminha e faz suas afirmações, sem tentar adentrar qualquer terreno específico. É uma performance musical em honra a pessoa que se é, a que se deseja ser e o eterno movimento de ruptura-reconciliação que isso envolve. O rap recontextualiza as predileções morais pra puxar o ser ao seus extremos e mostrar suas ações enquanto reflete sobre tudo sem parar de fazer o que está fazendo (de fato, almejar ser uma pessoa boa não impede alguém de dizer coisas idiotas. A Internet, meio em que o rapper mais se manifesta, é prova da contradição intrínseca ao fato de ser humano).

Existem numerosos movimentos que caracterizam alguém como artista, mas poucos não filtram seu lado humano pra extinguir a dualidade entre estes e aqueles.

1. I Thought About Killing You
2. Yikes
3. All Mine
4. Wouldn’t Leave (com PARTYNEXTDOOR)
5. No Mistakes
6. Ghost Town (com PARTYNEXTDOOR)
7. Violent Crimes

NOTA: 9,0
Lançamento: 1º de junho de 2018
Duração: 23 minutos e 44 segundos
Selo: GOOD Music
Produção: Kanye West

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