RESENHA: LARRY WISH – HOW MORE CAN YOU NEED?

Há alguém lá fora pronto pra trazer o colapso de um novo testemunho: uma era em que compramos as coisas na televisão e elas agigantam-se até sair da tela e estar ao nosso lado enquanto desfrutamos de sua presença até enjoar delas. Essa resenha vai falar sobre o delírio do consumo, o delírio de poder desfrutar de coisas estando na paranoia do utilitarismo. Em vez de descrições, irá se lançar ao incrível mundo em que paletas de cores formam um infinito blindado por visões fascinantes.

Como eu mencionei na primeira linha, há alguém lá fora pronto pra dar o bote: ele é o olho-liberal encarando-me por todas as telas, ele é o amigo do mundo que faz girar a roleta em uma máquina de apostas. De repente, todas as máquinas começam a ligar, o salão está cheio, cores e perfumes caros infestam o ambiente, não dançar é impossível. Não há como estar alheio ao espetáculo. Vários elementos estéticos sob a criação do design, da propaganda e de algum complexo industrial ressoam e são a música da atual época; uma máquina, no entanto, está quebrada. Ela funciona ininterruptamente e não premia os apostadores vencedores. E o ato musical dela é ressoar em ritmo totalmente dissonante das demais. Apesar de poder emitir apenas os mesmos sons, sua falha mecânica decreta uma musicalidade que nenhum habitante do salão havia imaginado. É como se ela estivesse tentando se redimir do uníssono constante. Veja bem, todos sempre pensaram que havia uma multiplicidade incrível de harmonias até se deflagrarem com o defeito crônico dessa máquina. Um novo mundo sonoro se abriu. Ela nos convida a reagir emocionalmente, em meio ao esgotamento sonoro anteriormente imperceptível. Há muita música criada pra nos arremessar na monotonia, mas quando um convite assim é realizado não se pode negar. Deve-se estar aberto a um acontecimento que rompe a continuidade entediante das produções diárias. Por enquanto, nós vivemos em um salão, mas que em breve será fechado. Essa finitude seria totalmente esquecida se não houvesse uma bendita máquina pra lembrar que o tempo aqui é escasso e, ainda pior, indeterminado. Há alguém lá fora pronto pra dinamitar tudo e se perceberá os próprios delírios humanos quando as máquinas implodirem e o palácio de cristal for abaixo. Se a pessoa lá fora conseguir quebrar as janelas e o maquinário implodir, apenas aquela máquina solitária e maluca não cessará seu funcionamento. Ela sempre esteve apta à disfunção e vibrar em outra ressonância lhe é tão habitual que uma invasão estrangeira pareceria tão inofensivo quanto risível. O som da transformação sempre habitou nas entrelinhas das produções plastificadas.

Trabalhando sob essa ambientação opressiva e, paradoxalmente, rica em detalhes que a investigação de Larry Wish ressoa no maquinário contemporâneo. Mas ele vê o outro lado dos jingles de comerciais e salões de apostas de Las Vegas, ele aponta pra um outro, pra uma diferença, pra um evento. Ao ouvir pela primeira vez, reconheci uma gentileza imediata que aos poucos foi evidenciando-se como farsa, como elemento introdutório pra uma descontinuidade alojada no interior de toda comodidade. Na verdade, o que o músico me fez perceber foi que pra cada condimento estático há uma variedade de perspectivas camufladas na relação monotemática que eu tinha com a música. Finalmente, o glamour do clímax tecnológico reconduz-me pra outros acessos: as máquinas quebradas dispostas no vasto salão ganham outro tipo de vida e ambientam uma percepção pós-desgaste. Elas soam resignificadas e reincorporadas pela noção da finitude, de que elas quebram e viram ferro velho.

É o som de karaokês que se recusam a harmonizar a melodia do cantante, mas surpreendem-no porque são capazes de coisas maravilhosas além da continuidade pré-programada. As vozes não vão seguir melodia alguma, elas são violentamente arrancadas do entretenimento e caem no abstrato campo da relação. “How More Can You Need?” transpôs o tempo usurpado das vozes claudicantes de “Born Outside My Window” (2015, ouça aqui) e mergulhou na antonímia pra circundar como um fantasma sobre as máquinas e o destroços. Em face disso, o que pode alguém fazer senão aceitar o terreno exaurido e passar a produzir algo a partir dos vestígios? O que se pode construir enquanto alternativa? Os trabalhos de Larry Wish parecem crescer dos vestígios esboçados em grandes franquias televisivas pra depor sobre o mesmo universo ultratecnológico, mas evidenciando outro local de chegada. Claro, essa noção alienígena é passada, principalmente, através da progressão eletrônica de suas manipulações, em que a composição formal pode ser verificada com certo rigor.

Além de Jarry Wish, há outros produtores trabalhando com esse tipo de noção alienígena extraída das progressões eletrônicas: Johnny Jewel, Remember e Mukqs, todos lançaram álbuns que se relacionam com o excesso sonoro como acesso possível à outra realidade (ou a superação da atual). Como esses músicos, Wish não recusa as inovações nem as ideias clássicas de melodia, utilizando a composição formal pra ultrapassar as simples justaposições de barulhos, como fazem os artistas eletrônicos mais imediatistas e, normalmente, mais conhecidos. As incríveis melodias memoráveis de “How More Can You Need?” são capazes de envolver o ouvinte e conduzi-lo a acessos que se deslocam com a precisão detalhista do álbum. A imagem da capa é representativa neste ponto: pode-se reconhecer todas as formas que a integram, mas a transposição incomum de cores aponta outra forma de abordar o mundo dado. Deslizando entre rochas inconstantes enquanto irrupções de neons piscam transformando a silhueta em algum espetáculo do século XXI. Emparelhadas no frenesi sensorial, as melodias dissolvem-se em pura alucinação. Em cada nível desses elementos, a lembrança constante de que esses sons não são “reais”, mas meros auxílios pra uma forma diferente de transitar pelo que se entende como realidade.

Tomando nota nas melodias alienígenas que lentamente se desenvolvem pra um excesso temático, o álbum parece remeter a um tempo disforme, ainda porvir. “A Lot Of Fun”, terceira faixa, pode ser interpretada como a utilização positiva do agradável nascido da abundância tecnológica, uma vez que as potencialidades das máquinas já não seguem mais a lógica de produção. Como uma cultura, cabe, também, ao campo da música interpretar uma alternativa sonora que especule outra realidade pros instrumentos dispostos. A música permite essa interpretação de possibilitar uma utopia, antes presa em convenções de reprodução e delírios consumistas. Nós podemos passar por cima de sons que copiam o passado e reagir a partir de acontecimentos que simbolizem uma transição da realidade instituída pra uma abertura sensorial ao mundo.

Em vez de vivermos com músicas que republicam os grandes sucessos ou inovações do passado, nós podemos nos apegar ao trânsito do tempo e envelhecer levando sempre adiante a necessidade de experimentar uma alternativa mais rica e menos falsificada do que a música poderia ou não ser. Do que é, ou não, bom.

A música eletrônica progressiva é um bom sintoma de como é possível identificar os defeitos da nostalgia do presente na produção musical enquanto tenta se estabelecer uma outra forma de experimentar o real. Se os primeiros produtores (mais notadamente o Kraftwerk) interessavam-se por sons que esboçavam uma mecanicidade refém do automatismo liberal, cabe aos novos enriquecerem esse repertório com uma alternativa a certo modo de vida. Através de seu curto tempo, a música eletrônica foi acelerada o suficiente pra dar ao ouvinte a sensação de estar em outro planeta. A mistura de aceleração, melodias e sons esquisitos possibilita a construção de um espaço alienígena que visite o ouvinte que se deixe ser visitado. Nas palavras de Frank Falisi, em resenha pro Tiny Mix Tapes: “Isto é o que a música deve ser, a oscilação do ar em algo maravilhosamente não concreto” (tradução minha).

Apesar de os sons existirem em ambos os polos (o que de fato se ouve e o que se cria a partir dessas sonoridades), eles oscilam e vibram pra levar o ouvinte a algum lugar. Sons que zombam da quantidade de coisas e que se fundam nesse excesso pra redirecionar artistas e ouvintes. A música popular funcionou assim por um bom tempo até que ela se viu recuada a apelar somente ao entretenimento e falsificar certa ideia de passado musical e vendê-lo como retrô, vintage ou revival.

A forma padronizada de composição posiciona o ouvinte com uma única alternativa de como a música poderia ser feita e, consequentemente, experimentada. Se é uma coisa contida no inconsciente ou algo assim, cabe a discos como este fazerem o ouvinte reavaliar sua relação com a música enquanto ele, de fato, experimenta uma alternativa divertida. Não é coincidência que as músicas do álbum tenham a duração de esquetes publicitários enquanto apresentam um conteúdo que se move, sonoramente, em tantas esferas e possibilita uma intimidade imediata. Larry Wish, assim, satisfaz questões como legado versus novidade ambientando uma composição que ressoa em conteúdos muitas vezes assimilados (principalmente pra quem jogava videogames da primeira geração), expondo uma abertura a um evento quando todo o aparato se rompe e aliena o ouvinte. Eu estava cansado de ouvir os mesmos sons e, de repente, descubro que eles podem estruturar um novo mundo em que ainda há muito por preencher. Mesmo pra quem consome uma quantidade significativa de música desde muito novo, as sonoridades moduladas fizeram-me experimentar algo indescritível. Tornei-me, novamente, acessível à criação.

01. Buying Things On TV (2.0)
02. Never (Star Track)
03. A Lot Of Fun
04. Coin Invention Coin Convointioin
05. The Person Is Gentle
06. The Best Feeling Is WUXGA
07. I Can Fly In Love With You
08. Sleeping With The Dance (Dancing, Sleeping)
09. Hidden Ffolderes?S-Files
10. Near

NOTA: 8,0
Lançamento: 1º de abril de 2018
Duração: 28 minutos e 11 segundos
Selo: Field Hymns
Produção: Larry Wish

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