RESENHA: LOLINA – THE SMOKE

Músicos pop não devem ser julgados antes de você ouvir o sintetizador.

Considere que Lolina (Inga Copeland) esteja te guiando através de Londres e você nunca esteve em Londres e ela não está nem um pouco a fim de lhe mostrar os pontos turísticos ou cartões-postais lotados de visitantes ricos e chatos. Lolina teria sido chamada de “corajosa” por algum conterrâneo, mas ela parece bem e parece conhecer os becos e vielas tão bem como as palmas da mão. Então, talvez esses mesmos conterrâneos ficariam surpresos com os locais que ela tem pra mostrar: como se uma cidade completamente diferente fosse evidenciada quando o álbum começa.

Lolina é o equivalente desse mistério assombroso e sedutor ao evidenciar-se recantos escondidos, quiçá proibidos, do lugar onde se vive. Se Lolina levasse-me pra esses lugares, ficaria amedrontado e surpreso com as coisas que se desenrolariam. Vejam bem, estou falando de um lugar onde não conheço nada e deve existir muito próximo aos esgotos e ruas esburacadas da minha cidade.

Mas talvez nós já tenhamos andado por aqui, poderíamos pensar. Não é sobre estas pontes desestruturadas e esgotos fedidos por onde passamos, todo dia, pra ir comprar pão? Afinal de contas, há uma vida subterrânea confluindo sob estas ruas. Nas peças que se desenrolam, uma vida vacilante trafega entre rupturas e sons transpondo sintetizadores, retirando constantemente o ouvinte do lugar-estático e causando uma paranoia com o som incisivo de goteiras e ratos num coro do cosmopolitismo não revelado. Esses são sons-temas que passam escondidos pela percepção obrigatoriamente turística e histórica que é imposta ao se trafegar por esses lugares; quando os lugares-consumo recuperam um pouco de suas manchas que os vestígios passam a dizer algo verdadeiro. Essa música não nos tira da estupidez perante as forças-naturais, mas ela reintegra, através dos artifícios sonoros, o caos da natureza infiltrando cidades-modelos globalizadas.

Pra virar a música em um retrato-fluído dos rolês pela cidade, a produtora tem de ser honesta e manifestar todos os desvios e aleatoriedades alienígenas encontradas e filtrá-las o menos possível. Por isso, o disco carrega um peso paranoico, porque ele está carregado com o excesso apreensivo da artista. A hilaridade de Lolina trafega junto com a seriedade de alguém que prefere o trânsito-contínuo do que o deslumbre.

“The River”, quarta faixa, abre uma cisão com a cidade e o ambiente opressivo até então: as batidas continuam esmagando enquanto as intromissões malucas de sons não identificáveis evidenciam que algo está fora de controle, que algo nunca vai ser apreendido não importa o quão rápido se ande pela cidade. Então Lolina, ao se deparar com o rio (que é o nome traduzido da música), fica suspensa: aquele é o ponto-zero da ilha londrina, aquilo delimita sua cidade, sua música e seus movimentos expansivos. Nesse momento em que os olhos encontram a prisão física enquanto o caminho lotou o transeunte de experiências: “minha direção não é você”, ela repete em “A Path Of Weeds And Flowers” e, assim como o nome dessa faixa, o disco é uma descrição do caminho e as emoções nascidas das frestas que invadem a cidade e, ao mesmo tempo, a limitam. Mas, como em “Murder”, o desenho dos resquícios retrai uma obscuridade periférica e isso inunda o próprio autorreflexo da música: por conter ondas de sintetizadores que se debatem, nascem e somem que o atrito é tudo, é a origem que desenrola e motiva a caminhada, as tensões e a suspensão no movimento do rio. Por volta dos vinte e seis minutos do curto disco, os sintetizadores ficam nitidamente mais altos do que a voz da cantora, como se aquele fosse o momento máximo de confirmar a negação que a vista da continuidade do rio atesta (Tudo vai fluir pra outra coisa. Até deixar de ser Londres, até deixar de ser continente. “Roulette”, a faixa inicial, detalha uma antecipação: ao se ouvir o disco pela segunda ou terceira vez, percebe-se a determinação da pessoa em trafegar pela cidade e chegar a algum destino. A cidade banhada por um rio que é sua negação e também continuidade: delimita-a e completa-a – a cidade afincada no solo, o rio erodindo na submersão. Está ali, pode-se vê-lo, mas em um processo de transmutação constante, sempre deteriorando e nascendo e prestes a ser outra coisa).

A cidade como constante amniótica, tão onipresente que é difícil distinguir seus barulhos, tão parte da gente que é difícil pescar seu silêncio: o rio abaixo do cartão de metrô, o fluxo subterrâneo pra se deparar com o fim do continente e a água cobrindo alguns degraus que fazem a ligação entre líquido e concreto. Se Miguel de Cervantes escreveu que “A verdade pode ser esticada, mas nunca quebra, e sempre aparece acima das mentiras, como o óleo flutua na água”, Lolina, no videoclipe, mostra que na superfície da água há a sujeira da cidade acumulada, flutuando e corrompendo a estrutura do muro concreto. Essa corrosão do mundo estrutural é constante e as experiências acumuladas sempre vão acabar nela, é um trânsito finito regulado por uma lenta degradação. Cervantes destinou-se a falar sobre um mundo todo, abraçado no berço cristão, enquanto Lolina é claramente uma representante maior desta modernidade e todo o registro pode ser encarado como uma descrição da cidade lentamente corrompida e sobre a reação instintiva a essa submersão gradual. Esses tênues momentos tensos que compõe o rolê pela cidade mostram-se como algo complexo, que liga a transposição da vida afetiva com 1) lar, 2) ruas, 3) metrô e 4) rio (há algo nessas aparências que refletem parte da intimidade e também a coexistência do exterior. Esse videoclipe é a comunhão visual das coisas descritas no disco: a familiaridade submersa, de repente, em estranheza).

Em vez de descrever visualmente o que ocorre no ambiente urbano, a força do álbum reside em estimular um trânsito entre as composições estáticas que estruturam cidades globais. Como eu disse no início, você está sendo guiado por movimentos insistentes, que desvendam a primeira aparência dos lugares inertes. Muitos elementos estéticos mínimos contribuem pra essa locomoção: a capa desfocada, o videoclipe, a continuidade infrequente dos sintetizadores em cima de batidas constantes e o apelo da música ao reposicionar significativamente os locais pelo qual se passa, devolvendo-lhes o movimento e convidando-nos a reavaliar as ruas pelas quais andamos.

Por algum motivo, há muita música que rejeita o movimento, ainda assim carrega barulhos comodificados que confortam o ouvinte, mas há outras que preferem a transição entre o local seguro e o ambiente externo puro, em que nada exatamente habita um polo ou outro, pois se carrega a intimidade do lugar de origem e há sempre algo externo às simulações de segurança.

Por agora, nós estamos confortáveis sobre planos estáticos, mas a probabilidade de eles estraçalharem-se aumenta significativamente quando o movimento passa a ser a base da vida. Há força o suficiente na água que isola um pedaço de terra pra varrer tudo. Se o desastre completo chegar, aquele que vivia no constante movimento não vai estranhá-lo de todo. Talvez vá até se amigar da situação (este tipo de música se retroalimenta de impressões, por isso tudo borrado e codificado. O que significa lidar com tempos divergentes no mesmo instante, enquanto eles são processados em comunhão com a paisagem atual. A música termina numa superfície suja e caudalosa, corroendo as poucas certezas que se tem sobre qualquer coisa).

1. Roulette
2. Fake City, Real City
3. Style And Punishment
4. The River
5. The Missing Evidence
6. A Path Of Weeds And Flowers
7. Murder
8. Betrayal

NOTA: 9,5
Lançamento: 14 de março de 2018
Duração: 28 minutos e 03 segundos
Selo: Independente
Produção: Lolina

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