RESENHA: LOW – DOUBLE NEGATIVE

Os últimos dias têm mostrado que a duplicidade é uma fatalidade dos equívocos ocidentais; ou se é alguma coisa, ou se é outra. Não há uma terceira, quarta, quinta vias… Low submerge o ouvinte em um terreno de dicotomias aniquiladas desde a primeira ambientação; o que existe é um amontoado de rascunhos de ruídos, sons que acabam tão abruptamente (e iniciam outro som mais rapidamente ainda) que permanecem mais como suspiros sugestivos do que formuladas frases completas. Então, o minimalismo, que é tão comum na longa carreira da banda, abandona a esfera passiva a qual é normalmente associado pra propor novas formas de arquitetar um sonoridade agressiva, ainda assim receptora de sons fugidios e quietos. Mulheres e homens também exigem outras vias – numa era de políticas repressivas, há de se tentar formular alternativas que creditem à metamorfose da vida (e do próprio corpo) um poder de constante renovação/destruição. Os charlatães dizem que é isso ou aquilo, que são as armas ou os escudos, mas resultante de toda essa tensão há um ruído branco esperando apreensão pra se materializar (pelo menos em parte) em microcombustões.

Força não é mais celebrada porque o hiperconsumo é flagrado como a ruína máxima de pessoas que só conseguem existir quando não estão em espaços ativos (de forma que a banda aposta em músicas “dançantes” como justaposição das quatro primeiras lentas e arrastadas faixas). E a mania por uma esperança radical se opõe à própria inutilidade política das propostas de qualquer polo unilateral. Há de se estabelecer um movimento que reconheça a quietude, a impossibilidade de apreensão e o ambiente como instrumentos transformadores da própria forma de se fazer presente na temporalidade.

Essa passagem pode ser tomada como uma audição ativa de um disco que, à primeira aparência, parece ter muito pouco a oferecer em termo de coparticipações. Música: você pensou mesmo que o processo seria facilitado e não teria de escavar fundo pra encontrar as recompensas? Agora eu tenho de me esforçar um pouco mais pra conviver com polos distintos, pra conseguir distinguir formas abrigadas sob uma torrencial neblina que é composta por ausências, quase sons, quase ruídos.

Finalmente, há pequenos vestígios que aos poucos me convidam pra dançar com eles, a iniciar uma busca em conjunto. O Antropoceno é a Era em que a visualização das formas é realizada de maneira utilitarista; tem de ter um fim e um início, a mutação simples de trocas constantes e mudanças crônicas é deixada de lado. Em pleno 2018, é desgastante a forma como verso-refrão ainda insiste em se fazer presente, anunciando “releve as letras bobas e partes banais do verso, o que importa é o refrão”. O grupo realiza uma transferência contínua, cujos pontos de troca são indetermináveis em meios aos doces cânticos naufragados nas frequências cruzadas. O objeto de estudo deles é desenvolver uma relação que se evidencie em cada aspecto, não como continuidade, mas como um fluir livre pelas dimensões vastas da criação. Em outras palavras, eles estão creditando ao tempo usurpado pela música uma forma de se instaurar como matéria indeterminada, esperando por tentativas de apreensão. Por correlacionar a descentralização estrutural (não há refrão, não há clímax, não há versos) à implosão de uma não fórmula na qual eles mesmos vêm trabalhando há anos, o objeto que se delimita está estático enquanto se movimenta a partir de seus enigmas. Como nós podemos encontrar a dança em meio a algo que parece tão estoico e árduo? Como nós podemos sentir a beleza em meio a indistinção sonora?

Esse virada de “presenciar a música de forma indeterminada” explicitada pela banda que faz versos simples como “sempre na escuridão” serem observados como guias. Por que esses distúrbios só conseguem afastar o ouvinte mais e mais do centro? Primeiramente, porque as poucas e tímidas afirmações do disco nos conduzem a uma incerteza cuja própria origem escapa sempre que se pensa chegar a algum local. Músicas como “Dancing And Blood” passam sentimentos justamente porque estão tão esgotadas que não sabem comunicar a não ser suas próprias incoerência e perdição. Através de várias repetições, a insistência mostra-se como esperança de conduzir um rascunho à afirmação. Mas “Double Negative” evidencia-se enquanto paradoxo porque ele mesmo nega suas afirmações (“não é o fim, é apenas o fim da esperança”) ao estender os tímidos ruídos, ao insistir que através de tudo que soa alienígena se pode transferir uma energia. Em vez de se capitalizar em cima de um caminho, a banda preferiu registrar como suas próprias tensões negam algumas de suas ideias. É, acima de tudo, um exercício de acolhimento. O Low retrata a volta da música a uma comunicação essencial, em que a fácil associação afetiva é deixada de lado pra uma transferência sensorial do universo que rodeia.

O que esse minimalismo propõe é que no definhamento progressivo da música pop se encontra uma possibilidade comunicativa. A nauseante impossibilidade de comunicação, então, torna-se num exercício de criatividade, de diálogo e de uma tentativa de transpor a barreira discursiva. Há poucas sequências que não são interrompidas e, curiosamente, é justamente em meio a tantas interrupções que a sinceridade se impõe.

Durante o álbum, o que se percebe é uma música que se impõe enquanto aparecimento – e toda a confusão que isso traz. Um exemplo de que a música é apenas outra forma de comunicação, mas que ela se relaciona com todos os sentidos, não apenas com a audição.

Depois do aparente desencanto do Low com a música pop, ou com a limitação provida pelo seu modus operandi, o que resta é estendê-la até que se torne uma coisa completamente diferente, atribuindo certa força a seus resquícios formadores. Depois de se autoafirmar como uma banda que abriga resquícios, a construção das letras e das (quase) melodias podem surgir de uma maneira menos determinista ou apelativa. Nós começamos pelos motivos errados, eles parecem dizer ao longo de sua imponente discografia, mas é apenas através do reconhecimento do declínio que pudemos escalar pra um ponto de convergência. Não que algo daquilo foi ruim ou inútil, mas pudemos examinar nossos próprios limites e tentamos desconstruí-los. Nós criamos uma veia comunicativa a partir da percepção de que a maioria das formas disponíveis são barganhas culturais afetivas.

O sentido dessa boa recepção do Low, ao que compõe os macro sons, evidencia a tentativa simples de uma comunicação. Eu literalmente não percebi isso na primeira audição, mas apenas enquanto ouvia outras vezes o disco foi possível perceber que em toda a quietude onipresente do álbum se encontra uma tentativa de transferência, de deixar algo disponível pra troca. A comunidade de fãs da banda que insiste em ficar presa nas lamúrias dos primeiros discos está perdendo não algo totalmente diferente, mas um detalhamento ainda mais incisivo dos temas dos primeiros trabalhos. Se antes era apenas da força do negativo que se podia abrir uma fratura no mundo, aqui o ouvinte é constantemente balançado numa dança imprópria que brinca com seu próprio processo de construção. Nesse sentido, é uma solidão compartilhada junto à necessidade de explorar seus próprios contracampos, em que nenhuma harmonia ou letra têm a primazia sobre outras.

Escrevendo à beira da maior crise deste século, o Low é capaz de ver que há uma força invisível transpirando sob as configurações sociopolíticas. Por explodir o campo exclusivo entre solidão e presença, pode-se criar uma área em que a transferência comunicativa se dá pelos sentidos. Nós estamos presenciando o processo do ser intermediado pela visita da solidão e da matéria. A segunda impressão, após todo o minimalismo recluso da primeira audição, é que se está acompanhando a solidão da banda enquanto matéria e que esta pode ajudar o ouvinte a decodificar alguns de seus recônditos obscuros. O choque de “Double Negative” (ouça algumas músicas aqui) é o choque do real, que está palpado na incompreensão, nos ruídos comunicativos e na transferência parcial dos sentidos.

Em contraste aos primeiros trabalhos, em que a loucura e paranoia eram evidenciadas nas letras, o álbum é um método de desencontro com o mundo instruído pra encontrar pessoas que possam pulsar na mesma frequência. O momento último em que o processo de desconstruir pode esboçar um rosto verdadeiro. Compondo entre períodos de crise (cada vez mais próximos), o Low voltou a fazer um “disco político” justamente da forma menos previsível. “É o preço que temos a pagar”, conforme Poor Sucker. Agora se percebe que o preço a pagar é não conferir tanta legitimidade às palavras, que os instrumentos à disposição também são capazes de configurar uma narrativa, mesmo que seja a da solidão. Ecoando uma presença que se perde porque não sabe de nada, o Low reconfigura sua música pra uma presença indeterminável. E a música tocando não é a antítese de nada, mas uma confirmação de um isolamento que precisa ser expresso, afinal, conforme a faixa de abertura: “You’ve got to break the quorum”, seja em qual polo ele estiver.

NOTA: 9,0
Lançamento: 14 de setembro de 2018
Duração: 45 minutos e 06 segundos
Selo: Sub Pop
Produção: BJ Burton

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