RESENHA: ROC MARCIANO – BEHOLD A DARK HORSE

A boca do cavalo

Compositores de rap têm realizado uma tarefa ampla, que abrange sistemas de pensamento contemporâneos e interpretam-nos, sem julgamento moral, paralelamente. Considere que o Roc Marciano influencia tanto rappers conscientes de Soundcloud quanto os que estão no meio do tiroteio midiático.

Roc Marciano tem sido chamado de cosmopolita, testemunhando uma realidade urbana criminosa e devolvendo toda essa violência em versos tão inteligentes quanto ferozes. Então, talvez, mesmo que seu sucesso não seja objetivo (pelo menos pro público brasileiro), há uma espécie de clima narrativo que claramente influencia outros trabalhos: Animoss, Cardi B, Westside Gunn, Skyzoo etc. Roc Marciano pode ser confundido com o que de melhor o rap tem proporcionado na última década. Se essas comparações podem parecer que apenas são feitas pra impressionar, na verdade elas são valiosas quando se compreende o leque musical que elas abrangem: a produção de Roc Marciano alimenta frentes diferentes. Talvez estejamos acostumados com um esmero tão frequente, sendo polido desde 2010, que seja incompreensível um álbum dele que não tenha batidas perfeitas.

Afinal, sua contribuição é de fomentar uma cultura cujo clímax foi atingido muito precocemente: pense em Kendrick Lamar, J Dilla, MF Doom e uma interminável lista de rappers proficientes que tornaram o hip hop a música mais representativa dos EUA. As faixas em “Behold A Dark Horse” lembram-me desses nomes porque elas claramente estão localizadas em certo contexto e optam por estende-lo como uma evolução progressiva e, razoavelmente, esperada. Marciano repete a imponência que vinha realizando só que de maneira ainda mais direta (o álbum só tem trinta e três minutos, o que é pouco pra considerável variação sonora).

Mil mortes

Perceber as personagens transitando entre teorias conspiratórias e a violência urbana é bem perturbador. Marciano enfatiza o apocalipse bíblico em conjunção com a realidade a qual testemunha: desse ponto seu fluxo de consciência alcança dimensões metafísicas e realidades brutais ao mesmo tempo. Fundamentalmente, por manipular o imaginário urbano com as selvagens imagens bíblicas, Marciano revela a brutalidade que caminha em comunhão com o ser humano e o sagrado. Este tipo de música diz sobre uma loucura que parece ser a regra pra manifestações tanto humana quanto sagrada. Essas referências anunciam uma paranoia que é fruto da opressão social e hierárquica. É uma música progressiva porque reconhece uma unidade elementar que ronda todos os lugares do mundo (ouça as batidas oniscientes e esparsas). Ela parece não ignorar nenhum resquício de realidade e associar com esta uma hiperlucidez que tangencia uma hiperloucura.

Rap é um gênero que reconhece a opressão sistêmica e, como aqui, revela essa lógica como uma labirinto que precede o fim. O apocalipse é um horizonte com policiais, traficantes, drogas e cafetões. O rap retrata uma democracia decadente que está condenada porque existe o poder e, porque este é indestrutível, são erguidos labirintos de ascensão que, na verdade, são o declínio pro real, a queda da ilusão capitalista pro mundo da miséria. Em seu mais básico – e é ai que reside sua força – o rap é uma contraposição às normas desse jogo de subidas e declínios: burla-se o sistema tanto na escalada quanto no escorregão. Tristemente, na maioria das vezes, tanto um quanto o outro terminam no mesmo fim (e o labirinto continua de novo e de novo). O clima de desconhecimento pra quem chega é enorme – a ambientação é convertida em desafio, as bestas se aproximam, a tensão se eleva: os versos saem.

O produtor realiza batidas simples e prolongadas em um mundo povoado por traficantes, prostitutas e os “zé ninguém” infestando fisicamente um universo que já esta abarrotado. É uma música que joga um contrassenso nas narrativas felizes da música mainstream e conflita, na tensão da ascensão idealizada versus a impossibilidade material, um mundo sempre prestes a ruir. Tristemente, este é um reino demasiado humano e suas estruturas são compostas por violências (psicológicas e físicas) intermináveis, cenas dignas da catarse bíblica. Qualquer noção de desafio estaria palpada nas relações de poder (o policial com o traficante, o traficante com o zé ninguém etc.) e, portanto, fadada ao obscurecimento. O resultado pode ser considerado no extermínio vindouro de um certo tipo de humanidade alojada no Antropoceno. Com o lançamento de “Behold A Dark Horse”, nós chegamos num ponto de dissolução em que os degraus do poder tremem sobre as frágeis placas tectônicas. Mas o rap problematiza essas rupturas no momento em que elas ocorrem: é uma descrição privilegiada (no quesito testemunhal) de quem está localizado nas rachaduras.

Sem Amor

Compondo com essa visão inabalável do apocalipse, Marciano busca uma transcendência paranoica a partir do hiper-relato. A sonoridade desse boom bap é demasiada pop pros fãs tradicionalistas de hip hop. Armado com a terminologia de tudo o que o gênero produziu, o produtor pode ser considerado como alguém que atravessa o corredor do rap sem se importar com as paredes. O músico pega clichês do gênero e retrabalha-os a ponto de formar novas bases hipnotizantes que não excluem a sensação de familiaridade.

E sobre os cantos? Talvez as transições melódicas fossem sempre objetivo de Marciano, e aqui ele aparece cantando e progredindo entre as partes faladas, que são mais ofensivas. Tal habilidade, de render variações divertidas em um álbum tão explicitamente perturbante, evidencia como seu projeto musical é ambicioso. Como uma forma artística de transposição de ideias sobre samplers, essa produção eleva o nível quando coabita as sensações de assombro e originalidade. O produtor aparece também assombrado pelo legado musical que tem como pano de fundo o gênero em que escolheu se inserir, pela realidade brutal que testemunha e pelas ligações que cada elemento terreno carrega com o sagrado. O músico pode permitir essa comunhão elementar porque fala a partir de um presente enevoado que se explícita tanto em seus vícios quanto em sua religiosidade.

No entanto, “Whoolers” avisa: “a verdade à vista, estava escondida, fruto proibido”. Uma das muitas características do hip hop é que há um reconhecimento de que uma verdade maior (deus?) está alojada em todas as elipses que compõe o contexto dos artistas. Os produtores de hip hop têm realizado um tipo de música que flui entre as instâncias mais radicais do ser humano. Considere Roc Marciano como uma das poucas pessoas que conseguem transitar entre esses espectros, explorar suas linhas mais tênues e redimensioná-los como uma progressão musical do rap.

Roc Marciano tem feito uma música que fala sobre sexo selvagem, herança musical e o perigo das ruas – todos os assuntos no mesmo patamar: meio humano, meio sagrado. Então, talvez, é justamente dessa tensão, que supre distinção de importância, que nasça uma música capaz de dialogar com essas multifaces. Roc Marciano é o equivalente de alguma testemunha ocular que consegue ver os cavalos apocalípticos nas mesmas ruas onde cresceu. Se Roc Marciano testemunha um mundo de valores confusos, é esse mundo catalisado por sua visão que ele vai apresentar. Mas talvez nós não estejamos prontos pra um músico que evidencia seu legado a cada trabalho: o controle do próprio destino, enquanto o mundo arde em chamas.

01. The Horse’s Mouth
02. Congo
03. 1000 Deaths
04. Diamond Cutter (com Black Thought)
05. Amethyst
06. Sampson & Delilah
07. No Love (com Knowledge The Pirate)
08. Trojan Horse (com Busta Rhymes)
09. Fabio
10. Secrets
11. Whoolers
12. Consigliere

NOTA: 10,0
Lançamento: 4 de outubro de 2018
Duração: 37 minutos e 47 segundos
Selo: Marci Enterprises
Produção: Roc Marciano, Preservation, Animoss, Doncee, Alchemist, Q-Tip

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