RESENHA: SARAH DAVACHI – LET NIGHT COME ON BELLS END THE DAY

Ultimamente, a comodificação do mistério tem excluído o horror cósmico até mesmo da imensidão noturna. Ruídos e distorções abafados pelos objetos da cidade não são mais possíveis na música; elementos estranhos não cabem em tags e não possuem qualidade o suficiente pros críticos descrevê-los (eles sempre têm de descrever a música porque não conseguem manter uma relação sensorial com ela) e pros ouvintes consumirem (se não traz uma identificação instantânea não há a probabilidade de revisitação. A lógica é invertida: a música se torna incapaz de tomar alguém de assalto. O ouvinte vai armado com um mapa cerebral que diz exatamente o tipo de coisa que ele vai gostar).

Sarah Davachi mantém uma música que, de tão simples, devolve o mistério a cada segundo enquanto dimensão fundamental da experiência.

Novamente, Davachi compõe um peça pra ser ouvida em uma única vez, causando um movimento contrário no imaginário de quem ouve: é como se a música distorcesse o ambiente ao redor e tornasse os movimentos próximos excessivamente mais lentos, como se a subjetividade do ouvinte fosse invadida pela constante de desaceleração. O resultado é uma crítica da aceleração aparente. Quando se aceita a imposição sonora de Sarah, é possível perceber que o tempo circula em inúmeras ondas à mercê das experiências humanas, de que o mundo é uma dádiva porque ele é envolto por um mistério perpétuo.

Elas (a compositora e a música) emitem um chamado que lentamente vai afogando o ouvinte em toda a manifestação sonora de “Let Night Come On Bells End The Day”. Elas não se preocupam com uma lógica cronológica porque se confundem com o próprio espaço, preenchendo, assim, continuamente, tudo o que os ouvidos alcançam e o que os olhos veem. Em vez de um preenchimento através de manipulações como clímax, Sarah Davachi diagnostica um ambiente que vai se tornar, com a composição do álbum, um meio de se relacionar com a esfera, até então, desconhecida do ouvinte. A música, pra Davachi, deixa de ser uma fria esfera de consumo e possibilita a apreensão do mundo em movimento, no exato instante em que se ouve o disco. Sua crítica reside no fato de ser uma afirmação poderosa: de que algo verdadeiro pode estar tanto à beira da extinção como ser recentemente criado, porque a vida em carne e osso não segue uma narratologia, ainda que bem pensada, ainda que bem produzida. A vida está mais pra irrupção de imagens e sons que vão ser distorcidos pelas lembranças, mas sempre resquícios que comprovam alguma habitação, em algum espaço, em alguma época. O que se espalha são esses resquícios, reminiscências de uma forma originária destroçada pelo ato de criar música. Os movimentos de Sarah são imperceptíveis em ambos os quesitos: não parece haver uma progressão e também não parece haver uma inércia. Como se estar parado pudesse, também, ser movimento. Desses momentos, surgem os resquícios e a potência criativa: o ponto em que a esfera íntima do compositor empresta uma fatia sua ao ouvinte que, estático escutando o disco, percebe, através dos próprios sons emitidos, o mundo fluir.

Sejam sons indefinidos, sejam sons cristalinos e ainda assim confusos, são peças sonoras que complicam nossa relação com o mundo. Pra Sarah Davachi, o estático sempre representa um ponto de virada porque sua sonoridade apreende algum resquício mundano enquanto vai ser transformada pela existência do outro (ouvinte). Tome nota do quanto o som em “Let Night Come On Bells End The Day” parece espectral, como algo que sempre esteve internalizado e apenas explode na iminência da noite, enquanto outro dia chega ao fim. “Mordents”, a segunda faixa, pode ser tomada como um paradoxo da primeira, “Garlands”. Em que na primeira havia apenas uma tensão contínua impondo-se, a sucessora surge quase como uma meditação no mesmo ambiente em que a introdução do disco oprimia uma claustrofobia no ouvinte. Como uma cultura, nós idealizamos a escuridão no mito da noite enquanto o disco mostra suas diversas nuances através de frestas que se inter-relacionam com uma escuridão, aparentemente, impenetrável. A música permite essa sobreposição de paradoxos, que coexistem sob um mesmo céu e podem prosseguir pra qualquer lugar (depende sempre da simbiose entre quem escuta e quem cria). Nós podemos ouvir o silêncio como derivação da música, como continuidade e não como rompimento. Em vez de interrupções bruscas, o que o disco passa é a sensação de uma continuidade estrangeira, de que o mundo apresentado é constantemente alterado por nossas interpretações, mas que, ainda assim, flui independente de qualquer mediação humana. A música que enfatiza apenas uma nota é um excelente exemplo desse mundo repetido que flui independente da vontade humana, mas, ainda assim, é em função dessa vontade que tem sua aparência e sonoridade constantemente reinterpretadas. A insistência numa forma primária de criar música permite que o disco se afaste do imediatismo e seja um meio de acesso poderoso que o ouvinte pode estabelecer com as coisas que o rodeiam.

Através da exaustão de uma técnica, com o auxílio de sintetizadores, Sarah Davachi criou um minimalismo meditativo em “All My Circles Run”, trabalho antecessor, de 2017. Enquanto este procurava, através da modulação eletrônica como Conrad Schnitzler interferir o menos possível na sua própria ambientação, “climatizando” o disco, “Let Night Come On Bells End The Day” experimenta em influências como Pauline Oliveros pra oprimir o ouvinte, com avanços e recuos de sequências que remetem à dificuldade de se estar pleno quando se depara com a vastidão noturna. A concentração mais rígida do seu trabalho atual ressoa nas reverberações de Oliveros porque, apesar de muito menos experimentações, confia na sobreposição de sonoridades pra estabelecer um diálogo com o ouvinte.

Por exemplo, “Let Night Come On Bells End The Day” tem uma intenção muito mais sublime do que a aceitação do antecessor. E pra alcançar esse estágio é necessário que avanços e recuos façam-se a norma. “Let Night…” é um desses álbuns que dispõe, através da apresentação suave de diferentes sonoridades, na vastidão da música pra transitar em algo que se recusa a ficar estático. Ao contrário de outros álbuns que são praticamente um ode à escuridão, “Let Night…” permite que o ouvinte aprecie seus graduais paradoxos. A troca entre os transes é tão sutil que perpetua um monotema que se modifica muito lentamente. Enquanto a música cintila entre esses estados, o transe do ouvinte redimensiona os planos experimentados: não há cronologia, mas a ordem do afeto que determina o que se ressoa, qual estilhaço que vai recompor um ritmo presente. Muitos dos efeitos do disco (especialmente o transe semiadormecido) remetem-me à ornamentação noturna de Franz Liszt ou às noites que adormeci ouvindo Claude Debussy.

Acusa neste disco uma persuasão de que o tempo é ocupado pela intromissão do espaço, de que o vento não pode arrastar as folhas caídas no chão sem que haja uma benevolência por parte destas. Ouvir o álbum é um instante de suspensão em que utensílios racionalistas são ineficientes contra o momento. Em vez de letras, os instrumentos narram um trânsito psicológico que é emprestado ao exterior, numa constante troca em um processo criativo que envolve tanto a criadora quanto ouvinte. Pra Sarah Davachi, a aparente escassez temática é esgotada porque os sons arrancam tudo o que não é essencial: eles ficam estáticos aguardando apreensão enquanto vão redimir o ouvinte de pequenos importunos. Ela ilustra na música que a utopia da suspensão é sempre palpável, sempre uma alternativa.

Com o decorrer da audição, as coisas ficam mais claras porque o teórico escurecer libertou o ser da prisão das formas. A situação que experimentamos não se repetirá, restarão noções distorcidas dos pouco mais de quarenta minutos de álbum. Tudo se dissolve pra ressoar em um tempo distorcido.

1. Garlands
2. Mordents
3. At Hand
4. Buhrstone
5. House In The Evening

NOTA: 8,5
Lançamento: 13 de abril de 2018
Duração: 41 minutos e 31 segundos
Selo: Recital Program
Produção: Sarah Davachi

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