RESENHA: SENTIDOR – MENORO FANTOMO_RIO PRETO

O que aparece sob nossa perspectiva é sequestrado por algum canto recôndito em nossa mente. Com o passar do tempo, nossa memória altera as paisagens que vivenciamos pra distorcê-las à maneira de deixar um cenário guardado dentro de nós. Pode-se chamar isso de algo humano, uma tentativa de proteger algo que testemunhou sob a sua assinatura.

A matéria é algo incrível e palpável. Tudo que testemunhamos um dia como matéria vai se transformar em nossa memória. Sentidor trabalha com uma alquimia de registro – comungar matéria e memória em música com valor estético. Há um reconhecimento de uma fragilidade maior. O sujeito do Sentidor protagoniza uma dispersão de si mesmo. Ele reconhece na diluição de paisagens naturais seu esfacelamento também. A matéria é feita pra virar pó.

Eu acredito que o que é mais pulsado em “Memoro Fantomo_Rio Preto” não é necessariamente essa apreensão de lugares visitados, mas sim uma transposição de sensações atravessadas em situações bem específicas – necessariamente, a soma de crianças correndo, uma melodia, ruídos intercalados. A imprevisibilidade da sequência nas faixas também opera positivamente pra ideia absoluta de repetição. Uma repetição de correntes, de movimentação, não apenas de barulhos (até porque as músicas sempre progridem).

A marca que o álbum duplo (“Memoro Fantomo” e “Rio Preto”) inflige ao ouvinte é de um reconhecimento pleno do vazio. O vazio onde é possível instalar pensamentos, lembranças e a sensação de ausência. É muito comum o ditado que “a música é a alma de quem a cria”, mas em “Memoro Fantomo_Rio Preto” percebemos a descentralização de um sujeito. É como se a ideia de unidade fosse fragmentada e invadida pela exterioridade e neste processo de absorção fosse impossível reconhecer-se no espelho. É estranho porque o que “ainda não é único” infere sensações de incompletude e de desconforto. Como se olhássemos uma obra que nunca fica pronta, com o barulho de sua construção esmurrando nossos ouvidos. É um desempenho extremamente solitário em um vasto campo sem formas estabelecidas. É uma descida vertical em que os espectros são vislumbrados e dissolvidos.

Ouça na íntegra:

Nesta atmosfera solitária, testemunhamos eventos de toda ordem que recebem acolhimento em uma unidade dificilmente explicitada. Em que a colaboração entre a constatação da movimentação natural e sua consequente transparência causa um desconforto nítido em quem tenta encontrar beleza nesse desespero. Enquanto a linha no horizonte realmente “parece um buraco negro que suga tudo” (leia as anotações que vem com o disco), eu fico realmente comovido com a expressão carinhosa que João Carvalho, o Sentidor (ele é também guitarrista do El Toro Fuerte), transmite pra essa dor. Imerge-se, então, em uma expressão muito próxima da sinalização do que é mortal. Uma não compreensão em que signos externos se deterioram e se transformam em outras coisas porque nossa compreensão está abalada e abatida.

A qualidade experimental não deve reduzir as atribuições de “Memoro Fantomo_Rio Preto”. É sobre um exercício de memória. É um ato em que a transmutação de impressões em sonoridades tão detalhadas, em uma tentativa não apenas de reconstruir os lugares visitados, mas todas as sensações neles experimentadas. É um movimento de lenta imersão, em que estamos nos afogando e – apesar do incômodo e da aproximação do desespero – testemunhamos algumas aparições subterrâneas raras e encantadoras, apesar de perigosas. As dimensões mais ultrapassadas, estranhamente, sinalizam que estão do nosso lado. Somos acompanhados invariavelmente (assim como certos ruídos que perduram toda a música) por algo que não sabemos denominar ou atribuir formas, mas ronda nossa subjetividade e engole-nos em ansiedade: os anos que se passaram parecem surgir e evocar o nosso corpo como testemunho de um acontecimento eterno (um porvir contínuo).

Há em “Memoro Fantomo_Rio Preto” um vocabulário extenso de exorcismos. Há os sussurros distantes, as distorções próximas, os barulhos esquisitos. À medida que isso cresce (uma matéria densa de obscuridades), somos direcionados – na parte II, “Rio Preto” – a um terreno muito menos convidativo, muito mais interceptado e “sombrio”.

Usando diversos desencontros pra protagonizar um encontro maior – uma peça esfacelada em algo, às vezes, bem próximo do desespero (ouça as repetições atordoantes da primeira faixa do segundo disco) – em que o desconforto é a pele do sujeito do álbum. Ele trata o som como um objeto tortuoso que é modulado em frequências controversas pra atropelar qualquer estabilidade. É algo “físico” que interage com o ouvinte impulsionando enormes momentos em que o próprio cerne que sustenta nossa estrutura parece quebrar. As invasões da guitarra, as vozes repetidas, os tempos cortados; uma escultura viva que tenta subir à superfície desse terreno extremamente catártico. É extraordinário ver como a junção de texturas tão discrepantes rasgam a movimentação dos objetos e, elas mesmas, tornam-se os fenômenos aos quais mais nos prendemos.

Há uma difusão não clara, distorcida e esfacelada. Há o esmagamento de melodias contínuas pra ampliar uma voz interna mais poderosa e também mais perdida e não digressionável. É a voz da dissolução. Há pontes realmente difíceis no álbum (a passagem da primeira parte pra segunda é um troço no estomago) que, com o terror e sua passagem, nos levam pra cantos mais acolhedores. Eu tenho certeza que o mote é a memória (provavelmente de dias não tão bons) e tudo que ela catalisa, impulsiona, reverte e conflita. É a memória que faz nosso passado surgir como um desafio a ser superado. É ela que intervém pra lembrar que algum movimento parecido já machucou.

O Sentidor exibe um evento musical pra sinalizar esse rito de passagem pelos terrenos mais incertos e catárticos (o terreno dentro de nós mesmos). Timbres e tons distintos se unem pra “forjar” uma sensação. O próprio ato de se preencher esses espaços vazios já é maravilhoso. Há movimentação sob o que está estático, sobre o que está aparentemente inerte. E estamos sob este ponto de vista: de quem observa os contornos distantes e, apesar da distância, insiste em atribuí-los valor.

São sons declarados num espaço em que a acumulação deles resulta em desdobramentos de percepção, de uma verdadeira experiência. Em que a forma narrativa – apesar de totalmente fragmentada e alheia no que tange à linearidade, é mais um resgate de afetos e de lugares atravessados – difunde reflexos de uma mudança constante (e pode captar sons instigantes nessa variação). Ainda assim em meio a toda catarse que é este disco duplo, há muitos “barulhos bonitos” (desculpe-me pelo termo). Se talvez este tipo de música possa lhe soar muito abstrata em termos de conceito, acompanhe as anotações e realmente sinta a memória resgatando, atravessando e reinventando experiências. Os sons sintéticos, os ecos de vozes, o classicismo – todas são ferramentas moduladas pelo que se pretende recuperar, pelo que está à beira da mão e ainda assim escorre entre os dedos.

Ainda bem que existe a música e os espaços vazios que projetos como esse se instalam com todo o desconforto possível pra nos lembrar ainda que há muita coisa a ser feita.

01. Os Momentos Plenos Da Minha Vida São Verdes
02. Memória Um
03. Célula_1
04. Dezembro
05. Guara Pari
06. Memória Dois
07. Inverno
08. Nascer Do Sol, Janeiro
09. Rio Preto I
10. Rio Preto II
11. Rio Preto III
12. Rio Preto IV
13. Rio Preto V

NOTA: 7,5
Lançamento: 13 de julho de 2016
Duração: 70 minutos e 30 segundos
Selo: Geração Perdida
Produção: João Carvalho

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Comentários

comentários

Um comentário

  1. Belo disco, repleto, complexo, desconexo….e “se faz” sentido a quem se atre
    ver a ouvi-lo.

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