RESENHA: SOPHIE – OIL OF EVERY PEARL’S UN-INSIDES

Através dos primeiros instantes, percebe-se um pop adocicado, extremamente polido e palatável até demais.

Que a personagem entre e quebre essa construção sem abdicar do seu envoltório fantasma – ou seja, a extrema doçura – pode surpreender o ouvinte. Em sequências chocantes, a arquitetura do início é invadida por vozes diferentes, computadorizadas, distorcidas ao extremo. Ela, Sophie, encontra um ambiente que sempre se desmantela enquanto tenta manter suas premissas, invadidas, reguladas pela transformação-constante. Neste ponto, “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides” subverte a sua lógica interpondo, incansavelmente, recursos que sempre atrasam uma suposta sofisticação. Agora, o álbum parte do ponto da mimética da música pop pra ser problematizado enquanto entidade que simula algo de que é rigidamente antagonista. De certa maneira, a cantora assinala a impossibilidade de copiar o passado enquanto deixa claro que essa nostalgia comercial é algo de que sua música insistentemente se afasta através das sonoridades invasoras.

Ela é a tecnologia digital com todos os aparatos pra copiar a matéria da música popular e invadir sua própria estrutura de forma insuspeita, quando cria a percepção de estranhamento redutivo ao nada ou de sempre transformar-se em outra coisa impossível de descrever.

Esse sistema é nossa história de como é possível transcender a fixação uníssona, permitindo a si mesmo abandonar a necessidade de catalogação pra, quem sabe, ser outra coisa. A cantora não está ponderando sobre o que é melhor, mas admitindo que após a Era da Internet apenas resta a realidade de encarar a mutação-perpétua como uma premissa básica do que é estar no mundo. Vale notar que essa aceitação impossibilita a designação de alguém, já que uma pessoa está sempre a caminho do seu desmantelamento enquanto unidade.

Sophie, enquanto pessoa que afirma que alguém está a caminho de ninguém, utiliza vozes transformadas pra afirmar que ela mesma não possui identidade. Ela desqualifica a historicidade porque vaga através de infinitas manipulações pra reforçar os milhares de espíritos esfacelados que transitam nesta época. Como alguém que está sempre presente, mas é impossível identificar onde essa pessoa realmente existe. No fim, todas as vozes passam a ser adoráveis, pois elas se libertam da reclusão identitária pra afirmar um mundo-novo. A imensa quantidade delas escapa das melodias (há uns quinhentos micro refrões) pra formar uma nuvem abstrata de evocação e retenção. Tudo isso aconteceu de uma forma acelerada e vai acontecer de novo, com outras vozes e outros sons.

Tudo que é solido se desmancha na nuvem e tudo que chega da nuvem vem filtrado por algum algoritmo desconhecido que teoricamente reconhece as preferências do usuário cujo consumo está totalmente atrelado à maneira que ele foi criado e à sua esfera político-social.

Uma grande quantidade da música pop vem da necessidade de consumir e “ter” alguém à sua disposição. Um bom contraexemplo é “Poker Face”, de Lady Gaga, em que a cantora deixa incerto seus desejos em relação a seu possível amante. Em certo ponto, quando Sophie assume sua vocação assumidamente pop, ela ratifica seu álbum como um dos grandes discos pop de todos os tempos ao fazer com que a esfera dos relacionamentos passe a uma dimensão que localiza o ser no fenômeno de existir. Eventualmente, suas letras possibilitam não um questionamento sobre desilusões amorosas, mas desdobram as possibilidades pro ouvinte fazer-se perguntas significativas que questionam seu lugar no mundo.

“Is It Cold In The Water?” é o som de uma canção cujas dúvidas insistentes recondicionam às questões sensoriais que norteiam a cantora. Em vez de respostas, a música é um receptáculo de transformações, “I’m swimming, I’m breathing, evaporating / Is it cold in the water? / I’m liquid, I’m floating into the blue”.

“Infatuation” e muitas outras faixas fazem o plano de fundo não pras “relações sociais líquidas” (Zygmunt Bauman), mas pra diluição de si no enigma abundante, insaciável, da globalização. Sophie nota que a recondução de si ao lugar da abundância fluída é o que pode continuar legítimo na música. O mal funcionamento tecnológico, ao contrário do instituído, não apenas fragmenta essa unidade própria como amplia as possibilidades de refração. Ecoando essas vozes divergentes como parte de um todo irreversível, a cantora otimiza e reconhece a alegria do tempo presente.

Nossas extensões tecnológicas atingem outros fragmentos. A música pop rearranja, desde sempre, nossa relação com o mundo e sabendo disso a cantora reverte os questionamentos comuns como alguém que analisa o espaço não apenas à dimensão musical, mas como alguém que é parte ativa do (não) funcionamento contemporâneo. Seja ao som de vozes desconhecidas (“Whole New World/Pretend World”) ou em todos os autotunes, a música apresentada espelha a reformatação da indecisão moderna, de que alguém está sempre sendo uma coisa diferente, nova.

Outro elemento crucial da música pop é a repetição exaustiva de refrões cantantes e assobiáveis, mas neste disco essa associação é feita à exaustão da própria deformidade da fórmula, através de quase-refrões, de quase vozes. Canções como “Whole New World/Pretend World” estão compressas em uma infinitude, porque cada repetição é retrabalhada e surge de modo diferente da anterior como uma remodulação infiel de alguém que sempre se enxerga de modo diferente no espelho (o fracasso da diferença é renegado e o estranhamento de formas repetitivas é uma potência. O que nos espera é o constante desencontro, aguardando fora das instalações-fortalezas do conglomerado urbano. Nossa situação atual, a inconstância, é encarada de modo afirmativo – transformando o que é refratado, estetizando diferenças).

Mas depois do processo de diferenciação extremo, surge um futurismo que potencializa coparticipações ativas na formação de uma nova maneira de ouvir música e ser transformado pelos sons. “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides”, de Sophie, é uma crítica ao medo e à covardia da constante transformação proporcionada pela contemporaneidade.

Ser nostálgico não transforma a matéria, mas a paixão pela transformação possibilita outros modos de estar no mundo.

1. It’s Okay To Cry
2. Ponyboy
3. Faceshopping
4. Is It Cold In The Water?
5. Infatuation
6. Not Okay
7. Pretending
8. Immaterial
9. Whole New World/Pretend World

NOTA: 10,0
Lançamento: 15 de junho de 2018
Duração: 39 minutos e 55 segundos
Selo: Future Classic
Produção: Sophie

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