RESENHA: TERRAPLANA – EXÍLIO

Não há origem pro início da queda. A fonte pra ela é impossível de se rastrear. Como fragmentos que rondam nossas memórias e extirpam nossos corpos. Somos, sempre, consequência de um delírio ao qual nos agarramos. Um delírio que nos engole, o qual distorce a realidade e arremessa-nos no trânsito urbano com certezas dizimadas. Tudo, em “Exílio”, começa com a breve introdução. Pode-se encará-la como estrutura. Versos de guitarra convidativos que em breve, menos de dois minutos, transformar-se-ão num eco de palavras dificilmente discerníveis. O discurso sobre a estrutura da primeira música ganha estranhas vozes doces e arrastadas, as quais distorcem as impressões do que é ouvido. Deve-se evitar a fuga, deve-se conviver com o que é concreto. É difícil não duvidar das estruturas ao redor quando não se carrega certeza.

É preciso, portanto, renunciar a procedimentos específicos e catalogáveis pra evidenciar o exílio. Por isso a perdição do Terraplana, um quarteto do Paraná, encontra eco na confusão do delírio. Seu título evidencia uma pessoa que está banida e que anda ao léu testemunhando ecos perdidos nos símbolos da cidade (ao menos a capa dá-me essa impressão). Na introdução que ambienta o ouvinte, tem-se a ideia de que será algo mais real. Por oposição à realidade, são registradas as reminiscências de uma queda vertiginosa que testemunha o desaparecimento do próprio corpo. Contudo, como evidenciar o desaparecimento de si?

Deve ter alguma forma, no entanto, já que se fala de música. Acredito em que a subjetividade, que impregna o disco, seja um testemunho verdadeiro – mas também um ponto crítico porque, pra demonstrar o desaparecimento, é preciso evidenciar um mundo em estado de urgência. Ainda que um universo estrangeiro. Identificar o exílio não será difícil pra um ouvinte mais atento, mas é preciso também evidenciar uma construção (mesmo que irreal ou apenas sensitiva) ao redor. É o que posso dizer de “Exílio”, porque não busco no disco a questão abstrata do reconhecimento (embora me identifique com as letras), mas uma localização que possa demonstrar o espaço criador do exilado.

Logo, pode-se perceber – pela intimidade evidente em poucos versos – que demonstrar o espaço criador apenas será uma preocupação da banda quando aquele tangenciar o eu-lírico. A situação da queda existe porque sim. Efetivamente, as guitarras abafadas são perfeitas pra acompanhar essa queda involuntária. Entretanto, a impressão desta ganharia força e eco se fosse acompanhada de um ambiente mais vasto ou melhor definido. Não existir um verdadeiro local é o que a torna menos poderosa. Claro que um primeiro lançamento soaria incompleto, mas as boas ideias (principalmente o instrumental e o modo como a voz foi produzida) são surpreendentes pra uma primeira produção.

Só na música
Os temas multiplicam-se dessa forma, vale lembrar, porque o Terraplana não vacila nas abordagens e entrega, em poucos minutos, uma difícil relação com o presente (como na faixa chamada “Virou Crime”, por exemplo. É ironia?). Apesar de o fator principal, é claro, ser a música: que não tem nada de irônica, com insistentes versos de guitarra sobre vozes abafadas, praticamente tímidas. Quando julgamos que as faixas se movem a um ponto divergente, a banda evidencia sua força ao revelar que – em cada parte do disco – há uma ideia sonora, a qual amarra até mesmo os momentos mais caóticos. Consequentemente, e ao contrário de várias produções recentes, a ideia de unidade justifica as canções estarem no mesmo lugar.

Claro, a ideia das faixas fazerem sentido se ouvidas sequencialmente não acrescentaria nada se a constante temática do exílio não fosse confirmada a partir de ecos distantes e da troca entre os vocalistas. Lógico, por haver essa divisão, o ouvinte talvez não possa lidar com a dimensão e o exílio real de cada um dos integrantes (mas confesso não ter conseguido distinguir muito bem os vocais). Afinal de contas, talvez esteja nessa diversidade máxima – em que cada música parece um resíduo dissolvendo-se – o principal sintoma do exílio descrito pelo Terraplana. Talvez eu esteja errado sobre o que afirmei algumas linhas acima e esse exílio não seja a retirada completa de algum lugar, mas sim um encontro dos que não enxergam lugar algum (não seria, portanto, o processo da queda, mas um caimento sem início e sem fim).

Dialogar com o mundo, partindo dessa premissa, seria impossível. Pois poucas coisas deixariam de ser um monólogo interior arremessado ao ar aguardando acolhimento. Assim, torna-se nítido ao ouvinte, por meio de repetidas audições, que se trata de um reconhecimento turvo – tal e qual uma caminhada solitária por uma cidade, sem conversar com ou olhar pra ninguém. Há exceções à regra, que é mais uma condição inerente à do exílio? É uma situação recíproca entre o que ouço e minha (quase) resenha: o tema do exílio atrai-me desde sempre, eu empresto a essas linhas tanto minhas divagações quanto minhas reservas sobre o assunto (claro, sempre tendo o Terraplana como mote disto tudo). Logo se vê que meu esforço ao tentar falar sobre o disco é tão difícil quanto falar do exílio.

Mas é porque, mesmo na tolice, algumas coisas substanciais podem surgir. Mesmo na queda há, sem aviso, um vislumbre inundado do mundo possível. “Exílio” está aí pra falar de coisas importantes e as quais necessitam de reclusão. Ou seja, estar alienado de sua própria realidade. O suplemento da audição é uma coisa impossível de localizar, mas percebe-se o desencaixe na medida em que se ouve o disco mais e mais vezes. É como uma conversa em que ficamos horas, mas parece haver algo não dito que permeou todo o assunto. Talvez por ser um tema obscuro ou interminável (fica aqui a deixa pro trocadilho com a resenha).

Nossas questões sempre vão guiar nossas percepções sobre o que ouvimos e o que achamos de qualquer coisa, por mais imparciais que tentemos ser. O esforço do Terraplana é louvável porque abre uma possibilidade de compartilhar um exílio muito difícil de descrever (talvez só a música possa se dedicar a tal tarefa). Mantendo-se no limite de si, negando um mundo ao qual nunca pertenceu. Uma vez que não resta o que dizer, as guitarras carregadas e os ecos das vozes continuam insistindo. Estendem-se porque há sempre um depois. Ainda que a queda seja interminável. Ainda que tudo seja uma derivação da introdução (início). Quem sabe, um recomeço seja possível.

1. Intro
2. Ambedo
3. Lamento
4. Interlúdio
5. Virou Crime
6. Fall

NOTA: 6,5
Lançamento: 21 de dezembro de 2017
Duração: 19 minutos e 13 segundos
Selo: Independente
Produção: Vinícius Lourenço

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