RESENHAS: EPILEPSIA – “DEATH RAVING” E DENTADURO – “5218”

Em pouco mais de dois minutos a frequência repetida começa a formar um borrão inidentificável, construindo arredores limitados e cuja falta de referencial (as “batidas” são esparsas e caracterizam-se mais como negação) cria um corpo sonoro detido no âmbito do espanto e do inesperado. O que parece ser “acaso” ganha características de construção extremamente planejada, as batidas são mais frequentes e ainda assim se negam a marcar qualquer coisa. Elas acompanham livremente o volume cada vez mais alto da frequência e, aos sete minutos de “Delirando Mortes”, não há mais divisão alguma, só uma massa repetida que se torna o plano de fundo pra outras interações. O cerne estrutural fica cada vez mais questionável e sua própria importância torna-se secundária ao testemunhar o acontecimento. O próprio disco soar rígido e até disciplinado não se aparelha em nada com o que eu sinto ao ouvi-lo. A anulação de hábitos nesse tipo de música (noise etc., como queira) é o que torna o compromisso entre som e ouvinte mais livre e evidente: não me é entregado “texturas” relacionáveis e minhas reações à audição são extremamente vulneráveis, portanto o oposto de previsíveis. Eu caio na condição de ser precário, exposto a uma ordem sobre a qual não tenho nenhum controle: irrito-me, incomodo-me, delírio e, assim, crio uma esfera secreta e inapreensível. Mas isso coloca em dúvida a noção ultrapassada do que é experimentar um álbum, do que é “se identificar” com determinados sons (ou seja, que um disco tenha o paradoxo de conter as mesmas surpresas as quais você espera). A música passa de estado idílico pra uma sequência de reações urgentes, cernes de uma experiência que com certeza não se repetirá quando eu ouvir o álbum outra vez (ele será outra coisa, eu também).

Esse tipo de irregularidade é uma subida em um edifício onde os alicerces estão sempre tensos, a escalada é improvável e não há como sair (é o oposto do hábito, do que é regularizado e comodidade derivada de outra comodidade pra tudo parecer um avanço quando na verdade são apenas as mesmas ideias colocadas sob outro domínio de consumo). É uma espécie de esforço que se renova na abstração do disco, que exige não uma memória afetiva das coisas as quais eu já ouvi, mas reações físico-psicológicas de se deparar com o indisposto. Fixo-me em sons instáveis, em borrões sonoros que se esticam e se transformam em outra coisa. Que me perturbam e retaliam o ambiente ao redor ao ponto de eu só ter contato com o que me é apresentado. Às vezes é como se fosse uma doença, às vezes parece que não vou aguentar mais. No entanto, as respostas auditivas mandam mensagens pra outros sentidos que demonstram reações opostas e conflitantes. Os rugidos e os ruídos também já não são suficientes, eu imagino que alguma hora tudo o que ouvi vai explodir.

Se essas descrições são metáforas ou uma sensação física de que “realmente tudo precisa explodir” não é exatamente o meu ponto. Tento mostrar que “Death Raving” pode evidenciar aspectos próprios escondidos na manta do hábito. Temores inúteis são inadmissíveis a partir dessa constatação. É um estado instável perpétuo, o qual se modula e “enfrenta” o que é escutado não pra se ajustar a algo, mas porque a audição exige isso. O Epilepsia não usa a música como decoração, mas como espaço de demarcação e risco. Recusa-se a algo vago como “produzir um disco” pra estabelecer uma punhalada. Um tipo de música que jamais se configuraria no catálogo consumista de listas de fim de ano.

O Epilepsia não está preocupado em utilizar recursos agradáveis nem gentis pra construir um espaço inverso ao que tenho ouvido na música contemporânea. Abdicar do agrado ao ouvinte parece uma condição originária pra autoria, mas isso não tem se mostrado tão óbvio nas coisas as quais tenho escutado. O hábito do escambo cultural é revogado. Os diferentes ruídos mostram-se como um abrigo inóspito pra encontrar algo originário, algo próprio que se perdeu nas linhas sonoras agradáveis, límpidas e inofensivas. Com todos os riscos que se tem, a opção por esse tipo de música não caracteriza a decisão de nada, mas lembra que sem conflito tudo é repetição e estagnação. Provocar os sentidos e causar tremores inesperados abala as certezas. Não há submissão aos ritos de iniciação, mas a construção de outro lugar não mapeado por esses terrenos dominados. Não há negociação com a subordinação.

A desconfiança do Epilepsia não é apenas com os procedimentos sonoros “comuns”, mas com a formação do próprio disco. Os sons se retraem, se expandem e se repetem na tentativa de delimitar incertezas, de serem inegociáveis. A música domesticada não tem mais nenhum contato com essas instabilidades propostas. Ela já vem com um “embrulho de tags” de antemão pra que o ouvinte associe com suas bandas favoritas. A transformação passa por descortinar coisas óbvias na esperança de mostrar terrenos menos prontos, pra que a partir daí se possa ser voraz não apenas pelas ideias de afronta, mas por sentir-se verdadeiramente confrontado. Não diagnostica mais o ouvinte com as coisas as quais tem certeza que lhe fazem bem, mas com uma movimentação inesperada que cria novos pontos de tangência e também pode quebrá-los.

1. Delirando Mortes
2. Ovo Negro
3. Sonhos Na Xerodrome
4. Pombas, Sexo, Hipnose
5. Tripofobia
6. Death Raving (full album)

NOTA: sem nota atribuída
Lançamento: 25 de janeiro de 2018
Duração: 39 minutos e 41 segundos
Selo: Seminal Records
Produção: J.-P. Caron e Henrique Iwao

Ser outra coisa fora do arcabouço das “tags” é também uma violência precavida pelo Dentaduro, que consiste de vibrafone (por Victor Vieira-Branco), baixo elétrico (por Bernardo Pacheco) e bateria (por Pedro Silva) pra criar uma espécie de livre-improviso (isso é achismo meu) entre os instrumentos que alteram de plano, se afastam e se aproximam. É uma música que não mantém vínculo algum com estereótipos de criação e tem uma fidelidade absoluta na extensão apreensiva dos integrantes da banda.

Sair do mundo instituído é muito menos complexo do que se imagina, mas pra isso é necessário um retorno à simplicidade que tanto o Epilepsia quanto o Dentaduro reivindicam. Ao deixarem de estabelecer sistemas prontos pra criar a música, o que se desdobra é uma espaço de incursão no qual eu sou arremessado de lá pra cá sem saber muito bem por onde ir. A imprevisibilidade das decisões sonoras que criam essa perdição: o vibrafone quando fica sozinho repete as notas, o contrabaixo e a bateria agora que repetem e o vibrafone pode fazer outros movimentos. É uma rotação improvável porque, pelo menos pra mim, ela não existe de antemão. Ela é criada enquanto eu ouço o disco. É dessa constância criativa que nasce minha surpresa. Ela não é infundada e muito menos antecipada. Ela simplesmente surge enquanto os músicos tocam combinações que não imaginava nem previa. Isso estranhamente causa algo: as músicas seguem em continuidades e rompimentos, elas se desdobram sobre formas teoricamente antagônicas e evidenciam a multiplicidade possível através dos procedimentos. O que eu ouço e percebo nem sempre são a mesma coisa, e essas sobreposições existem pra mim ao mesmo tempo. A única convicção é essa surpresa: o desconhecimento total do que é tocado e as reações imediatas as quais os instrumentos causam. Não há nenhum som “no lugar” e eu nem mesmo poderia delimitar esses lugares porque o que caracteriza “5218” é a rotação improvável de “não-lugares” (o disco leva essa título porque foi gravado em 5 de fevereiro de 2018, ao vivo, na Fábrica De Sonhos).

A inexistência de um núcleo possibilita todas essas coisas. As interações entre os integrantes não precisam de um epicentro e podem se locomover justamente por não precisarem retornar a nada. A impressão de avanço é constante. Os acessos são sempre novos. Eu não penso num destino ou antecipo um clímax enquanto ouço o disco, eu simplesmente testemunho um desdobramento. O deslocamento imposto que permite a surpresa perante a algo criado por instrumentos tão comuns. Enquanto eu ouço álbum a impressão é de que todas as movimentações são destinadas unicamente às minhas reações, o que me permite notar com sinceridade o trajeto de cada instrumento, separá-los ou ouvi-los como unidade. Tudo ao mesmo tempo.

A impossibilidade de aplicar um centro a esses discos é que possibilita tantas reações a cada audição.

1. Curte-Curte
2. Amiga
3. Déspota Esclarecido
4. Bestas Sazonais
5. Sus(surro)
6. Sus(to)
7. Dez Dálmatas
8. Pai Amiga

NOTA: sem nota atribuída
Lançamento: 27 de fevereiro de 2018
Duração: 30 minutos e 53 segundos
Selo: Fábrica De Sonhos
Produção: J.-P. Caron e Henrique Iwao

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