REVISITANDO: NAT KING COLE – I’D RATHER HAVE THE BLUES (1955)

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Uma mulher corre de roupão, descalça por uma estrada escura, desesperada, atormentada, fugindo de um perigo que não sabemos qual é. Os poucos carros passam buzinando e desviando dela, sem parar. Vemos apenas as luzes ofuscantes dos faróis. Ela está realmente desesperada e toma uma atitude que pode lhe valer a vida: para no meio da estrada, com um carro vindo em alta velocidade (um Jaguar XK120 de 1951).

O motorista consegue frear a tempo, desviar da mulher e para no “acostamento”. O acidente é evitado. O homem, ainda atordoado pelo susto, vê a mulher correndo em sua direção pedindo ajuda. Ele não se nega. Ao primeiro silêncio, ouvimos a voz suave da locutora da rádio sintonizada no carro dizer: “e agora, amigos, a nova de Nat King Cole, ‘I’d Rather Have The Blues'”.

A voz impressionante de Cole começa a soar no silêncio: “The night is mighty chilly / And conversation seems pretty silly / I feel so mean and rot / I’d rather have the blues than what I’ve got” (ou, numa tradução capenga: A noite está bem fria / E a conversa parece bem boba / Eu me sinto tão malvado e podre / Eu prefiro o blues (a tristeza) ao que o que eu tenho”).

O carro arranca na noite e o motorista tenta entender a situação. A trama de “A Morte Num Beijo” (“Kiss Me Deadly”), filme de 1955, começa, com o preto e branco e a câmera investigativa e instigante de Robert Aldrich levando o espectador, a cada cena, à pergunta que um contador de histórias mais deseja: “o que diabos vai acontecer?”. E a gente fica grudado na tela esperando a resposta. Em uma hora e quarenta e seis minutos o que se consegue é um desfile de conspirações, personagens que nunca são o que parecem e mocinhos derrotados e de caráter duvidoso, sempre prestes a se dar mal e sofrer, enquanto lutam por uma espécie de redenção e honradez que não lhes garante conforto financeiro, nem profissional, apenas mais uns dias naquela vida em que se dar bem só garante o presente, nunca o futuro.

“Kiss Me Deadly” é um típico filme noir: temas sombrios, suspenses, elementos psicológicos, personagens de caráter dúbio (não há mais só o certo e o errado do “mocinho” e do “bandido” – o “mocinho” pode ser alguém que vive dando golpes, mas tem, lá no fundo, certo caráter; e o “bandido” é “gente de bem”, com grana, boas roupas e mansões e, sim, parece algo que vemos hoje por aí). Acima de tudo, está a fotografia em preto e branco (e seus ângulos diagonais, invertidos, de baixo pra cima, de cima pra baixo), chupinhando o expressionismo alemão da década de 1920 (o fotógrafo aqui é o húngaro Ernest Laszlo).

A provocação temática desses filmes era um olhar no espelho da próprio Hollywood, com seus egos inflados e muito dinheiro passeando por aí e pisando nos mais fracos e, especialmente, com puxadas monumentais de tapete, influência política e manipulação de pessoas. As drogas e, principalmente, o alcoolismo reinavam. E as coisas não eram exatamente coloridas, elas aconteciam nas sombras. A verdadeira Hollywood estava nas sombras, no subterrâneo.

O cinema há muito adotara o cinismo como um de seus traços mais marcantes e a canção de Nat King Cole, “The Blues From Kiss Me Deadly (I’d Rather Have The Blues)”, foi uma boa representação desse cinismo.

Cole já aparecia em filmes há um bom tempo – esteve, inclusive, em “Cidadão Kane”, de Orson Wells, de 1941. Sua voz era tão espetacularmente sedutora que emprestava uma classe imediata aos filmes, nem se fosse apenas como uma canção tocando ao fundo, como é o caso de “Kiss Me Deadly”.

Mas não só isso. Cole nasceu em 1919, no Alabama, Esteites (morreu cedo, pouco antes de completar 46 anos, de câncer nos pulmões, em 1965), era bonito e tinha 1,84 metro, uma altura que o destacava. Aos 20 anos, já havia tocado, com seu King Cole Trio, pra futura rainha Elizabeth II, da Inglaterra; ela com apenas 13 anos. Foi um sucesso em vida (uma curta vida), com vinte e oito discos de ouro. Ou seja, ter Cole nos créditos de um filme não era apenas levar elegância e classe à película, era uma questão comercial muito bem-vinda.

Pra se ter uma ideia, ele poderia ser pago pra apenas cantar em um filme cercar de US$ 700 mil (em valores atuais, corrigidos pela inflação). Em 1957, recebeu US$ 75 mil pra interpretar “Three Coins In The Fountain” na abertura de “No Umbral Da China” (“China Gate”, de Samuel Fueller), um filme sobre a guerra na Indochina (a informação é do IMDB).

Ele dizia que queria apenas cantar “pra fazer as pessoas felizes” e esse é um lema que definitivamente não se encaixa em “The Blues From Kiss Me Deadly (I’d Rather Have The Blues)”.

A canção no filme, escrita por Frank DeVol, que assina a trilha sonora, é essencialmente noir: os instrumentais se arrastam ao fundo, ilustrando uma noite escura e chuvosa, com um homem caminhando sozinho pelas ruas da cidade, pensativo, fumando um cigarro, de terno e chapéu (todos usavam terno e chapéu), lamentando aquela que partiu seu coração, mas que, como os personagens desses filmes, derrotados, que buscam alguma honradez e seguem dizendo pra si: “eu prefiro o blues (ou a tristeza) ao que o que eu tenho” agora.

Não há outras cores ao se ouvir a canção de olhos fechados. Apenas tonalidades de cinza, branco e preto. A vida naqueles tempos era “não-colorida” na cabeça desses criadores.

O leitor poderá argumentar que há inúmeros filmes emblemáticos e excepcionais feitos em cores nas décadas de 1950 e 1960 e realmente há. Mas essa canção entoada por Cole só poderia estar em um filme noir.

Cole não aparece em “Kiss Me Deadly”, apenas sua voz. É o suficiente.

O vinil de sete polegadas e quarenta e cinco rotações por minuto foi lançado pela Capitol Records junto com o filme. A canção principal está, acredite, no lado B. No A, “My One Sin”, de Robert Mellin e Vittorio Mascheroni.

Nelson Riddle fez os arranjos e conduziu a orquestra.

Curiosamente, a trilha do filme ainda traz Franz Schubert, com sua “Sinfonia Nº 8: Inacabada”; Frédéric Chopin, com “Etude, Opus 10, No. 12”; Johannes Brahms, com “Quarteto Em Cordas Nº 1: Primeiro Movimento; e Johann Strauss, com “Kaiser-Walzer, Op. 437”. Os trechos possuem um motivo pra estar na trama.

Lado A
1. My One Sin

Lado B
1. The Blues From Kiss Me Deadly (I’d Rather Have The Blues)

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