THE JESUS & MARY CHAIN NO FESTIVAL CULTURA INGLESA – COMO FOI

Tenho cá pra mim um processo de compreensão da música que parece aos outros um tanto estranho: sempre vou desconfiar das bandas que gosto. Como Groucho, não ficaria sócio de um clube que me aceitasse como sócio. Não acredito em idolatrias, ainda mais nas minhas próprias idolatrias.

Tempos atrás, vi o show do Stone Roses, um dos grandes sonhos da vida (faltam My Bloody Valentine e The Smiths, esse último bem próximo do impossível). Sabia que a turma do Ian Brown era sofrível em cima do palco, não haveria de surpreender como performers, seria um show ruim com músicas boas. E foi o que foi: o melhor show ruim da minha vida.

O mesmo vale pro Jesus & Mary Chain, uma das grandes bandas da minha vida. Mas com relação aos irmãos Jim e William Reid, já estava descolado. Em 1990, vi dois shows no Projeto SP, antiga casa na região da Marechal Deodoro, e que foram históricos. A dupla estava se sustentando no auge, cheio de biritas e aditivos, deixando como herança zunidos nos ouvidos e uma vontade inacreditável de chutar canelas por aí. Era o poder mágico da música jovem contestadora, diferente, vibrante, inventiva, subversiva. Eu, prestes a entrar na faculdade, achava aquilo insuperável, nunca vi e nem veria algo parecido.

Lá se vão vinte e quatro anos e realmente não vi nada parecido (ainda verei um show do Swans, mas isso é outra história). Nem mesmo quando o Jesus & Mary Chain veio ao Brasil em 2008, pro Festival Planeta Terra. Naquele momento, irmãos unidos pela força da grana (“que ergue e destroi coisas belas”) oferecida e embolsada no ano anterior, no Coachella, festival que tem a fama de comprar voltas de bandas, o Jesus & Mary Chain já era um bocado burocrático, econômico nas guitarras e nos ruídos, estava domesticado, sem força pra criar impactos destrutivos nas mentes jovens. Ali, desconfiei, decretei e acertei: o Jesus nunca mais seria o mesmo.

A diferença, é claro, está na história. Bela história. A banda que se inspirou nos melhores. Enquanto a mérdia normal vai beber na fonte dos Beatles e Rolling Stones (ou qualquer medalhão 60/70), o Jesus foi atrás da única banda que importava, o Velvet Underground (Jim usou a camisa de “Loaded” neste show). Encheu aquelas melodias de ruídos e distorções e criou algo tão caótico, que boa parte do que se ouve de ruídos e distorções hoje tem um tanto do DNA dos Reid, incluindo aí o My Bloody Valentine.

Importância histórica, shows catárticos. É assim que deveríamos nos lembrar do Jesus & Mary Chain. Mas não é assim que o Jesus & Mary Chain quer que nos lembremos deles. Essa banda que pisou no palco do 18º Festival Cultura Inglesa, no dia 25 de maio de 2014, é só um retrato amarelado daquela banda que me encantou em 1985 (eu era pré-púber àquela época!) e que arrasou convicções em cima do palco até o início dos anos 1990, Brasil incluído, eu incluído, com shows arrebatadoramente violentos e destrutivos.

Esse Jesus & Mary Chain é um Jesus & Mary Chain burocático, ainda mais domesticado do que o de 2008. Já sabia que veria um retrato daquela apresentação de 2008. Seria ruim, mas com músicas boas. Como o Stone Roses, mas sem o ineditismo.


Foto: Lucas Brêda

A ideia de um festival no Memorial da América Latina não é nova, mas continua interessante. O Cultura Inglesa já havia feito isso em 2013, repetiu a dose em 2014. Lugar de fácil acesso, exatamente na saída do metrô, amplo e bem estruturado. A organização merece aplausos (exceto pelo fato de não vender cerveja, mas não vale o desmerecimento e é compreensível): banheiros fartos e boa oferta de alimentação (o fish & chips acabou rápido, mas ok). Ponto falho: péssima sinalização do lado de fora.

Cheguei cedo. Queria ver o Los Campesinos também. Mas cheguei cedo demais, bem na hora daquele show de humor da Monique Maion – pelo menos me pareceu a tentativa de fazer humor – “interpretando” Amy Winehouse. Não consegui esboçar um sorriso sequer e também não vi ninguém gargalhando, de modo que me ocorreu a possibilidade da moça estar se levando a sério mesmo, o que é triste. Tudo embaixo de chuva. São Paulo passa pela maior estiagem em cem anos e o céu resolve que mandar água sem parar justamente nesse domingo “inglês”. Justo.

O Los Campesinos vi de mente aberta, tentando entender o motivo de tanta gente, cujo gosto eu considero, apreciar. Pareceu-me um The Killers piorado e descolado. Hipsters gostam e isso é compreensível. Mas gente com tutano também curte e não vi nada em cima do palco que pudesse me dar uma explicação pra isso. Talvez o Los Campesinos também não estivesse num dia bom. A banda tenta sair da formulinha indie em alguns momentos e as distorções eventuais de baixo e guitarra oferecem esperança, mas logo voltam ao normal. Não me convenceu, fica pra próxima (porque certamente darei nova chance a eles).

A chuva para exatamente na preparação pra entrada do Jesus & Mary Chain. Um milagre. Mais de meia hora pra montar o palco. Às 19:35h, a sempre fofa Gaía Passarelli entra no palco e, compreensivamente nervosa, apresenta o que ela mesma concorda não necessitar de apresentação. Não precisava.

O público recebe a banda com certa frieza. Justifica-se: muita chuva gelada na cabeça por muito tempo. Mas justifica-se principalmente pelo fato de que uma boa parte do público, a despeito do que se imaginava, não era formada por tiozões saudosistas. Havia algo que me surpreendeu: jovens e mais jovens com camisas do Jesus, gente que não era nem nascida quando “Automatic” e “Honey’s Dead”, os discos que basearam o setlist, foram lançados, em 1989 e 1992, respectivamente. Deveria ser pra eles que o Jesus se apresentaria. Deveria ser pra eles que as guitarras se tornariam uma afronta à mesmice. Deveria ser pra eles que a banda mostraria o motivo de tanta importância e idolatria.


Foto: Lucas Brêda


Foto: Lucas Brêda


Foto: Lucas Brêda

Temo, porém, que nenhum daqueles jovens tenha compreendido o porquê de tanta adoração. Quando “Snakedriver” começou, lenta e apática, contrastando com um Jim Reid levemente empolgado e diferente daquele Jim que não encarava plateias, um estranhamento deve ter surgido. “Head On”, a segunda música mais conhecida deles por quem não é fã deles, graças à Legião Urbana, ou graças ao Pixies, chegou a animar, mas não muito.

Seguiram-se ótimas canções que se mostraram apáticas e burocráticas. Os fãs de longa data sentiam falta daquele peso característico, aquela sujeira, um pouco de demência. Não receberam nada disso. O som do festival não ajudava. Não ajudava nem mesmo a própria banda, que começou a não se ouvir e a se irritar. Jim Reid colocava as mãos no ouvido, na esperança de se ouvir. Faltava retorno, faltava estorvo.

Em “Sidewalking”, bingo: primeiro erro. Jim briga com William, seu agora balofo irmão na guitarra, que parecia estar em outro planeta. Não é segredo que o Jesus erra muito em cima do palco e que não tem vergonha de começar tudo de novo. Faz parte do folclore e da mágica. Outros erros e recomeços viriam em “Halfway To Crazy” e no hit “Just Like Honey”.

“Some Candy Talking” soou legal e natural, ela não precisa de peso e ruídos. A chuva volta justamente no anúncio de “Happy When It Rains”. Outro milagre. Os tiozões se emocionaram. Eu sorri. Os problemas do palco se agravaram. A banda largou tudo, aparentemente irritada, perguntando se a plateia queria mais e se quisesse, “sabia como fazer”. Ninguém pediu muito pelo bis, não.

Entretanto, o melhor do show estava no bis: duas do “Psychocandy”, o disco que mudou tudo, justamente com as duas mais palatáveis, “The Hardest Walk” e “Taste Of Cindy”; e principalmente por conta de “Reverence”, que abre o “Honey’s Dead”, pesada, encorpada, suja, impertinente (“eu quero morrer como Jesus Cristo, eu quero morrer numa cama de espinhos, eu quero morrer, eu quero morrer!”), como o Jesus & Mary Chain tem que ser.

Aquela banda que me encantou em 1985 estava ali no palco o tempo todo, só apareceu na última música. E, diabos, ela continua boa.

Eu me rendo: gosto desses bons shows ruins. Se o Jesus & Mary Chain vier de novo, preciso ver de novo. Eu peito de frente a idolatria, é o que me diz a razão. Só que a emoção fala mais alto.

01. Snakedriver
02. Head On
03. Far Gone And Out
04. Between Planets
05. Blues From A Gun
06. Teenage Lust
07. Sidewalking
08. Cracking Up
09. All Things Must Pass
10. Some Candy Talking
11. Happy When It Rains
12. Halfway To Crazy
13. Just Like Honey

BIS
14. The Hardest Walk
15. Taste Of Cindy
16. Reverence

Veja “Just Like Honey” (mais vídeos do autor):

E veja aqui o show na íntegra:

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Comentários

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7 comentários

  1. Tb VI no festival do terra, e até gostei, pq foi a 1° vez e tal…
    Achei bacaninha o show dos campesinos, mas claro, a cereja e o bolo td era dos tiozinhos! Qdo ele soltou aquele – vcs same o que fazer – era deixa pra eu e minha esposa sairmos fora! Caminhando até a saída, percebi que tava melhorando, e chegando no metrô, parei um pouco pra ouvir o ultimo som…

  2. Campesinos poderiam também animar o carnaval da Bahia, porque pular alegremente no palco como se não houvesse amanhã parece que é com eles mesmos.

  3. Também, fui ao show. Sempre curti muito J&MC, mas por conta do destino não tinha carimbado ainda no meu currículo de shows. Nada melhor que um domingo chuvoso para conseguir esse carimbo.
    Tive exatamente a mesma impressão um show burocrático, com uma banda domesticada que não ousava nada. Valeu pelo lado histórico… a única ressalva é que eu estava tão desentusiasmado que perdi o bis… fica a dica pra esperar até o fim… vou assistir agora o vídeo.

  4. O Psychocandy mudou minha vida. Não como inspiração, pq eu já brigara com todos os vocalistas que eu tive, que não admitiam que eu colocasse minha guitarra distorcidíssima por cima de suas vozes, então acabei eu mesmo assumindo os vocais, já que não me importava com isso. E o Psychocandy mostrou que aquilo era possível. Depois, veio o Darklands, um bom disco, mas aquelas guitarras faziam falta. E para mim, o J&MC acabava ali. Com exceção do Munki, que é um disco bacaninha, sempre execrei tudo que lançaram depois, com aquelas batidas típicas dos anos 90 (que o Enéas Neto chamava de “pagode eletronico”, rsrs).
    Mas eu li em algum lugar que eles se apresentariam na Inglaterra tocando o Psychocandy na íntegra. Isso me animou bastante, mas eu estava em Minas Gerais e não tenho cartão para poder pegar o ingresso no Live Pass. Cheguei em Santos poucos dias antes do show, convencido de que já estariam esgotados, mas na 6ª feira chega a informação de que haviam mais de 2000 sobrando, e provavelmente não seria problema retira-los na hora do evento. Mas o tempo estava ruim, não arrumei carona, e soube que o Terra transmitiria o show (inclusive as aberturas) ao vivo. Decidi não arriscar, e foi uma decisão acertada. Não gosto de Amy Winehouse (não me tomem por um velho ranzinza, sempre fui turrão assim mesmo), então não posso dizer se a Monique Maion fez justiça ou não.
    Já dos Campesinos, posso dizer tranquilamente que foi uma merda completa, prato cheio para indies bichinhas que mesmo andando em bandos de 10, deixam que 2 manos lhes roubem os tênis.
    Quando o Jesus entrou, a postura de palco do Jim Reid me decepcionou quase tanto como a do Barney (de quem assumo tranquilamente ter roubado o estilo que ele fazia no Taras Schevchenko. segurando o microfone com uma mão e passando o outro cotovelo por cima dela) no Olympia, dançando feito um macaco. Tinha mais um guitarrista, mas ambas as guitarras mal atingiam um crunch, quanto mais uma distorção. Nem lembro mais quantas musicas pentelhas eu tive que suportar até Happy When It Rains, que no entanto teria sido melhor interpretada até por uma banda cover. E errar uma introdução e começar de novo, normal, mas 3 VEZES???
    Mesmo assim, resisti bravamente e fui até o fim do show, mas nem as versões burocráticas de Just Like Honey e The Hardest Walk compensaram.
    Os dois irmãos Reid estão em minha lista no Facebook. No sábado, enviei uma mensagem ao Jim, me desculpando por não estar presente e desejando um grande show. Pensei que mesmo que o show não fosse tudo aquilo, eu poderia mandar uma mensagem de parabéns na 2ª feira. Mas não consigo ser tão cínico assim, então recolho-me a meu silêncio, e desejando que o público inglês tenha melhor sorte que nós, se rolar mesmo o Psychocandy no palco. Era o que nós mereceríamos após 30 anos de culto e não tivemos…

  5. Po, mandou melhor que eu na análise. Acho que esse lance do Psychocandy não vai rolar. Vai rolar é uma turnê de 30 anos de carreira, mas não deve ser muito diferente do que a gente viu aqui.

  6. o show stava ótimo….não creio que fora burocrático e parado….o jesus mostrou para essa geração mais nova, o quanto se pode fazer um rock fisceral e matador,sem se render ao politicamente correto de hoje em dia…. como nasi fez na virada cultura…. uma das bandas da minha vida (lógico sou ardoroso fá). os mesmos irmãos Reid, puseram não a distorção excessiva e boa de 25 anos atrás….mas a atitude contestadora punk que sempre os diferenciou… Jim não ficou adulando a platéia como los campesinos..(brasil….i love you…) se mostrou digno de não ser copiosamente saudosista…..conseguiram fazer um show memorável. já até vi shows legais (cure e smashing pumpkins em 1996,Iggy pop em 2009 entre outros) mas este show será um documento vivo de como uma banda conseguiu se manter intacta do comercial e do padrão ridículo-cultural atual que impera hoje. thanks jesus……

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