UM HINO PELA LIBERDADE DO TIMOR LESTE

Paul Stewart tinha um irmão jornalista, chamado Tony. Junto com outros cinco jornalistas, Tony foi morto por forças indonésias, em 1975, perto da fronteira com a parte ocidental da ilha de Timor, pertencente à Indonésia. Os seis estavam em Balibo, do lado “independente” da ilha.

Gil Santos perdeu o pai no mesmo ano e pelas mesma forças, fruto da mesma discórdia.

A Indonésia é um país formado por ilhas. A Ilha de Timor não era uma delas. Do lado oeste, a Holanda tomou parte da colonização, em 1651. Do lado leste, era Portugal, desde 1515, que tomava esforços de colonizar. Em 1859, os dois países firmaram um tratado estabelecendo a fronteira entre o Timor Holandês e o Português.

Mas em 1945, logo após a II Guerra, a Indonésia conseguiu sua independência (justamente da Holanda) e o Timor Ocidental passou a fazer parte de seu território. O Timor Oriental, o Português, seguiu sob comando de Portugal, que até 1974 foi gradualmente dando autonomia ao território, apesar da relutância do ditador Salazar, que estava no poder da metrópole desde 1933.

Em 25 de abril de 1974, acontece a Revolução dos Cravos, devolvendo a democracia a Portugal, restabelecendo o direito à autodeterminação das colônias portuguesas. Assim, em Díli, capital do Timor Leste, foi criada a Comissão para a Autodeterminação de Timor, que resultou na criação de três partidos políticos: a UDT (União Democrática Timorense), que queria “a integração do Timor numa comunidade de língua portuguesa”; a ASDT (Associação Social-Democrata Timorense), que depois virou a famosa FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), defendendo o direito à independência do país; e a APODETI (Associação Popular Democrática Timorense), que esperava unir o país à Indonésia.

A descolonização avançava a passos largos. Em janeiro de 1975, realizou-se a primeira consulta popular pra administração regional. Nesse momento, já era claro o pouco apoio que a APODETI tinha: os timorenses não queriam pertencer à Indonésia.

Parecia óbvio o motivo: a Indonésia tinha claras diferenças culturais com o Timor Leste. A começar pela língua. No Timor Leste, fala-se o tétum, uma língua descomplicada que mistura português e malaio. Na religião, enquanto o islã predomina na Indonésia (é o mais populoso país de maioria muçulmana do mundo), no Timor Leste, é o catolicismo que se apropriou das crenças.

Diz-se que o erro timorense foi a precipitação. Em 28 de novembro de 1975, a FRETILIN proclama unilateralmente a independência, declarando Xavier do Amaral o presidente e Nicolau Lobato o primeiro-ministro. Foi a desculpa que a Indonésia precisava pra, a pretexto de “defender sua população”, invadir o Timor Leste, tomar posse, fazer da região sua nova província e mudar o nome do leste da ilha pra Timor Timur. Quem patrocinou a invasão e a anexação foi o governo estadunidense, com o temor característico da época, que resultou em dezenas de golpes de estado em todo o mundo: o de que a FRETILIN era um partido com ideias marxistas.

A partir daí, mais de vinte anos de resistência armada dos timorenses, numa guerra civil que acabou computando duzentas e cinquenta mil pessoas mortas, desaparecidas e deportadas. Falar português passou a ser proibido, bem como o catolicismo. Falar tétum foi desencorajado. O indonésio passou a ser ensinado nas escolas. A censura à imprensa se postou violenta e constante. O acesso de observadores internacionais ao território ficou proibido.

O clima sombrio durou até a queda do ditador Suharto, em 1998, quando o novo governo, de Baharuddin Jusuf Habibie, concordou em ceder à ONU a responsabilidade de realizar um referendo pra que a população escolhesse se queria ser independente ou continuar fazendo parte da Indonésia. O referendo foi realizado em 30 de agosto de 1999 e, com mais de 90% de participação no referendo e 78,5% de votos, o Timor Leste rejeitou a autonomia proposta pela Indonésia, escolhendo a independência.

Ganhou o “não” (“não queremos fazer parte da Indonésia”).

Nesse período de exaltação de liberdade, mas ainda de terror imposto pelas milícias indonésias, é que Paul Stewart e Gil Santos – que haviam se conhecido justamente no dia em que o líder timorense Xanana Gusmão foi capturado pelos indonésios, em 1992 – resolveram montar uma banda, a Díli AllStars, formada por músicos australianos e timorenses. Stewart é australiano. Santos, timorense. O projeto surgiu em 1996. A ideia era usar a música pra protestar contra a prisão de Gusmão, e arrecadar fundos pra causa.

Diretamente ligados com a dor do povo timorense, pela violência dos indonésios, os dois recrutaram outros músicos reverentes à causa – o que nem foi muito difícil e, em todo o período de existência do grupo, que está ainda na ativa, mais de trinta músicos já passaram por suas fileiras, um verdadeiro exército.

Santos e Stewart não moravam no Timor. Na Austrália, começaram os primeiros passos, com a gravação de “We Can’t Be Beaten”, sucesso dos australianos do Rose Tattoo, de 1983. Daí, surgiu no horizonte o plebiscito que mudaria a vida do país e a dupla resolveu gravar a música que mudaria a forma como as pessoas se sentiam diante da possibilidade de ter uma nação pra chamar de sua: “Liberdade”.

A música carrega a essência da banda: ska, reggae, pop e, claro, rock. “Rock é sobre rebelião e contrariar o sistema”, disse Stewart certa vez, mesmo que dessa vez fosse a favor da maioria e pela instauração de uma ordem mínima. A música era contra o sistema vigente só porque o sistema vigente era o errado. “Nós não tocamos pra ficar ricos ou ser popular. Somos mais como combatentes revolucionários do que músicos”. “Liberdade” é a música certa nesse conceito.

A banda é oficialmente australiana, embora tenha músicos timorenses. “Liberdade” se tornou um hino pelo “não” no plebiscito, exatamente como uma arma. Com a censura, o governador indonésio veiculava canções que diziam que o país queria continuar fazendo parte da Indonésia, uma propaganda oficial pelo “sim”, enquanto não se havia vozes contrárias que cantassem o “não”.

“Nós ouvíamos que o governador do Timor Leste tinha escrito todas aquelas canções onde ele dizia que queria que o país continuasse como parte da Indonésia, então pensamos ‘bem, poderíamos escrever uma canção pela independência do povo’. Foi uma canção que escrevemos de improviso, mas cresceu pra ser provavelmente a maior coisa na qual estive envolvido”, diz Stewart.

Isso porque “Liberdade”, com suas meras quinhentas cópias, ganhou os subterrâneos de Díli e do interior do país, sendo tocada e transmitida de maneira clandestina incessantemente. A canção tinha um apelo que as canções pelo “sim” não tinham – era cantada em tétum (e em inglês).

“É engraçado. Não temos discos de ouro pra colocas na parede, não fizemos dinheiro com isso, mas contrabandeamos quinhentas cópias de ‘Liberdade’ enquanto os indonésios estavam no poder, e a música foi levada às colinas, os guerrilheiros estavam tocando nosso material. É fantástico pensar nessa força. Não é sobre vender camisetas ou estar nas paradas de sucesso. É sobre como ainda é poderosa e incrivelmente eficaz uma música pra mudar a forma como as pessoas se sentem (diante da opressão)”, disse.

O “não” ganhou, com expressiva margem, apesar das ameaças das milícias indonésias. Quase 80% dos que compareceram às urnas (e foram 90% dos aptos a votar). Mas não foi suficiente. Como um mau perdedor, o governo da Indonésia intensificou a violência e as milícias desencadearam uma onda ainda mais forte de terror, com assassinatos frios, prisões e sequestros de toda e qualquer pessoa que se imaginava ser a favor da independência.

As manifestações de revolta se espalharam pelo mundo. O selo independente Mushroom Records, da Austrália, lançou a coletânea “Liberdade”, que obviamente continha a música do Díli Allstars, e conseguiu arrecadar cem mil dólares.

Mas a ONU teve que intervir. No final de 1999, o brasileiro (morto poucos anos depois em missão no Iraque) Sérgio Vieira de Mello chefiou uma força-tarefa da ONU pra conter a violência indonésia e instaurar a decisão legítima do voto. Pouco a pouco, os timorenses puderam ver uma luz no fim do túnel. As primeiras eleições legislativas foram convocadas e em 2002 a Assembleia Constituinte colocou em prática a primeira Constituição do mais novo país livre do mundo – e reconhecido por todas as outras nações.

Até hoje, Stewart lembra, por onde ele vai no Timor Leste, as crianças correm atrás dele cantando “Liberdade”.

Elas agora correm livres.

Ouça a canção:

E ao vivo, no “Tour Of Duty”, concerto ao exército australiano de paz no Timor Leste, em 1999:

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