A TURBULENTA E DOIDA PASSAGEM DO HAPPY MONDAYS PELO BRASIL

Estava na primeira capa da Folha de São Paulo de quarta-feira, 16 de janeiro de 1991: “Shaun Ryder, cantor e compositor da banda inglesa Happy Mondays, disse que pretende trazer mil tabletes de Ecstasy (droga semelhante ao LSD) pro Rock In Rio 2, que começa sexta”. O título era: “banda inglesa quer trazer droga ao Rio”. A matéria principal do jornal naquele dia era sobre os mais de um milhão de soldados aliados que estavam prontos pra iniciar a invasão ao Iraque, na primeira Guerra do Golfo.

Naquele momento, a banda estava vivendo seu “momento mágico”. Com o lançamento recente, em 1990, do terceiro álbum, “Pills ‘n’ Thrills And Bellyaches”, sua obra mais importante crítica, comercial, musical e socialmente, avançou rapidamente pro topo das paradas inglesas e de alguns países europeus. Ganhou as capas dos jornais. Ganhou as pistas de dança.

E ganhou matérias como a que Bob Mack escreveu em 10 de dezembro pra estadunidense Entertainment Weekly: “recentemente alçado ao topo das paradas britânicas – da independente e da mainstream – o Happy Mondays é o grupo mais na moda na Inglaterra. Seus cabelos oleosos, roupas folgadas, gosto por drogas, problemas com a lei e dance rock levemente repetitivo deram a eles a reputação de ‘os novos Rolling Stones’. Como resultado, sua cidade natal Manchester tomou o lugar de Londres como o centro da cena musical e de estilo da Grã-Bretanha e criou uma série de grupos que tentam imitar o revivalismo do Happy Mondays do final dos anos 60 e início dos anos 70″.

O grupo era um dos pontas-de-lança da cena Madchester, que surgiu na virada daquela década no clubes e gravadoras independentes, junto com outras bandas, como Stone Roses, Inspiral Carpets e The Charlatans. O lance era misturar guitarras com batidas dançantes e muita, mais muita viagem ácida. O ponto de encontro, claro, era o The Haçienda, clube tocado por Tony Wilson, da Factory Records, que usava toda a grana da gravadora (basicamente, vendas geradas pelo New Order) pra cobrir os rombos do clube. Até que veio a febre das raves e a Madchester.

A enxurrada de drogas que inundava o Haçienda espirrou um pouco no Rock In Rio, aqui no Brasil, meses depois. O festival que tinha ambição de ser o maior do Hemisfério Sul era também o mais careta, numa sociedade que havia votado pra presidente pela primeira vez em trinta anos e ainda não havia se recuperado (ainda não se recuperou, é verdade) de um cruel golpe militar. O Brasil, apesar das expectativas, vivia num século diferente dos ingleses (mesmo que eles fossem governados por alguém conservador como John Major).

Mas a turma de Shaun Ryder não imaginava que seria tão séria a declaração. Numa entrevista por telefone a Jean-Yves de Neufville, publicada na mesma edição da Folha de São Paulo, com a manchete “vocalista do Happy Mondays quer trazer polêmica do ecstasy ao Rio”, o cantor de então 28 anos diz: “viemos todos de um meio pobre. Nos anos 80, éramos todos desempregados e vadios. A gente costumava se reunir pra fumar maconha, tomar ácido e ouvir música. Foi assim que o Happy Mondays começou”.

“Ele quer trazer mil tabletes de ecstasy ao Rio”, escreveu Neufville. “Ryder perguntou se a droga, que o grupo costuma consumir, é ilegal no país. A droga, uma espécie de LSD, é proibida no Brasil e na Inglaterra, onde ele vive”, avisava.

A droga era uma novidade tão grande que que os jornais daqui volta e meia tinham que explicar do que se tratava. A Folha chegou a fazer um mini guia de uma coluna sobre a droga, nessa mesma edição.

Quando Neufville morreu, em 2013, Camilo Rocha lembrou dessa história pro Trabalho Sujo: “Jean-Yves trabalhava na Folha Ilustrada (e freelava pra Bizz). Estava perto do segundo Rock In Rio e um dos escalados era o Happy Mondays. A banda estava no auge, representante maior de uma onda Manchester-acid housefreak. Jean-Yves entrevistou Shaun Ryder pro jornal e conseguiu uma declaração bombástica. Dia seguinte, primeira página, a manchete trazia algo como ‘vocalista do Happy Mondays quer trazer 1000 ecstasies para o Brasil’. Semanas depois, estamos eu e Jean-Yves numa sala de um hotel de luxo no Rio nos preparando pra entrevistar Ryder em carne e osso. Já era a semana do festival. Não tinha dado meio-dia, mas Ryder já entornava vodca e cerveja, intercalando os drinks com uma bomba de tabaco com haxixe. Fomos entrevistando ele em dupla. Eu pergunto dos 1000 ecstasies e Ryder se exalta. Diz que foi sacaneado, que nunca ia ser trouxa de falar algo assim pra um jornalista. Jean-Yves conta que era ele o entrevistador e o contesta. Ryder fica puto, continua negando e fecha a cara. A entrevista, entre resmungos em forte sotaque nortista inglês, tragos e chapação, fica ainda mais incompreensível”.

A capa da Ilustrada que traz a entrevista é a da famosa foto que Shaun Ryder segura o jornal:

O barulho causado pelo Happy Mondays foi como um trovão: repentino e, pra muitos, assustador. A banda não estava nos planos do Rock In Rio, a princípio. O grupo só entrou na escalação às pressas, convocado no dia 11 de janeiro de 1991, pro lugar da cantora Jody Watley, e já chegou chegando, com uma manchete dessas e o título da mais importante banda britânica daquele ano, segundo a própria imprensa britânica.

Mesmo assim, o Happy Monday nunca havia tocado pra uma multidão – e, segundo apontavam os jornais e a organização, a capacidade do Estádio do Maracanã pro festival era de cento e dez mil pessoas por noite. “Este vai ser um dos maiores concertos do mundo, não vai?”, perguntou Shaun a Arthur Dapieve, no Caderno B do Jornal do Brasil de 16 de janeiro de 1991. “Já tocamos pra onze mil pessoas, no máximo”.

Dapieve precisava orientar o leitor sobre o que se tratava: “embora Manchester já tenha gerado Buzzcocks, Joy Division, The Fall, New Order e The Smiths, entre outros, a cidade só criou seu movimento com a chegada da droga ecstasy, em 88. ‘A explosão de Manchester não existiria sem ecstasy’, admitiu Ryder. ‘Lá havia mais ecstasy do que em todo Reino Unido’. Os Happy Mondays, aliás, se tornaram mais que usuários dos tabletes ácidos: consta que eles já foram os maiores traficantes da cidade”.

E continua, mais a frente: “seu envolvimento com drogas – fora o ecstasy, Shaun foi preso com cocaína e (Mark) Berry (percussão), com maconha – e seu mau comportamento são lendários, apesar de seus parcos dez anos de vida, apenas sete como o nome de Happy Mondays. Há pouco, por exemplo, o sexteto trocou de gravadora depois de um quebra-quebra”.

Em abril de 2017, André Barcisnki escreveu um artigo divertido, com o título “Ozzy, Shaun Ryder e Keith Moon: quando gravadoras dão fortunas nas mãos de psicopatas” (leia na íntegra aqui). Na parte referente a Ryder, o jornalista escreve que “a gravadora Factory concordou em investir uma pequena fortuna pra gravar ‘Yes, Please!’, quarto álbum de estúdio dos Mondays. Na época, os irmãos Shaun e Paul Ryder, líderes do grupo, passavam por tratamentos de metadona pra se livrarem do vício em heroína, e sugeriram à gravadora fazer o disco em Barbados, onde pudessem ficar longe da droga. A tática deu certo: os Ryder realmente pararam de usar heroína. Em compensação, ficaram viciados em crack“.

E lembra da passagem deles pelo Rio: “A banda encontrou-se no Rio com Ronnie Biggs, o famoso assaltante do Trem Pagador, e praticamente esgotou o estoque de cocaína da Cidade Maravilhosa. Lendas (nunca negadas pela banda) dizem que, no dia do embarque de volta à Inglaterra, havia sobrado tanto pó que eles o usaram de talco e passaram o voo cafungando os próprios sovacos”.

A programação inicial contava que o Happy Mondays deveria se apresentar no dia 25 de janeiro, a sexta-feira seguinte à entrada da banda na escalação do festival. Era o dia com George Michael, Deee-Lite, Elba Ramalho e Ed Motta. Mas aconteceu o inusitado: os instrumentos do grupo sumiram assim que chegaram ao Brasil.

O Jornal do Brasil de 26 de janeiro informa o ocorrido: “Parte do equipamento do Happy Mondays se extraviou na viagem, mas tudo já foi localizado e está confirmada a apresentação do grupo amanhã (hoje), depois do A-Ha”. informou o diretor artístico do festival Dody Sirena. (…) ‘É normal que aconteçam problemas desta ordem, ainda mais em um evento desta grandeza’, minimizou. ‘Ainda bem que este transtorno aconteceu com o Happy Mondays e não com uma atração de maior peso'”.

O que aconteceu não teve nada a ver com mil tabletes anunciados de ecstasy. O equipamento do grupo ficou retido no aeroporto de Londres. A culpa era da Guerra do Golfo, que aumentou a burocracia e a vigilância nos aeroportos, na entrada e na saída.

Daí que o Happy Mondays passou pro dia seguinte, fechando a noite mais pop e suave, que tinha Paulo Ricardo, A-Ha (como um grande nome à época, apesar da já decadência), Debbie Gibson, Information Society (um dos grandes sucessos nas rádios brasileiras desde 1988), Capital Inicial e Nenhum de Nós. Mas teve que tocar sem passagem de som: “sem a passagem de som, teremos dificuldades em usar os sequenciadores digitais de forma realmente sincronizada com os outros instrumentos; por isso, tocaremos as músicas de forma mais simples”, disse Shaun na Folha de São Paulo de 26 de janeiro, dia da apresentação.

Mas isso era um detalhe da matéria. Mais uma vez, o foco eram as drogas: “Shaun Ryder disse considerar normal o consumo de drogas leves – maconha e haxixe -, pelo menos pro grupo. ‘Costumamos fazer nossos shows sob efeito de drogas. Isso não tem nenhuma importância. O importante é o resultado. Vamos nos acabar no palco’. Shaun Ryder acrescentou que não trouxe os mil tabletes de ecstasy que disse que traria, por causa da publicidade provocada pelo artigo da Folha. ‘A gravadora mandou um fax pra nós, avisando que seria perigoso. Não estou afim de experimentar as prisões brasileiras’, disse”.

No dia do show, como em boa parte do festival, caiu aquela senhora chuva de verão, encharcando a plateia, que nem se importou, pelo menos durante as apresentações do Information Society e do A-Ha. Segundo a organização, foi o grupo norueguês que teve o maior público do dia, beirando as cento e vinte mil pessoas, sendo que o esperado era setenta mil por noite. Acontece que quando o Happy Mondays subiu ao palco, depois do Paulo Ricardo, já no meio da madrugada de sábado pra domingo (às três da matina), o público era bem reduzido, não chegando a trinta mil pessoas.

Os ingleses tiveram inclusive o bis abortado pela organização. Quando saiu do palco, deixou um sintetizador ecoando sons eletrônicos enquanto respirava pra volta triunfal, mas um funcionário da produção foi lá e desligou o equipamento, impedindo o bis. De qualquer forma, o show foi um sucesso. A Folha, em texto de Neufville, chamou a apresentação de “extasiante”, mesmo em meio “a um ambiente hostil”. “O público foi logo jogando objetos diversos sobre o palco e parecia pouco disposto a curtir o rock da única ‘guitar band‘ do festival. O Happy Mondays começou de maneira esquisita. Parecia desencontrado no palco. Shaun Ryder demonstrou que é o verdadeiro anti-herói, cantando cabisbaixo. Sua voz rouca sumia por trás dos sons dos instrumentos. De vez em quando, soltava uns palavrões, enquanto o dançarino Bez articulava uma dança da chuva e tocava maracas, sendo alvo predileto dos projéteis lançados pela plateia. Pra dificultar ainda mais sua tarefa, o grupo tocou músicas desconhecidas do público – seu novo disco, ‘Pills ‘n’ Thrills And Bellyaches’, que forneceu a quase totalidade do repertório, só será lançado mês que vem no Brasil”.

A resenha continua: “As músicas tocadas no começo, como ‘Donovan’ e ‘Kinky Afro’, não convenceram a plateia. O grupo optou por uma iluminação de palco que o deixava na semipenumbra, ao contrário das outras bandas. Um momento de magia aconteceu quando tocaram ‘Step On’. Mais conhecida graças ao clipe exibido com frequência na MTV, essa música conquistou o público, que caiu na dança. No mesmo instante, uma chuva forte começou a cair e a palteia, que parou de repente de arremessar objetos sobre o grupo, entrou em transe. O gramado do Maracanã estava transformado numa autêntica ‘rave'”.

O Jornal do Brasil fez uma avaliação de todos os shows do festival, com a votação de dez críticos de música – que deveriam dar estrelas a cada um dos shows (de nenhuma estrela, que significava “ruim”, a quatro estrelas, que significava “excelente”): André Forrastieri (Bizz), Antônio Carlos Miguel (Bizz), Arthur Dapieve (JB), Jimi Joe (Estadão), Kiko Ferreira (Hoje Em Dia), Luis Antônio Girón (Folha de São Paulo), Luís Carlos Mansur (Folha de São Paulo), Marcelo Ambrósio (Jornal de Brasília), Mauro Dias (Agência Estado) e Tárik de Souza (JB). Desses, só Dapieve (ruim), Kiko Ferreira (ruim), Girón (ótimo), Mansur (razoável) e Ambrósio (ruim) opinaram sobre o Happy Mondays. Pra esses críticos, os melhores do festival foram George Michael, Prince, Alceu Valença, Santana e Faith No More.

O Happy Mondays não veio mesmo ao Brasil pra agradar. Não fazia questão disso. Mesmo assim, marcou sua presença num festival caótico, tão caótico quanto a própria banda.

Luís Antônio Girón, da Folha de São Paulo, fez um artigo descendo o pau na organização do evento (algo raríssimo na blogueiragem chapa-branca de hoje), no jornal de 29 de janeiro, dois dias depois do fim do festival. “O Rock In Rio foi a venda de desconforto por sonho. O público comprou um sonho, mas recebeu nove noites de violência, mau-cheiro e sobressaltos. O evento deixou números – três mortos, cerca de setenta mil pessoas por noite em nove espetáculos, um estupro – e a constatação de que é impossível, neste momento, abrigar no Brasil um megaevento de qualidade”.

Mas entre tantos pontos negativos, ele destaca alguns positivos, o Happy Mondays entre eles. “Em termos musicais, praticamente nada aconteceu além da repetição do que se toca nas rádios. O festival apresentou um prolongamento da indústria do disco, com todos os seus vícios característicos. Das atrações que se apresentaram, só quatro fizeram jus aos sonhos que o empresário Roberto Medina vendeu: a banda inglesa de heavy metal Judas Priest, a banda inglesa Happy Mondays, a banda norte-americana Faith No More e o cantor e compositor norte-americano Prince. Eles anunciaram novas sensibilidades”.

Apesar do viés um tanto conservador da cutucada (ele escreve, ao final, que o “Rock In Rio 2 anunciou uma realidade: nesse país, a música já não é mais antídoto pra tristeza ou epifania do desejo. A catarse deu lugar à quase-catástrofe de uma sociedade (especialmente a juventude) destituída de balizas éticas e estéticas, sem razão pra se autodeterminar”), ela definia bem o improviso e falta de estrutura de um evento que teve no Happy Mondays, uma banda chamada de última hora, que tocou o terror e o tanto-faz sem preocupações diplomáticas, um símbolo perfeito.

A entrevista que Camilo Rocha e Neufville fizeram com ele (junto com icônico José Roberto Mahr), foi pra Bizz na edição de maio de 1991, número 70, com o Soup Dragons na capa. A chamada era: “Happy Mondays: a demência recompensa”. Nas internas, anunciava: “Bandalheira é com eles. Num clima de antientrevista, Shaun Ryder explica que veio pra confundir”.

De fato, eles conseguiram. Mas não porque foi proposital, é que com o Happy Mondays aquelas atitudes erráticas e juvenis eram sinceras. Era assim que eles se divertiam. Não era um trabalho. A banda não era uma profissão.

Quando passou a ser, era tarde demais. Depois que o Happy Mondays caiu no ostracismo e duas décadas depois ensaiou um retorno, lidar com o dinheiro e com um empresário ganancioso fez a banda perder toda a graça. Em 2012, a banda estava programada de voltar ao Brasil. A vinda foi anunciada com empolgação e os ingressos no Circo Voador venderam com rapidez.

Mas logo a banda meteu os pés pelas mãos, pedindo mais dinheiro do que o acordado previamente (leia aqui). Shaun quando jovem, segundo Barcinski, era um “psicopata”. Vinte anos depois, virou só a lembrança de tempos doidos e turbulentos. Um desbunde que não tem mais volta.

“Kinky Afro” no Rock In Rio 2:

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Comentários

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5 comentários

  1. Essa edição do Rock In Rio foi o melhor line up de todos. Hoje os Medinas só se preocupam com parquinho ao invés da música.

    PS: Fui um dos bundas moles que foi embora após o show do A-HA e não viu o Happy Mondays. Mas, só tinha 17 anos, deem um desconto.

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