BRIAN DENEKE: MORTO POR SER PUNK

Em 12 de dezembro de 1997, um atleta estudantil de 17 anos, Dustin Camp, deliberadamente passou com seu Cadillac por cima de Brian Theodoro Deneke, de 19 anos, que tinha cabelos espetados, piercings, roupa preta com tachinhas, tatuagens e se declarava anarquista e zapatista. Ele morreu no local.

O local do crime foi a cidade de Amrillo, no Texas, conhecida por ser citada na famosa música “Route 66”. É uma típica cidade do interior, com duzentos mil habitantes e todos os preconceitos possíveis.

O assassinato chocou a cidade e fez um certo barulho no país. Ainda mais por conta do resultado final do julgamento.

A história é contada no ótimo filme “Bomb City”, do diretor e roteirista estreante em longas Jameson Brooks, lançado em 2017. Com alguns nomes omitidos e trocados (Dustin vira Cody Cates), o diretor narra com sutileza e sensibilidade, atuando nas indas e vindas no tempo, a história dessa trágica realidade não só estadunidense: a intolerância ao diferente e a justiça seletiva.

No bom artigo escrito pra Vice, em 12 de dezembro de 2017, Daisy Alioto explica que “o assassinato chocou Amarillo e a comunidade punk“. Mas foi mais do que isso. O filme “parece especialmente oportuno, dados os atuais níveis de divisão política e social na América. As diferenças entre Deneke e Camp – homens brancos, de classe média e jovens – parecem pequenas em comparação, resumindo-se a escolhas na música e no vestuário e as distintas culturas que cada uma habitava. Mas o curso de colisão revela uma verdade mais doentia sobre a nossa sociedade”.

E aqui temos a triste sutileza dessa história: os dois eram brancos e de uma classe social mais ou menos equivalente. Dustin vinha de uma família influente de Amarillo, com posses e poder, tinha pais dedicados, amigos, boa educação, namoricos, era um adolescente perfeitamente enquadrado no conceito de “adolescente”. Deneke, por sua vez, não era muito diferente: seus pais eram compreensivos e amorosos, ele tinha amigos, uma namorada, um irmão atencioso e liberdade pra praticar suas escolhas de vida. Foram essas escolhas, no entanto, que passaram a diferenciar Dustin de Deneke. Um era o “filho perfeito”, o típico “herói cristão estadunidense”. O outro era um questionador do conservadorismo local, gostando de uma música barulhenta e explosiva, e com “amigos baderneiros”, uma “ameaça à sociedade”.

Normalmente, as minorias que a sociedade isola nas periferias das oportunidades históricas, como negros, indígenas, pobres, LGBT, mulheres e pessoas com características físicas fora do padrão definido pela sociedade de consumo (obesidade, nanismo, albinos etc.) oferecem casos de preconceito mais identificáveis, simplesmente porque a sociedade se fundou nesses preconceitos e agressões (racismo, machismo, homofobia e afins). Mas quando dois jovens equivalentes na estrutura hierárquica da sociedade doente se afastam, se odeiam e se distanciam somente pelas roupas que vestem, pela música que ouvem e pelo modo como se comportam, escancara-se que o problema está em simplesmente aceitar “o diferente”, entendendo como “diferente” qualquer coisa que incomode o status quo. A intolerância aparece na sala de jantar fedendo, raivosa e horrenda pra assustar quem vive na bolha da ignorância.

Alioto é bem feliz ao notar que o título do filme, “Bomb City”, se refere à proximidade de Amarillo com a fábrica de bombas Pantex – segundo um dos personagens, a certa altura do filme, os habitantes da cidade estão andando por cima de um campo minado. Mas também refere-se “à bomba-relógio da divisão cultural que a cidade enfrentava no final dos anos 1990 (…) As cenas de música punk, metal e industrial da região foram condensadas em um grupo abrangente de excêntricos, que se viam e eram vistos, por sua vez, como claramente diferentes do resto da cidade conservadora”.

Os dois grupos, os punks e os atletas bem-nascidos, viviam em rusgas, faíscas que logo poderiam se inflamar. Naquele dia 12 de dezembro, foi exatamente o que aconteceu. Um dos atletas foi até a república onde os punks moravam e realizavam atividades culturais pra se sustentar e depredou o local. O único punk que estava no momento ficou puto, pegou o carro e foi até a praça central da cidade, onde normalmente o grupo de atletas se reunia. Houve uma primeira briga. O garoto voltou à república e quando os amigos retornaram, uniu o grupo e se dirigiram à praça pra vingança. O quebra-pau rolou solto.

Um artigo do Dallas Observer, lincado no texto da Vice, conta em detalhes como foi o atropelamento, descrito por Elise Thompson, uma testemunha ocular, que estava dentro do carro, desesperada (essa cena no filme tem uma crueza de revirar o estômago).

“Ela está sentada no banco de trás do enorme Cadillac do amigo (Dustin), e ela está virando e revirando os olhos por todas as janelas do carro, presenciando o caos lá fora. O carro se move. Ela não consegue formar palavras, não consegue nem respirar. Imagens nebulosas de bastões, cassetetes e correntes cruzavam os contornos sombrios de figuras humanas que se perseguiam, agarrando-se na calçada. Correntes batem contra o vidro e o metal. O carro vira, pula um meio-fio. Ela se segura contra os movimentos. Ela ouve as palavras do motorista, flutuando acima do caos, divorciadas de todo o contexto: ‘eu sou um ninja no meu Caddy’. Ela se vira pra frente, endireita-se no meio do banco de trás. Diretamente na frente do carro, ela vê um homem com o braço levantado, de costas pra gradil frontal do carro. Ele está vestido com roupas punk. Ele está segurando um bastão preto. Instantaneamente ele se vira. Ele está olhando diretamente pra ela. O olhar, ela diz, é de ‘terror total’. O carro não para. O corpo do homem parece rolar no capô, então é sugado pra baixo. Ela sente uma pancada, depois outra. Ela está esperando, esperando desesperadamente, que seja o meio-fio, não o corpo. Ela se vira de novo, olhando pela janela de trás, e vê uma figura amarrotada na calçada, com os membros abertos, ‘sangue por toda parte’. Uma garota está correndo em direção ao corpo. Ela ouve mais palavras do motorista: ‘aposto que ele gostou disso’. O carro não para”.

A descrição de secar a garganta foi bem parecida com o que ela prestou no julgamento de Dustin Camp, contra o amigo assassino. É aí que surge outro vilão da história. Dustin, na visão da filósofa alemã Hannah Arendt, é vítima ou ferramenta pra “banalidade do mal” que se apresenta na sociedade. Ele foi educado pra não aceitar diferenças e pra reagir com violência quando sua normalidade é ameaçada. Por outro lado, o seu advogado, Warren L. Clark (que no filme virou Cameron Wilson), é o porta-voz desse mal, dessa sociedade doente. Ele consegue convencer os jurados, a despeito do forte depoimento de Thompson, de todas as provas recolhidas e da confissão de Dustin de que ele atropelou Deneke, que na verdade era Deneke o vilão. Deneke merecia morrer, porque em sua jaqueta tinha a inscrição “destrua tudo”, porque ele tinha “histórico violento” (o que não era realidade, segundo a própria polícia), porque ele era “uma ameaça” aos jovens… porque ele era diferente.

Foi assim que o júri entendeu. Dustin foi sentenciado a dez anos por homicídio culposo e não doloso, mais uma fiança de dez mil dólares. Segundo essa lógica, ele não tinha intenção de matar, estava só defendendo os amigos que brigavam com aqueles punks. Só que esses dez anos podiam ser cumpridos em liberdade assistida. Dustin saiu do tribunal pela porta da frente, olhando pros pais de quem ele assassinou.

O diretor Brooks diz que o “destrua tudo” de Deneke era uma alusão à sua banda preferida, a Filth, “destrua todos os preconceitos sobre todo mundo”. Uma aula de punk rock pro júri à época poderia ser bem-vinda… “Destroy Everything” é como o disco compartilhado com o Blatz, “The Shit Split”, de 1990, pela Lookout! Records, foi renomeado quando do relançamento em 2009. O original tem sete faixas (veja abaixo) e o relançamento é incrementado com várias faixas-bônus.

Dustin até foi preso, mas em 2001, quando tinha 20 anos, por violar a liberdade assistida ao consumir bebida como menor de idade (a maioridade é atingida aos 21). Foi sentenciado a oito anos de prisão, o que é curioso, já que são dois anos a menos que a pena que recebeu por assassinato, com a diferença aqui é que ele realmente ficou cinco anos na cadeia. Saiu em 2006 em liberdade condicional, até que em 2009 sua pena acabou e ele é hoje um homem livre, sem dever absolutamente nada pra Justiça e pra sociedade.

Mas é Deneke que entrou pra história. Depois de sua morte, uma série de shows e homenagens foram feitas a ele. Além do filme, esse documentário-reportagem foi produzido pela ABC, com entrevistas e uma boa ideia do ocorrido:

O filme encerra-se com o famoso discurso sobre a violência de Marilyn Manson, após o chocante massacre de Columbine, em 1999. Tal como qualquer ato de violência nos Esteites, a morte de Deneke se encaixa perfeitamente na fala de Manson:

Manson e Deneke se aproximam nas diferenças e estranhezas que causam na “sociedade média”. Entretanto, essa é a maioria, a que vive confortável dentro dos padrões, a que não aceita tais diferenças por não saber lidar com elas. É dai que surge o “mal” e os atritos e a violência. Deneke morreu justamente por isso: só por ser diferente.

“The Shit Split” (só as músicas do Filth):
1. The List
2. You Are Shit
3. Night Of Rage
4. Filth
5. Violence As A Solution
6. Scarred For Life
7. Banned From The Pubs

Ouça na íntegra a versão com as faixas-bônus:

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