CELEBRIDADES COMO ESTRELAS: O NASCIMENTO DO TERMO

Faz muito sentido se referir a certos tipos de celebridades como “estrelas”. Lá do alto, essas pessoas inspiram o resto de nós. Elas brilham, maiores que a vida, acima de nós e ao nosso redor. Elas sugerem, em sua insistente onipresença, uma certa ordem pro mundo. Ver as estrelas – ou, mais especificamente, acreditar nelas, taxonomicamente – é endossar a noção de que as pessoas diante de nós, em nossas telas, longe de nós e ainda tão próximas, existem em algum plano entre o nosso e o dos deuses.

Mas por que elas são “estrelas”, especificamente? Por que a Calçada da Fama de Hollywood é preenchida por pentagramas de rosa pálido, em vez de alguma outra forma arbitrária? Por que se tem as “estrelas” algo, obviamente e incorretamente, como nós?

A resposta tem a ver com Ovídio. E Shakespeare. E Thomas Edison. E Mary Pickford. Estrelas são estrelas, certamente, porque elas brilham – porque, mesmo quando são banhadas pelos holofotes, parecem ter uma incandescência própria. Mas elas são “estrelas”, muito mais especificamente, porque fazem parte da tendência de longa data da cultura ocidental de associar o humano ao celestial. Elas são “estrelas” porque o público delas as quer – e em algum sentido precisa delas – pra ser “estrelas”.

O amplo uso da palavra “estrela” pra indicar um líder entre nós é datado, segundo estudo de Peter Davis, um historiador da Universidade de Illinois, à Idade Média. Geoffrey Chaucer, filósofo e diplomata inglês, autor de “Os Contos Da Cantuária” (The Canterbury Tales), foi o primeiro usuário que se tem notícia da palavra “celebridade” e um dos primeiros a usar a palavra “famoso”. Ele também sugeriu a convergência lexical entre o humano e o celestial: em seu poema “A Casa Da Fama”, as preocupações do sonhador de Chaucer eram pra que ele se visse “estrelado”. “Ó, deus que fez a natureza”, reflete o sonhador, “devo morrer de outra maneira? Jove me transformará em uma estrela?”.

Chaucer, Dean Swinford aponta em seu livro “Through The Daemon’s Gate”, estava lembrando a noção de metamorfose de Ovídio – a ideia de que os seres humanos poderiam ser transformados, neste caso, no material brilhante das constelações. As palavras de Chaucer também traziam implicações arquitetônicas que provavelmente seriam aparentes pra seu público: “Fixar com estrelas”, observa Swinford, “implica a criação de uma decoração em mosaico do interior de uma catedral”. O edifício era um mimetismo intencional do céu, e uma antecipação involuntária do tipo de firmamento de Hollywood: apresentava as estrelas como uma constelação de luzes brilhantes, sempre acima da gente.

A versão norte-americana de stellification é, em muitos aspectos, uma descendente direta de Chaucer: enfatiza o papel da celebridade como um corpo ao mesmo tempo distante e acessível, reluzente e cintilante e ainda tranquilizadoramente onipresente. As estrelas há muito sugerem um tipo de ordem – e orientação – dentro de vidas humanas caóticas. Elas há muito tempo insinuaram que há algo maior, algo além, algo mais.

Pouco surpreende, então, que – especialmente à medida que o mundo da ciência se tornou mais familiarizado com o funcionamento dos corpos celestes – o mundo do teatro aproveitou seu simbolismo. Molière, segundo contou Peter Davis, fez Chaucer usar a personificada “estrela”: em “Escola De Mulheres”, em 1662, Horace descreve Agnes como “esta jovem estrela do amor, adornada por tantos encantos”. Shakespeare em suas peças e poemas também antecipou Hollywood com perfeição, uma mistura do pessoal e do celestial. “Tornamos culpados por nossos desastres o sol, a lua e as estrelas”, lamenta Edmund em “Rei Lear”, “como se fôssemos vilões por necessidade, tolos por compulsão celestial”. O amor também, na mente de Shakespeare, faz seu maior sentido como uma força celestial, tranquilizadora em sua constância: no “Soneto 116”, o bardo acha que o amor é “… uma marca sempre fixa / que olha pras tempestades e nunca é abalada; / É a estrela de todos os feitiços, / Cujo valor é desconhecido, embora sua altura seja tomada”.

Foi nesse contexto, explica Davis, que a noção da estrela humana passou a se referir, em particular, ao decididamente fundado firmamento do teatro – e à decididamente humana pessoa do ator. De acordo com o Oxford English Dictionary, a primeira referência a uma “estrela” do palco veio em 1751: “Você pode reluzir a mais brilhante Estrela Teatral, e sempre animará uma platéia”. Na mesma época, em 1761, o livro “Historical Theatres Of London & Dublin” observou um ator chamado Garrick: “Aquela Luminária logo depois se tornou uma Estrela da primeira Magnitude”. Garrick apareceria novamente em 1765, em um artigo extremamente efusivo escrito sobre ele na revista The Gentleman And London Magazine: “O boato de que esta estrela brilhante apareceu no leste voou com a rapidez de relâmpagos pela cidade, atraiu todos os magos teatrais pra lá, pra pagar suas devoções ao recém-nascido filho do gênio…”.

Na década de 1820, era comum referir-se aos atores como “estrelas” – pra propósitos de venda tanto quanto qualquer outra coisa. A turnê de teatro se tornou popular durante esse tempo, tanto na Inglaterra quanto nos Esteites. Atores britânicos, em particular, muitas vezes eram promovidos como “estrelas” pra suas turnês nos EUA, como uma forma de garantir que grandes públicos pudessem testemunhar suas performances. Atores como Edmund Kean, George Frederick Cooke, Charles e Fanny Kemble foram vendidos celestialmente pro público estadunidense. Às vezes, os atores foram considerados como tendo passado seu auge na Grã-Bretanha; eles usaram suas turnês no novo continente pra reiniciar suas carreiras em casa. Funcionou: através da dinâmica astuta das relações públicas, nasceu a “estrela” nos EUA.

O termo cunhado como atuação teatral deu lugar à atuação cinematográfica – enquanto os filmes mudos deram lugar aos filmes falados. “O ‘brilho’ observável do estrelato em potencial estava presente desde o início da história do cinema”, observa Jeanine Basinger, em seu livro “The Star Machine”. Mas também se apoderou, como em tantas outras coisas da história de Hollywood, de forma intermitente. Como disse Jan-Christopher Horak, o diretor do Arquivo de Cinema e Televisão da UCLA, os primeiros filmes não citaram os atores que estrelaram neles. Isso foi em parte porque os atores, muitos dos quais haviam sido treinados no teatro, ficaram inicialmente envergonhados por estar colocando suas habilidades duramente conquistadas a serviço desse estranho novo meio.

Foi também, no entanto, por causa da mecânica do próprio meio. No cinema, Anne Helen Petersen sugere, em seu livro “Scandals Of Classic Hollywood: Sex, Deviance, And Drama From The Golden Age Of American Cinema”: a estrela de Hollywood era a tecnologia tanto quanto as pessoas. Como o cinema antigo se desenvolveu no início do século XX, câmeras volumosas e de difícil manejo dificultavam que os cineastas capturassem qualquer coisa além de cenas inteiras de atores. “Como os espectadores não conseguiam ver o rosto do ator de perto”, escreve Petersen, “era difícil desenvolver os sentimentos de admiração ou afeição que associamos às estrelas de cinema”. À medida que as câmeras melhoraram, os close-ups se tornaram mais comuns, enfatizando os rostos e a humanidade dos atores. À medida que o som se tornou parte da experiência do cinema, as vozes também substituíram as personas completas por imagens oscilantes. A “personalidade da imagem” havia chegado. A “estrela”, mais uma vez, nasceu.

Com isso, veio o sistema de estrelato que daria estrutura a Hollywood durante boa parte de sua vida jovem. Mary Pickford, observa Horak, uma das primeiras atrizes do cinema a ser anunciada com seu nome (de palco), logo começou a fazer filmes. Charlie Chaplin, muito antes de Andy Warhol ironizar o termo, se tornou um superstar. A própria estrela, na era dos holofotes e das marquises, logo se tornou uma metonímia – uma maneira conveniente e adequada de descrever as pessoas que pregavam o firmamento novo e em expansão de Hollywood. O termo que tirara a vida na época de Shakespeare e Molière e no romantismo primitivo – uma época em que, em alguns lugares, a arte ficaria obcecada com a dignidade do indivíduo e com o funcionamento ardente da alma humana – voltou à vida no brilho da tela.

Pode ser estranho hoje falar de “estrelas de cinema”. A nossa é uma era definida, afinal, por aquele outro termo chauceriano: a “celebridade”. É uma era de marcas de estilo de vida fundadas por atores e pessoas estrelando a própria realidade. Mas nossas celebridades atuais também sugerem algo semelhante ao que a “estrela” evocou por muito tempo: orientação, transcendência, uma espécie de união entre os mortais e os deuses que eles escolheram pra si mesmos. “Celebridade” vem do francês antigo pra “rito” ou “cerimônia”; sugere que mesmo os mais frívolos dos famosos estão preenchendo um papel que é, à sua maneira, profundo. Estrelas – fusões de pessoa e persona, do humano e da imagem flácida no palco e na tela – há tempos oferecem uma espécie de estrutura dentro do zumbido agitado das vidas humanas. Eles prometeram há muito tempo o mais básico e inspirador das coisas: que podemos ser algo mais do que somos. “Eu ainda sou grande”, Norma Desmond, aquela estrela desbotada, insistiu (personagem interpretada por Gloria Swanson, em “Crepúsculo Dos Deuses”, de 1950), “são as fotos que ficaram pequenas”.

Texto traduzido (sem autorização expressa) do original “Why Are They ‘Stars’?”, escrito por Megan Garber e publicado originalmente no The Atlantic, em 24 de fevereiro de 2017.

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