CINCO MOTIVOS PRA REALMENTE ODIAR O ECAD

O mundo virtual brasileiro se assustou com a petulância do ECAD em cobrar um blogue por embutir vídeos do YouTube em seus posts. Mais de trezentos reais por mês. O povo, como já é de praxe, desceu o sarrafo na entidade, porque… bem, o povo da Internet é assim mesmo, gosta de dar sua opinião sobre qualquer coisa e contra tudo desse mundo cruel que abusa de nós, pobres coitados.

O diacho é que nesse caso, os indies-festivos, a geração mimimi e os jornalistas, músicos e autores têm razão. Talvez não se saiba exatamente o motivo, mas têm toda razão.

Antes, é preciso entender que o ECAD não é uma entidade dispensável. Quer dizer, aqui vou tentar mostrar que esse ECAD é dispensável, mas não se pode dispensar a ideia de uma entidade arrecadadora de direitos autorais.

Como diz o xaropeta do Luiz Nassif, o ECAD está certo quanto à ideia: “qualquer utilização de uma obra artística deve ser autorizada e remunerada. Salvo se a lei expressamente autorizar esse uso, no que se chama de ‘limitações'”, levando em conta que, “nesse particular, a lei brasileira é uma das piores do mundo e não libera quase nada”.

Aí, no caso da cobrança do blogue Caligraffiti ou nos casos de cobranças em casamentos e afins (que rendeu à entidade uma bela reversa da Justiça), ele percebe que o ECAD tá naquela do “joão-sem-braço”, do “vamos ver se cola”.

Não há embasamento legal pra essa cobrança, embora o ECAD diga que há. A confusão se dá porque a lei é dúbia, escrita porcamente, e dá margem a interpretações. O escritório alega que “o direito de execução pública no modo digital se dá através do conceito de transmissão presente no art. 5º inciso II da Lei de Direitos Autorais 9.610/98, que define que transmissão ou emissão é a difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, o que contempla também a internet”.

Contempla a Internet, mas isso não quer dizer toda a Internet (brasileira), porque a Internet não é feita só de execuções de vídeos, filmes e afins com o intuito de gerar receita, há a intenção da informação também e, nesse sentido, não há motivo legal pra cobrança.

Aliás, a mesma lei dá respaldo pra isso: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I – a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza (da LDA – Lei nº 9.610 de 19 de Fevereiro de 1998)”.

Pois é: joão-sem-braço. Além de interpretar a lei a bel prazer, o que o ECAD quer, ainda segundo Nassif, é “forçar a barra pra criar um fato e firmar uma jurisprudência”. “Pela lei atual, o Ecad pode cobrar de rádios online que transmitem ou retransmitem em tempo real. Mas nunca pelo acesso interativo que, pela lei brasileira, muito mal escrita, é um direito de distribuição, e não de execução pública (que é a prerrogativa do ECAD)”, conclui.

A batalha, que explode de tempos em tempos, não é nova. Já existe desde o nascedouro do ECAD. Há muitos textos de autores e artistas que vão contra o escritório de arrecadação (e de má distribuição). Os mais famosos, amplos e importantes são de Tim Rescala (de 2010, em resposta a Nelson Motta, que defendia o ECAD) e o notável discurso de Leoni, na CPI do ECAD, em 16 de agosto de 2011 (vale ler na íntegra).

Baseado nesses dois e nas experiências recentes da entidade, dá pra enumerar cinco motivos pra você realmente odiar o ECAD – e ser contra, com embasamento.

1. O NASCIMENTO E O MONOPÓLIO

Diz Leoni: “outro mito importante de ser analisado é o da Constituição não permitir que o Estado interfira no ECAD por conta do direito da livre associação. Ora, essa é uma associação por demais atípica para se valer desse princípio. Primeiro temos o fato importantíssimo de que o Estado já interveio de forma inequívoca quando criou o sistema ECAD que obrigou todas as sociedades a estarem vinculadas a ele. Que liberdade é essa? E dessa interferência as Sociedades não reclamam”.

O ECAD foi criado pra ser o gestor de uma soma de arrecadação e é respaldado na lei de direito autoral, provendo a uma entidade civil o monopólio de gerenciar algo que deveria estar no ofício do Estado (não de Governos, como bem lembra Tim Rescala: “saiba que o Estado está presente em todas as entidades de gestão colectiva do mundo. TODAS. Só no Brasil é diferente. E isso não tem o menor sentido”).

Rescala diz, sobre: “a diferença entre a administração neste caso, se privada ou estatal, está na possibilidade do cidadão comum ter chance de ter sua voz ouvida. Do Estado um cidadão lesado por se queixar. De uma empresa privada, que não deve satisfações a ninguém, não. Será sempre uma formiga se queixando de um elefante”.

No que Leoni resume: “mais sério ainda é o fato de uma associação gerir um monopólio que cria obrigações para toda a sociedade. É o ECAD que determina critérios e preços para utilização de música em todo o país, com poder de polícia. Como um monopólio criado por lei pode não ser fiscalizado pelo Estado? É um caso único no arcabouço jurídico brasileiro”.

2. A ESTRUTURA VICIADA

O ECAD tem uma estrutura pra lá de bizarra pro direito a voto. Existem as Associações Efetivas e as Associações Administradas. Só as Efetivas têm direito a voto. São nove no total, seis Efetivas e três Administradas, como listadas abaixo:

EFETIVAS
ABRAMUS – Associação Brasileira de Música e Artes
AMAR – Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes
SBACEM – Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música
SICAM – Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais
SOCINPRO – Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais
UBC – União Brasileira de Compositores

ADMINISTRADAS
ABRAC – Associação Brasileira de Autores, Compositores, Intérpretes e Músicos
ASSIM – Associação de Intérpretes e Músicos
SADEMBRA – Sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil

A lógica é exposta em artigos do estatuto da União Brasileira de Compositores, mostrada por Leoni: “Os autores, compositores e editores que solicitarem ingresso na Associação permanecerão na categoria de Associados Administrados durante no mínimo doze meses, contados a partir da aceitação de sua proposta de filiação, pela Diretoria. Decorrido esse prazo a Diretoria poderá aprovar seu ingresso nas categorias de Associado Efetivo ou de Associado Editor, conforme o caso, dependendo da rentabilidade das obras das quais sejam titulares.

“Art. 6º – Caberá nas Assembleias Gerais 20 (vinte) votos a cada associado da categoria de Associado Fundador e no mínimo 1 (um) voto a cada associado das categorias de Associado Efetivo e Associado Editor, podendo vir a ser atribuído, a cada associado, até 20 votos nos termos do disposto no Regimento Interno da Sociedade.

“§ 3º – As demais categorias de associados – administrados citados acima – não terão direito a voto”.

Leoni mata a charada: “a conclusão é de que só quem arrecada muito tem direito a voto. Ora, quem arrecada muito não quer reclamar. Quem arrecada pouco não tem o direito de fazê-lo”.

E Rescala (a Nelson Motta) ainda dá um dado novo: “você sabia que das 10 sociedades que integram o ECAD só 6 têm direito a voto? Tem curiosidade de saber por quê? Sabia que elas têm que pagar um tributo interno? Se não arrecadarem 50 salários mínimos por mês passam a dever ao ECAD (…)”.

Isso tudo leva à conclusão de que, na real, o ECAD não representa os músicos ou os autores. Representa uma parcela mais poderosa do jogo, a indústria musical, obviamente. Mas isso é algo que vai ser aprofundado mais pra frente.

3. DIVISÃO EQUIVOCADA DA ARRECADAÇÃO

Fala, Leoni: “há uma diferença muito grande entre autores e detentores de Direito Autoral. Na música, além dos compositores, diversos outros atores têm sua cota nos direitos de execução pública. Temos primeiro o próprio ECAD e as Sociedades que ficam com 25% do bruto. Depois, dos 75% restantes, 12,5 % ficam para as Editoras e 25% são divididos para a gravação – produtores musicais (gravadoras), intérpretes e músicos. No final das contas, para os compositores sobram 37,5% – e ainda temos impostos, é claro!”.

Rescala (falando a Nelson Motta) reforça: “você diz que o Estado morde 25% dos direitos autorais sem tocar uma nota. Você está pregando o quê? Que não se recolha o Imposto de Renda? Por qual razão? E os administradores desses mesmos direitos? Estes sim mordem 25% do faturamente bruto, também sem tocar nenhuma nota: 8% para as sociedades e 17% para o ECAD, ou seja, o autor é garfado duas vezes. Para quê?”.

Fica óbvio que os autores ficaram vendidos aqui e que quem leva o maior montante são as editoras e gravadoras e músicos/intérpretes. Até porque pra mudar essa estrutura de distribuição é preciso ter direito a voto. Como a estrutura se perpetua há anos e anos, fica claro que quem tá lá no topo não quer mudar e quem tem o que reclamar não tem por onde.

Pra saber pra onde e quem vão esses 37,5% restantes (que ainda precisam ser tributados), leia e tente entender a matemática oficial do ECAD. Parabéns se você tiver paciência.

4. TECNOLOGIA ULTRAPASSADA

O ECAD se gaba de possuir “uma estrutura preparada para distribuir os direitos autorais mensalmente e trimestralmente, enquanto países estrangeiros fazem suas distribuições adotando maiores períodos de intervalo”.

Tudo por que “investe continuamente em tecnologia e qualificação das equipes para melhorar os processos de distribuição dos direitos autorais, traduzidos no avanço da qualidade da informação, caracterizado pelos procedimentos eletrônicos de captação e identificação das execuções musicais e constante atualização do banco de dados do ECAD, que atualmente conta com cerca de 2,4 milhões de obras musicais, 862 mil fonogramas e 342 mil titulares de música cadastrados, sendo considerado um dos maiores da América Latina”.

Uau! Você deve imaginar que o Google é obsoleto perto dessa estrutura. Mas Leoni vasculhou esse acervo, baseado no ECADNet, e observou algumas aberrações incríveis: “o Ecadnet, site com todas as obras registradas pelas sociedades no Escritório, que deveria ser uma solução tecnológica importante em relação ao cadastro, é tão falho e cheio de erros que nos assusta. Fiz o levantamento de algumas obras famosas minhas da época do Kid Abelha, como ‘Lágrimas e Chuva’, ‘Educação Sentimental’, ‘Como Eu Quero’ e ‘Fixação’, e em nenhum dos casos a banda era citada como intérprete. O mesmo para canções da Legião Urbana, em músicas como ‘Ainda é Cedo’, ‘Há Tempos’, ‘Meninos e Meninas’, ‘Índios’, ‘Quase Sem Querer’ e ‘Tempo Perdido’. Pior ainda é ‘Será’, que nem consta, entre os autores das diversas obras homônimas, o nome do Renato Manfredini, mais conhecido como Renato Russo. (…)”.

A lei que o suporta também é defasada, por não acompanhar as criações dos novos tempos – esses sim ágeis. O YouTube, embora pague ao ECAD, não está especificado na lei (não existia em 1998, bem como o Twitter, os blogues, o Facebook ou qualquer outra plataforma que venha a surgir). O mundo é dinâmico demais pras leis e, muito mais, pro próprio ECAD, que ainda não entrou no século XXI.

5. FALTA DE TRANSPARÊNCIA

Leoni não poupa a gestão controversa do escritório de arrecadação (e má distribuição): “tanto critérios de cobrança e distribuição quanto outras informações relevantes são negados ou extremamente dificultados aos compositores. Há um número absurdo de ações na justiça envolvendo o ECAD e as sociedades, tendo chegado já a sete mil. Este é um sinal, incontroverso, de que algo vai mal com a gestão”.

Rescala lembra que “o que o ECAD teme é a fiscalização, ao contrário de todas as outras entidades de gestão colectiva, que convivem com ela muito bem. Se o ECAD age corretamente, por quê então tem tanto medo de ser fiscalizado?” – uma pergunta que não quer calar, e completa: “você sabe em quantas ações na justiça o ECAD é personagem? O número já chegou a sete mil. Se o ECAD tem o monopólio para arrecadar, distribuir, aplicar multas e fixar o peço, não te parece que este é um número que precisa ser investigado? Eu creio que sim”.

Tim Rescala ainda recorda um caso curioso (que chegou até a ser publicado em alguns jornais): “um compositor como Remo Usai, por exemplo, o Enio Morricone brasileiro, autor da música de mais de 150 filmes, com vários sendo reexibidos regularmente na TV, passou a receber, por obra e graça do ECAD, pagamentos de R$ 0,02. Como é possível uma coisa dessas? O que um artista como ele, já com 82 anos, pode achar de um sistema autoral capaz de produzir uma aberração dessas?”.

É que, como lembra Leoni em seu discurso na CPI, “diversas decisões da Assembléia do ECAD demonstram o favorecimento das grandes corporações. Uma delas é a de reduzir para 1/12 os direitos de quem faz música para imagem. Esses autores não precisam de editoras nem de gravadoras, já que fazem, em sua maioria, um trabalho direto para as emissoras de TV. Mas um terço da arrecadação dos direitos autorais vem daí. Com a diminuição do montante devido a esses compositores sobrou mais para os outros detentores de Direitos. E criou-se um tipo de compositor de segunda classe”.

A conclusão que Nassif, Rescala e Leoni chegam é quase a mesma: o ECAD tem que acabar, mas o Estado deve gerir uma entidade de arrecadação e distribuição de direitos autorais mais eficiente e justa. Não pode haver lacuna nessa função.

Nassif: “que o ECAD se lixe pros interesses da coletividade, é compreensível. Mas que o MINC se preste a esse papel, é lamentável. Se não muda o MINC, que ao menos tirasse de lá a tarefa de cuidar dos direitos autorais (que vá pro MEC, de onde nunca deveria ter saído)”.

Rescala: “o que um compositor atento e consciente tem que fazer hoje é apoiar o projecto de reforma proposto pelo MinC, que foi feito de forma séria, ouvindo todas as partes envolvidas e dando voz, inclusive, ao ECAD e a todas as suas sociedades”.

Leoni faz parte do GAP – Grupo de Ação Parlamentar –, “que já conseguiu importantes vitórias para a classe. Entre nossos colaboradores mais conhecidos estão Ivan Lins, Francis Hime, Fernanda Abreu, Frejat, Tim Rescala, Dudu Falcão, Eduardo Araújo, Sérgio Ricardo, Leo Jaime e diversos nomes que representam toda a cadeia produtiva da música. Fomos responsáveis pela carta da Terceira Via dos direitos autorais assinada por artistas e criadores de todas as gerações como Tulipa Ruiz, Jair Rodrigues, Zélia Duncan, Ana Carolina, Jorge Vercilo, Evandro Mesquita e centenas de outros. A carta e as assinaturas estão no site: http://brasilmusica.com.br/site/destaque/terceira-via/ (N.E.: site fora do ar, mas você pode acessar a íntegra clicando aqui). Nela deixamos claro que não somos contra o ECAD, nem contra o direito autoral. E achamos que a centralização das cobranças da gestão coletiva é o mais aconselhável”.

Ele se refere ao Instituto Brasileiro de Direitos Autorais, que deveria, além de fiscalizar, estabelecer “critérios de cobrança e arrecadação” e “o direito de estabelecer preço para as obras” como exclusividade do autor.

Se você quer ter algo contra o ECAD, eis cinco argumentos fortíssimos.

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8 comentários

  1. AS pessoas precisam ficar atentas ao fato da tentativa de extorção, não ha outro termo a ser usado aqui, do ECAD quando diz que até em festas infantis é preciso pagar essa taxa. Pois foram essas as palavras da atendente do ECAD em Porto Alegre quando um amigo ligou pedindo mais esclarecimentos sobre o funcionamento do órgão. Devemos “ficar ligados” pois ja existe muita jurisprudência confirmado a ILEGALIDADE dessa cobrança em eventos privados como casamentos (inclusive com a condenação do ECAD a pagamento de multa elevada), aniversários, etc. Era realmente só o que faltava…vou dar um festa privada na minha residencia e ser roubado dessa forma? NÃO MESMO !!!! Meu filho faz um ano, faço uma festa, coloco musicas da xuxa por exemplo…..vou pagar ECAD? BEM CAPAZ….Tenho certeza de que a xuxa e a maioria dos musicos e compositores tem um mínimo de bom senso, ética e escrúpulos para acharem isso um abuso CRIMINOSO.

  2. […] em “abril” que se ouviu uma das primeiras polêmicas do ano. O ECAD ficou no centro das atenções e valeu aqui um análise na nossa consolidada coluna Pense Ou Da…. No plano prático, depois de meses de pressão de músicos e entidades ligadas à produção […]

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