ENTREVISTA: I BURIED PAUL – NO MEIO DO CAOS

O I Buried Paul é Pedro Oliveira, paulista residente em Berlim, na Alemanha, que assumiu a alcunha e lançou até aqui dois ótimos discos: “In Schwarzen Tönen, In Lauten Farben”, de 2012; e o mais recente, de julho de 2013, “Eutropia”.

Por chat, falei longamente com Pedro sobre esse disco novo, lançado via Sinewave Label (baixe de graça aqui). Foram dois momentos de conversa. O primeiro, antes do lançamento do single “Distopia II”, que apareceu com exclusividade aqui no Floga-se. O segundo, logo após o lançamento propriamente dito do disco.

É difícil entender algo definido como “experimental, drone, dark ambient” ter um single, no conceito de trabalho que se dá ao lançamento isolado de uma canção pra impulsionar o álbum. Mas Pedro tem plena consciência de que seu disco é até mais acessível a ponto de permitir tal manobra: “o retorno tem sido bem positivo, principalmente por conta da mistura com field recordings. Talvez seja mais ‘acessível’ do que o anterior, e eu acho isso legal porque não foi de propósito da minha parte”.

Nessa entrevista, é possível entender como funciona a metodologia de criação de Pedro, um perfeccionista assumido, mas um perfeccionista não “de que tudo tem que encaixar precisamente no seu devido lugar e sim um perfeccionismo pessoal”.

Uma boa diferenciação pra mostrar porque ele foi buscar no caos do dia a dia de grandes cidades europeias a inspiração pra “Eutropia”: “arquitetura e paisagem urbana acabaram meio que virando o tema central do disco. Talvez influenciado pela minha mudança pra Berlim. Eu sou paulistano e bicho de cidade grande, estava sentindo falta desse caos”, diz, fazendo das gravações de campo um dos grandes instrumentos pra transformar o caos, a desordem, em ordenação musical.

No meio desse caos, da entropia, há música.

Floga-se: Por que escolher “Distopia II” como primeiro single e o qual a diferença desse disco pro disco anterior?

Pedro Oliveira: Pra responder o porquê do single eu preciso responder a outra antes, porque estão de certa maneira conectadas. Acho que a maior diferença é que o processo de corta-e-cola que eu tinha usado no disco anterior ficou bem mais intenso nesse novo. Eu gravei muitas sessões de improviso e depois selecionei trechos que achei interessantes. Muitos desses trechos eram já suficientemente interessantes sem edição, e outros eu “re-escrevi” alguns detalhes por cima. Mas eu quis deixar sempre evidente que as composições são espontâneas. Outra diferença crucial é que o disco novo não tem nada de programação e de processamento em computador. É 100% guitarra, sintetizador e field recordings. Daí, essa música acabou sendo escolhida como single por dois motivos: o primeiro é porque ela é 99% sem edição, e segundo porque eu acho que o resultado final dela foi, de certa maneira, indiretamente influenciado pelos acontecimentos recentes no Brasil e em Istanbul… Embora nada no disco ou no I Buried Paul tenha cunho político, eu acho que acabou influenciado bastante… Essa composição é talvez a coisa mais tensa que eu já toquei. E o fato de ser uma composição espontânea talvez reflita o estado de espírito do momento.

Ouça “Distopia II”:

F-se: É mais orgânico no sentido de não haver interferências (computador e softwares) entre você (o artista) e o produto final e, assim, capta o estado de espírito do momento, é isso? Sendo assim, a mesma criação poderia se formar diferente se você estivesse feito, digamos, no nascimento de uma paixão, ou na perda de um ente querido?

PO: Eu diria que sim. Porque o meu método de “extração de ideias” pra esse disco foi completamente diferente e muito mais focado no que saiu espontaneamente. Meu trabalho depois foi de selecionar trechos e no máximo adicionar uma camada ou cortar um pedaço ou outro. Eu queria realmente que cada composição tivesse um “estado de espírito” espontâneo e não fabricado posteriormente, ou até mesmo “aleatório” (no caso de software de composição generativa, como eu usava antes), como no “Schwarzen Tönen” por exemplo, minha gama de possibilidades era muito menor, porque mesmo os rifes de guitarra eram pré-gravados. No caso do disco novo eu apertei “rec” sem fazer a menor ideia do que ia sair. Sem nenhuma ideia pronta. E isso todas as vezes.

F-se: Por que essa escolha agora? Se arrepende do método anterior?

PO: Acho que essa escolha se deve ao fato de o IBP não ser algo fechado ou preso a uma certa fórmula. Vai muito do que eu quero tentar de novo e de um processo de tentar entender como funciona minha cabeça quando eu resolvo “criar música”. E jamais me arrependo, acho que faz parte do processo, com certeza. E mesmo assim eu não descarto a ideia de voltar a usar os patches antigos ou mesmo desenvolver novos. Tudo depende de que tipo de resultado estético eu quero atingir naquele momento. O “fazer um disco” é só uma vontade de condensar ideias e soltar pro mundo… Acho.

F-se: “O ‘fazer um disco’ é só uma vontade de condensar ideias e soltar pro mundo”: mesmo assim você produz em menor quantidade do que os pares que transitam pelo experimentalismo? É falta de tempo, perfeccionismo – embora, pelo discurso, não me pareça – ou você descarta muitas ideias? Você só grava quando não há mais jeito, quando aquela ideia precisa ser exposta ou te sufoca?

PO: Na verdade, é sim perfeccionismo. Mas não diria que é um perfeccionismo de que tudo tem que encaixar precisamente no seu devido lugar e sim um perfeccionismo pessoal. Eu sou meu pior crítico e eu jamais lanço algo se não estiver 100% satisfeito. Por isso, produzo muito pouco. Na verdade, eu gravo muito mais coisa do que efetivamente lanço. Eu descarto muita coisa mesmo, e não solto nada pro mundo que não me agradaria como ouvinte. Então, no caso, eu fiquei muito tempo acertando pra onde isso poderia ir em termos de estética e decisões sonoras, timbres, relação entre samples e loops, decisões de performance etc.

F-se: Isso te corroi? Digo, essa busca pela perfeição auto-imposta?

PO: Bom, eu tento conviver com isso há 28 anos (risos).

F-se: Então, não é só na sua música que você é assim.

PO: De jeito nenhum… É com tudo. É uma merda (ri), mas com a música é talvez a pior manifestação de todas, porque é quando eu acho que fico mais “exposto”.

F-se: Já se arrependeu de ter jogado fora algum material ou nem pensa mais neles quando manda pro lixo? Por outro lado, esse perfeccionismo não tem a ver também com o momento da criação? Os sentimentos não são decisivos nessa escolha do que você acha que presta ou não?

PO: Eu não mando nada pro lixo. Eu tenho uma pasta aqui cheia de coisas que talvez um dia possam evoluir pra coisas legais. E, sim, concordo que seja algo totalmente reflexo do momento. Porque muitas vezes eu volto pra ouvir essas ideias e acho coisas legais perdidas ali no meio. Mas, sei lá, acho que cada uma dessas coisas tem seu momento, refletem uma situação de uma maneira muito subjetiva, que talvez só faça sentido pra mim. E é curioso, porque eu nunca racionalizo sobre essas coisas.

F-se: E não racionalizar ajuda, ou “conversar” sobre elas dá outro sentido a elas? Conversar como estamos fazendo aqui, eu quero dizer…

PO: Não sei, sinceramente. Acho que me faz refletir sobre meu próprio processo, que é algo que eu nunca faço de maneira muito calculada ou racional mesmo… Agora, que tipo de consequências isso pode ter, não sei (ri).

F-se: Você vive sozinho aí?

PO: Não, não… Moro com minha namorada.

F-se: Ah, então, há com quem falar sobre isso… Você mostra pra ela suas criações antes de pensar em jogar pro mundo?

PO: (rindo) Sempre. É legal porque ela é uma pessoa 120% visual, então a opinião dela é em outro tom, é sempre interessante. Mas por ela também ser designer, acho que nunca racionalizamos muito esse processo. Ela escuta enquanto eu gravo, escuta o processo, mas as opiniões são sempre no nível estético mesmo. E obviamente ela acaba gostando das coisas muito mais do que eu, porque eu sou muito chato comigo mesmo.

F-se: Você coloca a mesma carga crítica pro trabalho dos outros?

PO: Não no mesmo nível, de jeito nenhum, senão eu seria insuportável (ri).

F-se: E influências? Você acha que altera bastante suas intenções de criação dependendo do que tá ouvindo no momento?

PO: Acho que sim. mas eu também escuto coisas meio que direcionadas pra uma ideia que quero tentar. Uma coisa meio que informa a outra. Mas eu escuto também coisas que nada têm a ver com o tipo de som que eu faço, senão não há quem aguente,
mas ouvindo as coisas que eu já lancei e o que eu gravo dá pra perceber que existe um “mood” que é constante, que eu acho que são as trilhas do (Angelo) Badalamenti pro David Lynch.

F-se: Por exemplo, o que influenciou nesse novo trabalho? E o que seria “insuportável”?

PO: As escolhas estéticas desses dois me influenciam muito, e sem que eu perceba… Só olhando pra trás que eu fui sacar nesse trabalho novo acho que tem muita coisa de Neil Young… E de Krautrock, por mais díspar que isso soe. E sempre essa coisa meio Lynchiana que permeia o que eu faço sem que eu tenha controle sobre. Se eu fosse crítico com o som “dos outros” como eu sou com o meu, eu não ia gostar de nada. Muitas vezes eu tenho plena noção que gosto de muita coisa que se fosse feita por mim eu odiaria, então concluo que o problema é comigo, porque tem muita muita muita coisa boa por aí. Eu sou o maior fanboy dos artistas que admiro (ri)

F-se: Você flexibiliza com os outros e não consigo…

PO: Não sei se seria “flexibilizar” porque isso implica que eu “até gosto”… Eu acho que é um distanciamento da criação que eu deveria exercitar um pouco mais comigo mesmo. No primeiro EP que gravei, por exemplo, minha idéia era fugir de qualquer coisa que lembrasse minimamente um “beat”. E eu adoro Kraftwerk, por exemplo, que é puro pulso. Ou mesmo Jamiroquai, que é somente sobre groove. Então, sei lá (ri).

F-se: Então, pode ser que um dia vejamos você, seja com o IBP ou com outra alcunha, assumindo essas preferências?

PO: Musicalmente? Talvez… Eu já toquei em bandas de tudo quanto é estilo, produzindo algo diferente também, de maneira solitária, seria simplesmente natural. Eu admiro muito bandas tipo Motorpsycho ou Boris, que lançam discos do que dá na telha, sem se preocupar em manter uma coerência. Acho que isso é louvável e, pra uma banda com uma “carreira”, um risco muito legal de se correr. Eu odiei o disco de “j-pop” do Boris, mas achei a atitude do caralho.

F-se: Mas você se preocupa em “ter uma carreira”?

PO: Jamais. O que eu faço musicalmente é por pura e simples catarse.

F-se: Você não enxerga nisso uma contradição com o seu assumido perfeccionismo? Digo, a música como simples catarse e tanta preocupação pelo produto final…

PO: Com certeza. Mas uma coisa não exclui a outra, eu acho.

F-se: O nome do disco tem alguma história especial?

PO: Hmmm… “Eutropia” é o nome de uma das muitas “cidades invisíveis” do Calvino. É a cidade que se desdobra em várias outras, que é multifacetada e um “espelho de si mesma”. Isso tem tudo a ver com algo que permeia o disco todo, que são field recordings que eu coleto sempre que vou viajar. Então eu acabei criando “paisagens” abstratas compostas por gravações de cidades muito distantes entre si. Uma das faixas do disco, por exemplo, é um field recording que contém gravações de Istanbul, Londres, Köln e Paris. Arquitetura e paisagem urbana acabaram meio que virando o tema central do disco. Talvez influenciado pela minha mudança pra Berlim. Eu sou paulistano e bicho de cidade grande, estava sentindo falta desse caos.

F-se: Você consegue projetar as músicas num palco? Aliás, além daquele show que você fez em Berlim: tem outros em mente por aí? Como foi a recepção daquele?

PO: Sobre projetá-las num palco: não. Minha ideia não é reproduzir o disco ao vivo, de jeito nenhum. Talvez um trecho ou outro de um field recording se repita, mas fora isso as composições e o que eu tento fazer ao vivo são coisas diferentes. Sobre tocar em Berlim, estou procurando locais pra tocar ainda. Conheço alguns pontos interessantes e já tenho alguns contatos, mas estou esperando o disco sair pra usar como “cartão de visitas”. O show em Berlin foi interessante, porque eu toquei num evento que não tinha muito a ver com música, era meio que uma instalação/performance numa casa. Então, eu meio que criei uma atmosfera pro porão dessa instalação durante o tempo da performance. Pouca gente estava no local onde eu estava tocando porque era uma sala bem pequena, mas o som se espalhava pelo porão todo.

F-se: Normalmente, aí, o pessoal é mais receptivo a esse tipo de som, não?

PO: Sem dúvida. Tem uma gama muito grande de shows de música experimental rolando por aqui. Eu tenho até que tomar cuidado senão o orçamento não dá.

F-se: Esse ambiente sempre ativo de cultura te incentiva a criar?

PO: Com certeza. Pra completar, eu ainda moro num prédio onde só vivem músicos. Eles são mais novos e todos eles tocam em orquestra, mas ter música no prédio o dia todo é uma fonte de inspiração.

F-se: Com relação às gravações de campo (veja aqui algumas curiosidades dessas gravações), você deve ter gravado bem mais do que usou, claro, mas qual o critério de escolha das gravações?

PO: Sim, na verdade os sons eu não gravei pensando em usar no disco em si… Eu tenho meio que um “diário sonoro” que eu sempre gravo quando viajo. Então, eu tenho muita coisa gravada. O critério acho que foi nesse esquema que eu disse: primeiro porque traduzia algo que eu queria explorar em termos de estética (relação ruído/silêncio, musicalidade etc.) e segundo por conteúdo. Mas alguns sons não foram escolhidos por conteúdo, como por exemplo o do final de “Distopia II”… Esse foi escolhido pura e simplesmente pela qualidade sonora.

F-se: Isso é interessante você falar, principalmente na “Entropia”, porque a canção é basicamente o cante religioso, certo?

PO: Sim, só tem pequenas intervenções – colagens – no começo e no fim; o resto é a gravação pura, como eu gravei no meio da rua no fim da tarde, você tem todo o tráfego de carros e pessoas junto enquanto eu gravava. Inclusive aconteceu um negócio legal: eu estava meio de canto, com o braço esticado apontando o gravador mais pro alto possível… Passou um casal de velhinhos turcos por mim e fez um sinal de aprovação com as mãos, e apontaram pros ouvidos como quem diz “é muito bonito mesmo”.

F-se: Então por que chamar de “Entropia” uma música que tem quase nada de “desordem”?

PO: Porque ela fica exatamente no meio do disco, e eu queria passar essa idéia – altamente abstrata, diga-se – de que essa faixa do meio quase que “atrai” as que a circundam pra dentro de si. Não sei se faz sentido (ri). Porque a ordem das faixas, e como eu quis construir o disco, é bem claro: você tem caos, uma transição pra algo mais leve, algo totalmente leve, algo um pouco mais tenso e o caos novamente. Então, na minha cabeça é como se tudo convergisse pro meio.

“Entropia”:

F-se: Você acha que as pessoas compreendem, fazem essa leitura, sem o apoio do texto?

PO: Acho que não, mas também nem é a minha intenção. Desenho o disco como acho mais relevante pra mim, mas daí cada um tira suas conclusões. Na verdade, minha ideia inicial não era nem falar sobre a origem e conteúdo dos field recordings, mas muita gente que ouviu perguntou, então achei legal incluir como “trivia”.

F-se: Você acha que essas gravações em vários lugares dá uma aura de disco “sem fronteiras” ou é uma bobagem?

PO: Bom, toda a ideia do disco era calcada em criar uma paisagem sonora que é múltipla mas ao mesmo tempo única, como a própria descrição que o Calvino dá pra Eutropia, uma cidade que é um espelho de si mesma, múltipla. Mas como eu disse, essas foram as minhas diretrizes. Não espero que quem ouça chegue nessa mesma conclusão, e sim que tire suas próprias.

F-se: Como tem sido a resposta? As pessoas têm falado com você sobre o disco e dito o quê?

PO: Olha, eu fiquei bem surpreso com o retorno. Muita gente gostando, e totalmente fora da esfera dos “amigos”.
Fiquei muito satisfeito mesmo com o resultado e fiquei feliz que consegui passar isso pra quem ouviu. O retorno tem sido bem positivo, principalmente por conta da mistura com field recordings. Talvez seja mais “acessível” do que o anterior, e eu acho isso legal porque não foi de propósito da minha parte.

F-se: Acessível?

PO: Definitivamente, muitas aspas aí (ri). Mas eu digo acessível porque tem uma construção mais fácil do que o anterior, a começar pela duração das faixas. O disco tem 40:04, fiquei surpreso porque eu sempre trabalho com “simetria” nas coisas do IBP. O primeiro EP tem uma construção simétrica, o “Schwarzen Tönen” idem, este idem… Mas a duração ser 40:04 foi coincidência. Mas as faixas não são planejadas por duração. Como o processo do disco foi bem solto e baseado em sessões de improvisação que eu gravava, foi tudo bem orgânico.

F-se: Qual a maior virtude do disco?

PO: Pra mim foi um processo muito importante, foi bem mais relaxado do que os anteriores, sem dúvida. E com os resultados que mais me agradaram até o momento, então acho que ele foi meu momento onde eu finalmente pude dizer “é isso”, em relação ao meu objetivo estético e sonoro. Claro que isso vai mudar em breve, mas foi de fato a primeira vez que eu acho que consegui terminar algo que eu fiquei 99% satisfeito.

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