JIM JARMUSCH, O ANTI-MTV, E O VÍDEO DE “THE LADY DON’T MIND”, DO TALKING HEADS

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“Jim Jarmusch é o cineasta anti-MTV”, asism definiu o site Open Culture sobre um dos cineastas mais “marginais” (pelo menos, no começo da carreira). “A maioria dos videoclipes, desde o alvorecer da MTV em 1981 em diante, são elegantes e fáceis, com muito espetáculo visual e nenhuma substância ou coerência. Jarmusch, que começou a fazer filmes no East Village na década de 1970, quando o espírito DIY do movimento ‘No Wave’ estava no auge, fez filmes que eram deliberadamente lentos e esparsos, lembrando Bertolt Brecht e Yasujiro Ozu”.

A descrição cai bem pro autor visual de pérolas irretocáveis como “Estranhos No Paraíso” (“Stranger Than Paradise”, 1984) e “Daunbailó” (“Dawn By Law”, 1986), em preto-e-branco nostálgico, diálogos sem muito sentido, histórias simples carregadas de ironias e situações cômicas (sim, seus filmes são quase todos cômicos, embora nunca “comédias”) e interpretações amadorescas ou contidas (o passar do tempo foi largando essa “exigência”).

Jim Jarmusch ter filmado “The Lady Don’t Mind”, sucesso do Talking Heads, do disco “Little Creatures”, de 1985, não é por acaso. Jarmusch sempre foi enturmado, não há como escapar dessa compreensão na hora de entender suas oportunidades. Na faculdade, por exemplo (estudou Artes na renomada Columbia e foi aceito na Tisch School of the Arts, o braço cinematográfico da Universidade de Nova York), teve aula com ninguém menos que Nicholas Ray, com quem, apesar da diferença de 42 anos entre eles, desenvolveu uma amizade a ponto de ser convidado pra participar do documentário “Um Filme Para Nick” (“Lightning Over Water”, 1980), dirigido por Ray e Wim Wenders.

Ray morreu em 1979, aos 67 anos, um mês antes de completar 68, deixando filmes como “Johnny Guitar” (1954) e, claro, “Juventude Transviada” (“Rebel Without A Cause”, 1955). Jarmusch nasceu em 1953.

Ele perambulava por Nova Iorque na época que os movimentos punk e no wave fervilhavam, incluindo os Ramones e o Talking Heads, e ficou amigo de gente como Tom Waits e John Lurie, também músico, que usou em muitos dos seus filmes.

A amizade, inclusive, segue até hoje, especialmente em piadas como a criação da sociedade secreta “Os Filhos de Lee Marvin”, cujos membros precisam ser confundidos com um filho de Lee Marvin.

Na tal sociedade, além de Jarmusch, Lurie e Waits, estão Richard Boes, Nick Cave (eles viraram amigos quando moraram em Berlim), além de Thurston Moore, Iggy Pop, Neil Young e o ator Josh Brolin. O diretor John Boorman é membro honorário.

Boorman dirigiu Marvin no excelente “À Queima-Roupa” (“Point Black”, 1967) e depois fez o documentário “Lee Marvin: A Personal Portrait By John Boorman”, em 1998.

Marvin era um tipo carrancudo, enigmático na tela, normalmente como vilão (embora tenha ganho seu único Oscar como o pistoleiro bonzinho de “Dívida De Sangue”, ou “Cat Ballou”, de 1965), mas charmoso o suficiente pra compor um grande número de fãs.

Não há mulheres, “obviamente”, segundo Jarmusch, na sociedade secreta. Mas curiosamente, Marvin teve quatro filhos, apenas um deles nasceu homem (Christopher Lamont).

Em 1986, quando a sociedade secreta aparentemente surgiu, Jarmusch estava entregando sua obra-prima, “Daunbailó”. E o vídeo de “The Lady Don’t Mind”, o primeiro videoclipe da sua carreira.

A peça “anti-MTV”, emissora que estava literalmente no auge, construindo famas, é tão simples como não podia ser um clipe pra MTV naqueles tempos de exigências megalomaníacas, quanto nonsense, como qualquer clipe da MTV.

Imagens de Nova Iorque à noite, numa fotografia escura. E, então, uma mulher de quimono (que os fãs dizem ser a baixista Tina Weymouth) em um apartamento vazio, em preto-e-branco.

Jarmusch usa os poucos recursos que possui pra tentar equilibrar os já reportados à época problemas de relacionamento do Talking Heads. Filma a banda tocando e interpretando a canção, com protagonismos alternados. Começa com David Byrne à frente, passa pra Tina, depois Jerry Harrison e o baterista Chris Frantz (Frantz e Weymouth, já casados, já estavam com o Tom Tom Club em plena função).

O preto-e-branco granulado é utilizado como em seus filmes, mas aqui entram as cores, como no lençol pendurado e na própria banda. Não há criatividade exultante aqui. Ao contrário, é um clipe bastante simples.

Segundo o prestigiado site Dangerous Minds, “‘The Lady Don’t Mind’ é um dos vídeos menos interessantes” da compilação de vídeos “Talking Heads: Storytelling Giant”, lançada em 1988, que junta os dez vídeos lançados pela banda durante aquela década. O trabalho é tão insano quanto qualquer vídeo dos Talking Heads, com pessoas – e não atores – contando histórias de suas vidas, mas que não possuem uma única conexão com as músicas que apresentam e seus vídeos. Tal e qual o próprio vídeo de “The Lady Don’t Mind”.

Em 2010, o tecladista Harrison disse que “não há filme que capte melhor o clima de Nova Iorque com o nascimento do punk do que ‘Estranhos No Paraíso'”, chamado por ele de “uma obra-prima underground que influenciou gerações de cineastas independentes”.

“Isso dá uma ideia autêntica dos artistas daquele período”, disse Harrison. “E isso me conecta ao meu tempo em Nova Iorque e aos Talking Heads”.

Foi Harrison e Weymouth foram os autores do storyboard no qual Jarmusch se baseou. “Tive a ideia de usar flashes de cores que desbotavam pra preto-e-branco”, lembrou. “Essa era a ideia central do vídeo. Jim era um mestre do preto-e-branco que pensei que ele seria o homem ideal pra dirigi-lo”.

Naquela época, Harrison morava em Long Island City, um bairro artístico do Queens, e queria aproveitar as vistas incomuns do horizonte de Manhattan de lá. São essas paisagens urbanas que Jarmusch incorporou ao vídeo.

O Talking Heads não era exatamente um grupo novato no cinema ou com câmeras e afins. Pelo contrário. A simbiose de imagem e som era bem explorada pela banda. Dois anos antes, em 1984, com direção do depois multipremiado Jonathan Demme, entregou ao mundo o ainda hoje espetacular “Stop Making Sense”, um documentário de show que foi aclamado como “um dos maiores filmes de rock já feitos”, deixando a marca do terno bem acima do número certo de David Byrne, em um efeito visual impactante.

Ao mesmo tempo, Jim Jarmusch também sempre teve uma ligação com a música, não só ao usar seus amigos músicos em seus filmes, mas também por, mais tarde, se enfiar em bandas. A mais recente é a Sqürl, com Carter Logan, também ator, e Shane Stoneback, produtor musical.

Não é passatempo, é profissional o negócio. A trilha do boboca “Os Mortos Não Morrem” (“The Dead Don’t Die”, 2019), é da banda, bem como do filme anterior, “Paterson”, de 2016.

Mas “The Lady Don’t Mind” ainda era o início de “alguma coisa”, com Jarmusch mexendo e conectando os nomes da sua caderneta de contatos pro que viria a ser uma valiosa caderneta de contatos.

Em “Year Of The Horse” (1997), documentário que segue o Neil Young And Crazy Horse na turnê de 1996, Jarmusch mostra nas entrevistas que ele também é personagem importante da obra, apreciando um dos seus ídolos, que depois virou membro da sociedade secreta.

O Dangerous Minds tem razão: é um vídeo sem atrativos, a não ser o fato de que é o primeiro passo de Jarmusch na união hoje indissociável entre seu cinema e a música – ambos quase sempre marginais e não comerciais.

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