LOU DEPRIJCK: O PRODUTOR QUE RIU DO PUNK E FEZ UMA FORTUNA

Lessines é uma pequena cidade no miolo da Bélgica. Tem dezoito mil habitantes e fica a sessenta quilômetros de Bruxelas e outros sessenta e tantos de Lille, na fronteira com a França. Em 21 de novembro de 1898, nasceu ali René Magritte, pintor surrealista que é conhecido por quadros como “La Trahison Des Images” (“A Traição Das Imagens”, 1929) e “Le Fils De L’Homme” (“O Filho Do Homem”, 1964), imagens hoje solidificadas na cultura pop.

Magritte tinha a habilidade de desafiar os apreciadores de suas obras ao mudar a percepção da realidade, colocando objetos do dia a dia em contextos poucos usuais. Ele era um provocador.

Quarenta e oito anos depois de seu nascimento, Lessines deu ao mundo outro cidadão provocador, mas dessa vez mais ligado à fanfarronice e ao deboche. Não, Lou Deprijck não era um comediante. Ele se tornou um músico e produtor musical. E ficou rico assim.

Talvez pouca gente ligue o nome à pessoa, mas uma das suas criações vendeu mais de vinte milhões de cópias, alcançando o primeiro lugar nas paradas de países como a Austrália, a França e a Suíça.

Antes do sucesso mundial, Deprijck ensaiou sua cascatice com o trio Two Man Sound (sim, um trio que se chama “two man”), junto com Sylvain Vanholme (na guitarra e baixo) e outro fanfarrão, Yves Lacomblez, o Pipou (na percussão).

O Two Man Sound fez um bom sucesso na América Latina chupinhando canções de sucesso brasileiras e colocando uma base disco nelas. Deprijck tentava cantar em português – ele nem se deu ao trabalho de traduzir pro francês as letras – e, apesar do sentido cômico que tem pra nós brasileiros e do grupo mesmo não se levar muito a sério (basta ver as muitas performances na televisão), o Two Man Sound conseguiu faturar uma bela nota com músicas como “So Fla-Fla” (“País Tropical”, do Jorge Ben), “Charlie Brown” (Benito Di Paula), “Disco Samba” (um apanhado de várias músicas de Jorge Ben e afins, que se tornou o maior hit do grupo) e “Que Tal America”, seu maior triunfo nos Esteites.

“Charlie Brown” foi lançado em 1975 e “Disco Samba”, em 1977, na febre da disco music. Mas Deprijck não era o único picareta no tablado. A Bélgica parece ser especialista nisso. O jornalista Alec Le Seur, autor de “Bottoms Up In Belgium: Seeking The High Points Of The Low Lands”, de 2014, conta que uma vez estava num hotel na Antuérpia, quando viu um sujeito que parecia um Elvis Presley cover passando por ele. Sua acompanhante cochichou: “Olha, é Eddy Wally”. Espantado pela sua própria ignorância, Le Seur perguntou: “Eddy quem?”. “Você sabe, Eddy Wally…”.

Bom, ninguém precisa nascer versado em picaretagens belgas e saber quem é Eddy Wally, a auto-proclamada “Voz da Europa”, o “vigésimo-segundo artista mais vendido da Bélgica em todos os tempos”, anota Le Seur, com certo prazer, graças a três canções, “Chérie”, “Dans Mi Amor” e, claro, “Ik Spring Uit ‘N Vliegmachien”, uma canção disco de 1988.

Eddy Wally se tornou tão famoso na Bélgica e na França, que virou nome de um cinturão de asteroides, que orbita entre Marte e Júpiter.

Deprijck não estava disposto a conquista o espaço sideral. Seus desejos eram mais terrenos. Tirando a enorme relevância de Jacques Brel pra música pop – o autor de “Ne Me Quitte Pas” – a Bélgica deve reverências ao produtor Deprijck por levar a música pop do país a todo o planeta.

Em 1977, ainda no meio da pataquada do Two Man Sound, Deprijck tentou uma outra jogada, pra além do samba e da bossa nova. Esse era o ano do primeiro disco do The Clash e do Damned. Era também o ano em que o Sex Pistols abalou as estruturas. Jonathan Richman e seu Modern Lovers faziam Deprijck suspirar de admiração.

Foi num dos tantos shows que eles foram do Modern Lovers que um amigo jornalista lhe disse: “sabe, o primeiro que fizer um punk em francês entrará pra história”. Essa provocação inocente fez acender uma luz na mente de Deprijck: afinal, por que não?

Apesar de ele estar com um outro projeto em andamento, o Lou And The Hollywood Bananas – outra picaretagem -, Deprijck ficou com uma ideia fixa de se aventurar pelo punk. Ele era, além de músico, produtor fixo do selo Roland Kluger Music e por isso tinha acesso aos músicos quebra-galho da casa. “Não eram grandes músicos, mas como os punks não sabiam tocar nada, dois ou três acordes já bastavam”, disse ao Le Soir. Assim, formou um grupo com Bob Dartch (baterista de restaurante) e John Valke (baixo). Ele não tinha um guitarrista, de modo que o engenheiro de som do estúdio, Mike Butcher, fez esse papel. Lou, obviamente, fez os vocais.

A gravação aconteceu no Morgan Studios, renomado estúdio de Londres que havia aberto uma filial em Bruxelas. Durou duas horas, incluindo o lado B, “Pogo Pogo”: “foram duas horas no estúdio e três horas bebendo no pub vizinho”, ele contou.

A grande criação da qual estamos tratando é a grudenta “Ça Plane Pour Moi”, a música pop belga mais bem sucedida de todos os tempos. Só que a história não é tão simples.

“Ça Plane Four Moi” é a mesma canção e tem a mesmíssima base de “Jet Boy, Jet Girl”, que Alan Ward, com o nome de Elton Montello, havia gravado em outubro – a versão belga é de dezembro, dois meses depois.

Elton Montello não era exatamente Alan Ward, era uma banda completa. Mas quando chegou na Bélgica, pra uns shows, Ward era líder da Bastard, um grupo de glam, formada por Yves Kengen (baixo), Nobby Goff (bateria) e Brian Robertson (guitarrista, que depois virou Brian James e criou o Damned). O que liga Ward a Deprijck é Mike Butcher, o engenheiro de som do selo Roland Kluger Music.

Butcher havia trabalhado junto com Ward no Morgan Studios original, de Londres, e quando a filial foi aberta em Bruxelas, Butcher trouxe Ward pra gravar algo ali. Os dois eram prezados amigos.

“Nós, o Bastard, fizemos umas demos na Bélgica”, conta Ward ao Attacking The Beat. “Mas as coisas não rolaram na Europa como a gente imaginava. A aposta era que as pessoas entendessem mais o que a gente fazia ali na Europa do que na Inglaterra. Mas não. As pessoas eram um tanto mais conservadoras do que a gente achava. Daí, a banda meio que acabou e Brian voltou pra Inglaterra, pra formar o Damned. Com o resto da banda, não tenho certeza o que rolou. Com o Bastard acabando, eu e Butcher ficamos ainda mais próximos musicalmente”.

Quando Deprijck teve a luz acesa na cabeça pra apostar também no punk, ele quis uma versão em inglês e uma versão em francês. A inglês era pra efetivamente ganhar uma grana e a em francês era pra tirar uma onda (e, de acordo com a ideia inicial, quem sabe, “entrar pra história”). Butcher e Lou usaram a mesma base pras duas versões. A em inglês chamou-se “Jet Boy, Jet Girl”, que Alan Ward assumiu e defendeu como Elton Montello. A em francês chamou-se “Ça Plane Pour Moi”, mas Deprijck de repente se viu com um problema.

Se Ward e seu Elton Montello tinham toda a pegada punk necessária, o mesmo não podia ser atribuído a ele. Deprijck, como se viu nos vídeos com o Two Man Sound, era um sujeito com para de paspalho, com bigodão e muitas vezes um chapéu Panamá. Não era nada punk. Como resolver?

Uma amigo de Lou, Eric Rie, avisou a ele sobre uma banda belga punk chamada Hubble Bubble, que fazia um certo barulho na diminuta cena subterrânea local. Especialmente sobre o baterista Roger Jouret.

Ouça o primeiro disco do Hubble Bubble, homônimo (de 1977), na íntegra:

O que fazia de Roger o cara perfeito pra “Ça Plane Pour Moi” é que ele era punk o suficiente, pelo menos nas roupas e um tanto na atitude. Só havia um problema: ele não sabia cantar absolutamente nada. Era um fiasco. Só que isso não afastou Deprijck de seu objetivo: ele sabia que na televisão, Roger teria que apenas dublar a canção, de modo que não havia problema da voz ser do próprio Lou.

Como se vê, o Milli Vanilli não inventou a roda – nem mesmo Lou. A música jovem tá cheio de exemplos de picaretas. A diferença aqui é que Deprijck não intencionava fazer sucesso com a versão em francês. Roger era apenas um plano de retaguarda pra caso a canção fosse parar na televisão.

Assim, nasceu a Plastic Bertrand, uma banda fabricada, que tinha como vocalista um baterista que só sabia se vestir como os punks ingleses e não fazia a menor ideia de como cantar.

“Fui a Londres pra comprar pra Roger umas jaquetas e assessórios na loja de Malcolm McLaren. Quando voltei de viagem, três semanas depois do lançamento do álbum, naquele inverno de 1977, o disco era sucesso em todo lugar. Honestamente, nunca pensei que a música provocasse uma onda tão grande”, disse Deprijck.

Certamente a causa disso não era a letra. “Jet Boy, Jet Girl” fala sobre um garoto de quinze anos que se relaciona sexualmente com um cara mais velho, que depois o rejeita pra ficar com uma garota. Apesar da temática ousada, o final é bem conservador.

Ouça a versão de estúdio:

Veja a banda Elton Montello num playback pra TV:

O Lado A do single de Elton Montello era “Pogo Pogo”, canção escrita por Lou Deprijck, Yvez “Pipou” Lacomblez, que no disco em francês, virou o Lado B.

Já a letra de “Ça Plane Pour Moi” é muito mais nonsense. Conta o dia seguinte de um cidadão que exagerou nas drogas e na bebida e encara a ressaca – moral e física. Só que os versos são um tanto incompreensíveis pra qualquer tentativa de tradução literal pra outra língua, qualquer outra língua. A letra também é de Yvez “Pipou” Lacomblez. O título é uma tiração de sarro da brega “Tu Me Fais Planer”, sucesso do francês Michel Delpech.

Ouça a versão original:

Aqui, o clipe oficial:

“Ça Plane Pour Moi” tem uma tradução aproximada pra “tudo vai dar certo pra mim”. E deu, mas pra Deprijck. A canção foi um retumbante sucesso, vendeu mais de duas dezenas de milhões de cópias, e o é até hoje, figurando em comerciais de tevê e filmes pra cinema. Já “Jet Boy, Jet Girl”, a versão em inglês, não se deu tão bem comercialmente – apesar da versão do Damned.

Comercial da Hovis, 2014:

Comercial da Johnnie Walker, 2015, com Jude Law:

Comercial da Pepsi, 2007:

Comercial da Petit Bateau, 2017:

A lista de comerciais e filmes de grande bilheteria que utilizam a canção é enorme, tanto quanto os artistas de sucesso que se renderam à música e fizeram uma versão dela: tem Red Hot Chilli Peppers (ao vivo), Vampire Weekend (ao vivo), Tears, The President Of The United States, além, claro, do Sonic Youth:

Com o sucesso da canção em francês, criou-se um problema. De acordo com Jouret, Deprijck havia lhe prometido uma porcentagem dos royalties só pra dublar a música, mas também prometeu que levaria o baterista ao estúdio pra gravar uma versão da música com a voz dele, algo que nunca aconteceu. Como não se esperava um sucesso tão grande, não houve um contrato assinado. Entretanto, a canção chegou ao Top 10 não só na Bélgica, como na Austrália, França, Inglaterra, Suíça, Alemanha, Irlanda, Holanda e Nova Zelândia.

Nos Esteites, a canção não foi tão bem sucedida, mas conseguiu avançar postos e vendas sete anos depois, quando acabou na trilha de uma das continuações de “Férias Frustradas”, um megasucesso do cinema juvenil, com Chevy Chase, chamada “Loucas Aventuras De Uma Família Americana Na Europa”, de 1985 (lembra dessa cena?).

Lou Deprijck era bom de papo e conseguiu convencer Jouret a dublar outras músicas da sua Plastic Bertrand. Eles acreditavam que estavam iniciando uma imbatível carreira. Foram quatro discos produzidos e cantados por Lou (que Jouret só teria o trabalho de dublar): “An 1” (1977), “J’te Fais Un Plan” (1978), “Plastiquez Vos Baffles” (1981) e “Chat Va? …Et Toi?” (1983), esse último foi o primeiro que Jouret começou a cantar, o que passaria a ser o usual a partir daí, já sem a produção e tutela de Lou.

Pra Jouret não era exatamente um mau negócio. Ele tava fazendo uma grana e ganhando fama, sendo escalado pra filmes e comerciais de televisão.

James Greene Jr. conta, em seu livro “Brave Punk World: The International Rock Underground From Alerta Roja To Z-Off” (2017), que “Lou Deprijck nunca se sentira inteiramente à vontade com o ‘acordo de cavalheiros’ do Plastic Bertrand, mas por algum motivo não se resguardou juridicamente de nenhuma confusão séria até meados de 2000. Foi quando o produtor iniciou uma ação legal pra impedir que Jouret continuasse a lucrar como a voz de ‘Ça Plane Pour Moi’. Em 2006, um tribunal belga declarou temporariamente Jouret o intérprete legal da música, aguardando uma investigação mais aprofundada. Quatro anos depois, o tribunal decidiu que Deprijck era o cantor por trás da Plastic Bertrand, depois de determinar que Jouret não possuía o mesmo sotaque francês que o vocalista da Plastic Bertrand mostrava nos discos. Em face da decisão, depois de anos protestando em contrário, Jouret finalmente admitiu a mutreta – embora ele ainda insistisse que Deprijck o havia colocado (forçada e enganosamente) no acordo”.

“Eu sou a vítima”, disse Jouret em 2010. “Eu queria cantar, mas ele não me deixava nem chegar perto do estúdio. Ele me pediu pra ficar de boca fechada em troca de 0,5% dos direitos, e me prometeu uma nova versão com minha voz, o que ele evidentemente não fez”.

Greene continua: “por sua vez, Deprijck admitiu que ficou ‘impressionado’ com o sucesso da canção, mas tentativas anteriores de corrigir a situação com Jouret não levaram a nada porque o ex-baterista é um ser ‘maquiavélico’, com um ‘nada de voz’: ‘Roger me ignorou. É muito chato! Ele ficou comigo nessa caminhada por um longo período. Eu sou responsável pelo seu sucesso. Até mesmo seu nome, Plastic Bertrand, eu que escolhi…”.

Aparentemente, Jouret não se incomodou com o fato de ter sido desmascarado como uma farsa, depois de algumas décadas, em “Ça Plane Pour Moi”. Ele continuou a fazer turnês pelo mundo e gravar como Plastic Bertrand – o disco mais recente é “Dandy Bandit”, de 2008, de antes da decisão final dos tribunais belgas (veja aqui o clipe de “Machine!”).

Lou Deprijck ainda está vivo, desfrutando da grana dos direitos da canção. Mantém o bigode e o chapéu em quase toda aparência pública. Sua brincadeira com o punk de fato o colocou na história. Pra muitos, de uma maneira nada honrosa. Mas “Ça Plane Pour Moi” está aí, ficou pra sempre como uma das mais divertidas músicas pop de todos os tempos.

Como o cachimbo de Magritte, que não era um cachimbo, o punk de Deprijck não era exatamente punk, mas uma forma de tirar uma onda com o próprio sistema que deu o punk ao mundo e fazer dinheiro – mas, ei, não foi exatamente isso que Malcolm Maclaren fez com os Pistols?

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