RESENHA: MOUNT EERIE – NOW ONLY

“Agora eu via somente a ausência de vida. E já não havia diferença entre aquilo que um dia fora meu pai e a mesa onde ele jazia, ou o chão onde estava a mesa, ou a tomada na parede embaixo da janela, ou o fio que ia até a luminária ao lado dele. Pois os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas, as quais o mundo não cessa de reproduzir, não só naquilo que tem vida, mas também naquilo que não tem, desenhado na areia, na pedra e na água. E a morte, que eu sempre considerara a maior dimensão da vida, escura, imperiosa, não era mais que um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão”. – Karl Ove Knausgård, “Minha Luta 1: A Morte Do pai”

Há vários momentos em “Now Only” em que uma previsão metafórica se anuncia, porém todos são dizimados por algo chamado “realidade”. As cenas descritas no disco são todos sobre a presença onisciente da mulher de Phil Elverum (que é o Mount Eerie), Geneviève Castrée, que morreu em junho de 2016, devido a um câncer. Phil rumina sobre os fantasmas dela, sobre os sonhos com ela, enquanto encara um mundo novo habitado por uma ausência permanente acompanhando-o em todos os momentos.

Se no disco anterior, “A Crow Looked At Me” (2017), havia uma hesitação em cantar sobre a morte (mas não se engane, a hesitação é convertida em uma devastação impactante), “Now Only” é sobre seguir em frente, com muita dor, carregando o legado da vida que construiu em conjunto com a pessoa amada.

Nós eventualmente chegamos a essa parte da vida, mas com Phil veio muito mais cedo do que o imaginado: as lembranças no disco surgem por pura associação afetiva, desde quando Elverum começou a se aventurar no mundo da música às cenas mais recentes, sem uma ordem cronológica, porque o luto funciona assim: é uma roleta-russa aleatória não só pra quem efetivamente vai partir deste mundo, mas também pros que ficam.

De repente, em meio às explicações e divagações sobre o passado, surge o corpo concreto de Geneviève. Phil repete “mesmo assim eu canto pra você”, com uma consciência de que aceitar a morte não se respalda na tentativa de tentar aquietar os ecos ressoantes que alguém amado deixa nas nossas vidas. Nós usamos essa ausência de diferentes maneiras, mas algo em comum une os que passam por luto: temos que tentar encontrar alguma maneira que nos afinque neste plano, suportando o abismo e o deserto que é a morte de alguém próximo. Não dá pra ser de outra maneira, senão piramos e queremos morrer também. Como uma galeria excepcional de momentos que ressoam, o acervo que nos é deixado pode ser um peso excessivo, mas também um presente raro impresso em carne-viva a partir de alguém amado. Muitas vezes ambos ao mesmo tempo. As cenas que nos acompanham são fardos porque a possibilidade de sua origem foi arrancado de nossas mãos e são cinzas dispersas que, eventualmente, retornarão como momentos distorcidos de uma existência:

“But I laid there on the moss / Compost and memory: / There’s nothing else / I can hear Wolves in the Throne Room singing: / ‘I will lay down my bones among the rocks and roots’ / At night I sit and picture myself curled up beneath / Ten feet of water at the bottom of the lake / I imagined trout bumping against me in the low diminished light / Holding my breath trying to be a boulder / Eroding, to join you in re-mingling with a background / Of churned muck coalescing in the dark / But to get ground back down to matter only / Eternal and dumb becoming not a thing / Abdicating form” (em “Earth”).

A morte é uma revolução interna porque remodula nossa relação com os objetos ao redor; as pinturas, os utensílios domésticos, a vizinhança onde moramos etc. Nos encontramos no mesmo mundo, mas encarando e reagindo às coisas de maneira completamente diferente, interpretando as pessoas de outra maneira e um pouco mais conscientes de que a forma física deteriorará e não demorará muito.

Uns precisam de conforto, outros precisam dar vazão violenta à tristeza, outros, como Elverum, ficam repetindo o amor incondicional que sentem pela sua esposa. Depois de tudo, é evidenciado que há um buraco eterno que não se permite fechar e nem ser preenchido, que as coisas feitas pós-luto sempre parecerão incompletas, confluindo pra um local desolado. Mas não dá pra fazer muito mais do que isso. A totalidade da morte é um fardo, Phil não nega isso, e sua forma de lidar com esse peso é preenchendo tudo ao redor com seu pesar, assim homenageando sua versão de quem se foi:

“In the ruins of our household, we wake up again / Coming back into this / Every day that comes, the echo of you living here gets quieter / Obscured by the loud wind of us now / Wailing and moaning for you” (em “Crow, Pt.2”).

Ouça o disco na íntegra:

A forma de Phil falar através do choque da perda é diluída, mas não enfraquecida, através dos objetos do cotidiano e do clima, como se tudo que permanecesse estático após a morte de Geneviève reagisse, ainda que quietamente e ainda que indiferentemente, ao luto. Como se a forma ausente da esposa relocalizasse não apenas Elverum e sua filha, mas todo o entorno que acompanha ambos.

Triste ao registrar com os olhos que as coisas que permanecem estão todas filtradas por um corpo que não existe mais, de que cada sinal de existência é atravessada pela catástrofe da perda. Qualquer tipo de possibilidade de noção precisa acerca das coisas é assombrada pela mortalidade de quem não existe mais. O resultado é uma imprecisão que cria um abismo entre quem sofre do luto e os outros: como fica evidenciado em uma passagem na qual Phil fala sobre tocar músicas sobre morte pra um bando de adolescentes drogados. Isso é o absurdo. Isso é o abismo.

Com o lançamento deste disco, que segue a mesma temática do antecessor, parece que o estado de transe abrupto que Elverum se encontra é perpétuo e o desafio passa a ser como agir a partir da tragédia com uma filha pra criar e com a necessidade de continuar vivendo. Em uma sociedade extremamente imediatista, a fatalidade do luto pode promover um retiro pra uma câmara que precede os acontecimentos. Isso é, com uma alergia forçada ao excesso de representatividade, os testemunhos parecerão mais sinceros e reais, ainda que carregados de uma dose brutal de saudades e nostalgia:

“I don’t want to live with this feeling any longer than I have to / But also I don’t want you to be gone” (em “Earth”).

O barulho da distorção da morte não diminui, é o que “Now Only” atesta, mas é com sua insistência que tem de se viver, ainda que apoiado em sonhos sobre tudo o que existiu. As opções não variam muito mais do que isso e a abertura pras frestas de luz sempre está atravessada pela dor. Em “A Crow Looked At Me”, o disco termina com uma comovente cena final em que um corvo acompanha Elverum caminhando com sua filha.

(O desejo de representar Geneviève que é sempre esmagado pela lembrança de que a realidade extinguiu seu corpo… O desejo de declarar o amor pra alguém que não está mais aqui pra receber seus sentimentos)

Depois de ouvir “Now Only” pela primeira vez e chorar dentro do meu quarto abafado em Santo André, perguntei-me se seria errado escrever sobre isso e sobre o disco. Mas então eu pude lembrar de todas as pessoas próximas que deixaram seu corpo recentemente. De como Phil criou uma paisagem desolada dentro de mim e porque essa desolação sempre é dolorosamente real. A morte é real e seu eco nunca nos abandona.

1. Tintin In Tibet
2. Distortion
3. Now Only
4. Earth
5. Two Paintings By Nikolai Astrup
6. Crow pt. 2

NOTA: 10,0
Lançamento: 16 de março de 2018
Duração: 43 minutos e 43 segundos
Selo: P.W. Elverum & Sun
Produção: Phil Elverum

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