OS DISCOS DA VIDA: CLANDESTINAS

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“Treze canções sinalizam um caminho e quem o percorre vai, aos poucos, conhecendo melhor a banda Clandestinas, suas bandeiras de luta e seu modo de fazer arte. Este é um álbum conceitual e algumas paisagens podem ser reconhecidas ao longo da travessia. Vozes ecoando inquietações feministas numa perspectiva interseccional, dores, abusos e denúncias por uma sociedade mais justa, formas de amar fora dos padrões hetero-cis-normativos, gritos de luta e resistência. E como a jornada é transformadora, os passos de quem a aprecia vão construindo, de forma autônoma, suas próprias veredas libertadoras” – a descrição do primeiro e, até aqui, único disco da Clandestinas, mostra que não há discurso clandestino dessas artistas que levam o termo “engajamento” como meio de vida.

Lutar é, pra alguns, sobrevivência e “Clandestinas”, o álbum e a banda, mostra bem isso (ouça o disco na íntegra aqui). Gravado por Alline Lola (guitarra & voz), Camila Godoi (contrabaixo & voz) e Natalia Benite (bateria & voz) falam o que precisam falar. Pena que menos gente do que devia esteja disposta a ouvir. Mas a mensagem contestadora é assim, encontra menos ouvidos e mais resistência. Paciência.

O que não quer desistência. “Nenhuma A Menos”, como elas cantam (veja o ótimo clipe da canção abaixo), não é só poesia ou arte ou posicionamento. É ação.

Punk, cru, incômodo, acessível, pop, o som da Clandestinas é tudo e ainda é pouco. Mas é o suficiente pra elas darem o recado.

A banda surgiu em 2017 e apareceu um tanto temporão pros padrões – não são mentes jovens e adolescentes a empunhar instrumentos e bradar “contra o sistema”. Não: elas viveram, sentiram na pele (ainda sentem) e batalham a sobrevivência, especialmente a social, diariamente.

Idade pode dar um ganho: experiência. Com o tempo, o artista conhece mais música, mais sons, tem mais experiências, assimila mais do mundo. É isso que duas Clandestinas mostram aqui nesta sessão de “Os Discos Da Vida”: dez discos bastante distintos, que cobrem longo espaço de tempo, mas que possuem algo em comum, a necessidade de se impor como artista com voz, atitude e arte.

CAMILA GODOI (contrabaixo e vocal)

Miles Davis – “Kind Of Blue” (1959)
É graças ao jazz que, desde muito novinha, eu sempre desejei tocar contrabaixo e, infelizmente, somente aos quarenta e cinco anos de idade é que eu pude começar a aprender a arte dos graves num contrabaixo elétrico. Quando se faz aquela brincadeira “se você tivesse que ir pra uma ilha deserta e levasse um único álbum…”, certamente eu escolheria o “Kind Of Blue” como a companhia pros meus dias. Um álbum que já começa com um rife de baixo genial do Paul Chambers em “So What” e que termina com “Flamenco Sketches”, uma das músicas mais lindas que eu já ouvi. “Kind Of Blue” é o álbum da minha vida.

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Ouça “Flamenco Sketches”:

Secos & Molhados – “A Volta De Secos & Molhados” (1973)
Um álbum que se inicia com um dos rifes de contrabaixo que eu mais amo tocar, o da canção “Sangue Latino” e que, em plena ditadura empresarial-militar, trouxe canções como “O Patrão Nosso De Cada Dia”, “Primavera Nos Dentes” e a própria “Sangue Latino”. É simplesmente genial como o racismo estrutural e a sua expressão através da violência policial é descrita na canção “Assim Assado”. O álbum todo é uma obra-prima que eu sempre revisito.

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Ouça “Sangue Latino”:

Patti Smith – “Horses” (1975)
A capa deste álbum já é muito revolucionária por quebrar, à época, padrões machistas de expressões de gênero. E é um álbum que já começa pelo clímax, a canção “Gloria: In Excelsis Deo” e que contribuiu pra minha formação como punk. E, toda vez que me perguntam quem é a minha grande diva na música, eu respondo sem pestanejar: Patti Smith. Eu completo cinquenta anos, neste 2021, e o meu desejo é envelhecer como a Patti Smith. “Horses” é uma obra-prima e Patti Simith é a minha grande diva.

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Ouça “Gloria”:

The Clash – “Londo Calling” (1979)
Quando entrei na faculdade, em 1991, a canção “Should I Stay Or Should I Go” ainda era tocada nos momentos de clímax das festas universitárias, quando todo mundo ainda conhecia esta canção e começava a pular ao ouvir os seus primeiros acordes. Isso me levou a conhecer mais da banda The Clash e, quando ouvi uma fita cassete com o álbum “London Calling”, a minha vida mudou: se eu já amava, desde novinha, o som dos graves, ao ouvir o rife do contrabaixo na abertura da canção também intitulada “London Calling”, eu passei a desejar ser parte de uma banda punk. Este é um álbum duplo e todo ele é uma obra-prima.

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Ouça “London Calling”:

As Mercenárias – “Trashland” (1988)
Uma banda com mulheres. Uma banda com mulheres e com uma contrabaixista genial, a Sandra Coutinho. Uauuu! Eu também posso, mesmo começando a tocar contrabaixo aos quarenta e cinco anos de idade, integrar uma banda. Embora um outro álbum, intitulado “Cadê As Armas?”, seja mais conhecido (até porque é o único disponível em plataformas de streaming), pra mim “Trashland” é o melhor álbum da banda: é um álbum experimental, é um álbum genial. Infelizmente, só consigo ouvi-lo no YouTube. A capa do álbum é linda demais e é um disco que eu desejo ter em vinil. Pra mim, as linhas de baixo deste álbum são uma grande referência do papel do contrabaixo no rock.

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Ouça “Trashland”:

ALINE LOLA (guitarra e vocal)

Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Gilberto Gil, Tom Zé, Caetano Veloso, Rogério Duprat – “Tropicália Ou Panis Et Circenses” (1968)
Esse álbum é muito marcante na minha vida, lembro de ouvir pela primeira vez durante a faculdade de Artes Visuais. Eu estudava sobre Hélio Oiticica e sua obra, fiquei fascinade com aquela capa performática e cheia de simbolismos, e mais ainda ao ouvir pela primeira vez o disco, perceber a força da música e desse álbum dentro do movimento Tropicalista, com a contracultura nos anos 60, a mistura do rock, da guitarra, com a música popular brasileira. Foi ouvindo esse álbum que conheci melhor Os Mutantes e passei a amar a banda, “Panis Et Circenses” e “Bat Macumba” (esta última uma composição de Gilberto Gil e Caetano) são músicas muito revolucionárias! E uma das músicas que mais amo, “Baby”, com Gal e Caetano, faz parte também desse álbum sensacional!

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Ouça “Baby”:

Lauryn Hill – “The Miseducation Of Lauryn Hill” (1998)
Lembro de ter ouvido Lauryn Hill quando ainda fazia parte do Fugees, com a versão soul da clássica “Killing Me Softly”, e ficava hipnotizada com aquela voz… Mas foi ali no final dos anos 90, no começo da minha adolescência, que eu pirava com a MTV e os videoclipes, adorava assistir o famoso “TOP 10”, e lembro de ver o clipe de “Doo Wop”, aquela voz, aquela atitude, o clipe era muito foda, anos 60 e anos 90, música black, soul, R&B, rap, ver tantas pessoas negras cantando, dançando, lindes/lindas, era algo muito raro de se ver na TV. Lembro de ouvir depois “Everything Is Everything” com um beat pesado, incrível, que música! Esse álbum marcou muito mesmo essa fase da minha vida, principalmente pela “Ex-factor”, uma música absurdamente envolvente e com uma melodia linda, além de terminar com um solo de guitarra fantástico, que me deixou realmente apaixonade pela música!

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Ouça “Ex-factor”:

Cássia Eller – “Acústico MTV” (2001)
Cássia Eller marcou muuuito também a minha adolescência, mas numa fase em que eu comecei a gostar e ouvir muito mais rock’n’roll. Ver aquela mulher, com uma voz grave, meio rouca, lésbica, cheia de atitude, com uma performance de gênero contestadora, foi indescritível! Quando a Cássia lançou o “Acústico MTV” eu já tinha outros dois álbuns dela, o “Veneno Vivo” e o “Música Urbana” (que é uma coletânea). Dois discos excelentes, mas no “Acústico…”, ela conseguiu reunir músicas que eu já amava demais, como “Malandragem”, “E.c.t”, “O Segundo Sol” e ainda fez algo muito genial, ao criar novas versões das próprias músicas, além de trazer versões de músicas de outros artistas, como “Non, Je Ne Regret Rien”, da Edith Piaf; “Partido Alto”, de Chico Buarque; sem contar trazer Beatles e Os Mutantes também, além das participações especiais, como na belissíma “Relicário”, com Nando Reis, e “Quando A Maré Encher”, com Nação Zumbi. Esse álbum mostra a genialidade dela, o quanto ela percorria pelo rock, pela MPB, pelos ritmos regionais do Brasil… Nossa, como eu ouvi esse disco, tocou demais no radinho! (risos)

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Ouça “Malandragem”:

Radiohead – “In Rainbows” (2007)
Radiohead é uma banda que eu amo demais e em 2018 tive o privilégio de ir, com a Camila, no show deles em São Paulo. Que experiência inesquecível! Sou daquelas pessoas que sempre param tudo pra ouvir “Creep” e gritar o refrão loucamente, “But I’m a creep, I’m a weirdo” (risos). Mas esse álbum realmente é o que mais me capturou, principalmente quando assisti ao “In Rainbows From The Basement”… Não tem uma música desse álbum que eu não goste, são todas geniais, e é um álbum duplo! O vocal do Tom Yorke, as guitarras dele, do Jonny Greenwood e do Ed O’Brien são coisas do outro mundo, eu fico impressionade! Entre as músicas que eu mais piro estão “Weird Fishes/Arpeggi”, “Reckoner”, “Nude” e “House Of Cards”, que tem um videoclipe genial também. Radiohead é uma das bandas que mais ouço, que mais acompanhei os álbuns, eu sou fã demais!

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Ouça “House Of Cards”:

Elza Soares – “A Mulher Do Fim Do Mundo” (2015)
O que dizer desse álbum fenomenal da deusa Elza Soares? “Maria Da Vila Matilde” se tornou um hino da luta pelo fim da violência contra as mulheres. Esse é um disco que traz a força e poder das mulheres, que traz uma crítica social contundente e ácida, que fala daqueles/daquelas que estão na marginalidade, sobre as lutas, dores, amores e vivências que muitas/muites (pessoas negras, mulheres, não-bináries, LGBTs) vivem, sentem. “Mulher Do Fim Do Mundo” é uma música que me arrepia sempre que ouço: “Mulher do fim do mundo eu sou, eu vou até o fim cantar!”. A Elza Soares é pra mim uma das mulheres mais incríveis da música brasileira, uma das mulheres que mais admiro pela história de vida também, mulher, negra, periférica, artista, mãe, sobrevivente! A mulher do fim do mundo!

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Ouça “Maria Da Vila Matilde”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Borealis”.

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