OS DISCOS DA VIDA: MY NEW DEVICE

Tudo começou com a Sufrágio, em São Bernardo do Campo, ABC Paulista. Era uma banda ia na contramão das que se apresentavam naquela época, a segunda metade da década de 1980. Não era punk, não era metal, estava mesmo era ligada intimamente ao pós-punk inglês, principalmente o Joy Division.

Aí, vinte anos depois, a banda “virou” o My New Device, abraçando a causa do New Order (e do Happy Mondays), uma evolução até natural. Daí, que os irmãos Reinaldo e Ronaldo Andreatta e os companheiros Luiz Cannalonga, Fabio DeMartin e Emil Ayres já lançaram o disco “Pink”, em 2011, e estão sempre nos melhores palcos alternativos de São Paulo.

Uma trajetória que tem mais de vinte anos coerente e um perfil bem claro. Uma identidade que nasceu de vários caminhos, como mostra essa edição de “Os Discos da Vida”. Quatro dos cinco integrantes contam como moldaram seu DNA musical e como se firmaram como uma das bandas mais coerentes do cenário alternativo.

REINADO ANDREATTA (guitarra e vocal)

“Primeiramente quero agradecer ao Fernando pelo simpático convite pra participar dessa seleta seção. Ele sabe da minha admiração pelo Floga-se, um dos melhores sites brasileiros de música, junto do Scream and Yell, do amigo Marcelo Costa. Aliás, fica aqui um convite para os leitores do Floga-se: entrem na página do MyNewDevice, no Facebook. Lá tem umas demos do disco em fase de masterização. E, se gostarem, LIKE neles!”.

Gilbert O’Sullivan – “Back To Front” (1972)
Nasci no meio da música. Meu pai é um violeiro caipira notável e minha mãe era cantora de tanque, das boas. Então cresci nesse ambiente, com muita rádio popular. E a música que eu me lembro até hoje, de uma fase em que eu tinha perto dos quatro anos de idade, é “Alone Again (Naturally)”, do O’Sullivan Gilbert. Isso pra mim tinha uma energia diferente, que muitos e muitos anos depois entendi que foi o start da minha paixão pela música e cultura britânica. É essa a faixa que mudou minha vida, ainda pequenino.

Ouça “Alone Again (Naturally)”:

Novos Baianos – “Acabou Chorare” (1972)
Claro que ouvi muita coisa na infância: Elis Regina, me lembro do “Joga Bosta na Geni”, do Chico. Ouvi Elvis, Tonico e Tinoco e milhões de outras coisas. Ainda na infância, uma coisa que me lembro, e que também vai ficar na faixa e não exatamente no disco, é a música dos Novos Baianos, Preta Pretinha. Nessa época eu achava que o cantor estava dentro do rádio. Então isso me encantava. A imagem do Moraes Moreira era de um galã de novela. Depois ele saiu do rádio e vi que a beleza dele está nas melodias, mesmo.

Ouça “Preta Pretinha”:

The Smiths – “Hatful Of Hollow” (1984)
Aí, já vou pra adolescência, quando descubro o The Cure, a Siouxsie Sue, o Echo & The Bunnyman, o Joy Division/New Order e, claro, The Smiths. Aí, é covardia. A primeira vez que ouvi o Morrissey cantando e o Marr tocando aquela guitarra pensei: “tem algo diferente acontecendo no mundo e eu quero fazer parte disso”. No Brasil, os roqueiros ortodoxos só conseguiam enxergar a sexualidade do cantor, pra mim o menos importante em sua obra. O álbum que primeiro ouvi, comprado pelo Ricardo Mesquita, primeiro baixista do Sufrágio, foi o “Hatful Of Hollow”. De “Willian, It Was Really Nothing” a “Please Please Please Let Me Get What I Want” (música que me fez chorar como criança, nesse show recente do Morrissey), uma obra-prima.

Ouça “Willian, It Was Really Nothing”:

Ira! – “Mudança De Comportamento” (1985)
O Ira! Sempre foi minha banda preferida, no Brasil (pena que teve um interrompimento tão pouco nobre e com pouca inspiração musical). No começo ouvia-se influências do mod e a produção do Pena Schmidt, hoje considerada meio tosca, pra mim ainda soa genial. Por ser canhoto, me identifiquei com as batidas também canhotas do mestre Scandurra (assim como de Townshend e do Gang Of Four, Andy Gill). Esse álbum girou muito nas nossas pickups e pra mim ainda figura entre umas das maiores obras-primas do rock nacional. “Ninguém entende um modddd“!

Ouça “Como Os Ponteiros De Um Relógio”:

The Fall – “Bend Sinister” (2000)
O The Fall foi uma descoberta tardia. Nos anos 80, eu não conseguia me conectar com o som deles. Mas depois ouvi novamente e hoje me considero um dos maiores fãs dessa lendária banda de Manchester. Já tive o privilégio de vê-los ao vivo pelos festivais ingleses, experiência inigualável. Sensacional. Hoje também é menos relevante, o tempo faz isso com as bandas, mas mudou a minha vida com sua procura melódica diferente, uma estética propositadamente grotesca e uma pegada New Wave que é minha cara (sem falar na Briz que era minha musa, junto da Cindy Wilson, do B-52’s). Dá pra sentir o The Fall em pelo menos duas de minhas músicas: “Steps In The Fog”, do disco “People Are Just Some Part Of Your Head”, do Sufrágio, e “Falling Body”, desse disco do MyNewDevice, que está para sair.

Ouça “Bournemouth Runner”:

RONALDO ANDREATTA (bateria)
“Nunca fui muito ligado em fazer ou acompanhar listas elegendo os melhores na música, melhores discos, guitarristas etc. Mas houve alguns poucos discos que realmente mudaram minha maneira de ser, meu gosto musical e acredito, toda minha vida. Ai vai então, e segura que é eclético”.

Iron Maiden – “Powerslave” (1984)
Foi o primeiro disco que comprei na minha vida e o primeiro contato com o rock. Escutei “The Phanton Of tThe Opera” (que nem é deste disco), numa festa na casa de um primo, no carro do meu pai e aquilo me chamou muito a atenção. Fui até a discoteca na galeria ao lado do Shopping do Coração e comprei este que era o lançamento do momento. Nem existia rádio do rock. Iron é uma das minhas preferidas até hoje e consegui realizar um sonho de vê-los no Morumbi da última vez que vieram ao Brasil. Lágrimas e mais lágrimas de felicidade.

Ouça “Aces High”:

RPM – “Revoluções Por Minuto” (1985)
Foi um boom muito grande este LP, pois não havia cenário de bandas de rock naquela época e o RPM surgiu com músicas muito bem produzidas e com apelo muito pop. Logo as rádios só tocavam este disco. Lembro que no mesmo dia que cheguei com o LP em casa, minha mãe também tinha comprado. Foi o segundo disco que comprava na vida. Quase foi furado de tanto rodar no 3 em 1. No show do Aramaçam que fomos, houve muita histeria das fâs – e durou quarenta minutos apenas.

Ouça: “Revoluções Por Minuto”:

The Cure – “The Head On The Door” (2000)
Não era o primeiro disco do The Cure, mas foi um dos primeiros que conheci e achei genial pela textura que envolvia e fazia o ouvinte viajar, e pelas ótimas melodias do Robert Smith. Músicas como “In Netween Days”, “A Night Like This”, “Push” e “Close To Me” eram hinos na época que moviam aquela geração.

Ouça “A Night Like This”:

The Smiths – “The Queen Is Dead” (1986)
É até hoje um dos meus álbuns favoritos. The Smiths moveu uma geração e uma legião de fãs que perdura até hoje com o Morrissey. Quando víamos aqueles vídeos e aquela atmosfera envolvendo os shows ao vivo, achávamos que tínhamos nascido no país errado: por que não tínhamos nascido na Inglaterra? Ver o Morrissey ao vivo em São Paulo foi mais um sonho concretizado pra mim e quando ele tocou as músicas do Smiths, fomos remetidos há muitas lembranças dos anos 80.

Ouça “The Queen Is Dead”:

The Beatles – “Abbey Road” (1969)
Conheci The Beatles só nos anos 80. Que desperdício. Pra mim, a melhor banda de todos os tempos. Gênios, mestres criativos, inovadores, muita a frente de seu tempo. “Abbey Road”, na minha opnião, é a obra-prima do rock and roll. Vez em quando, adoro escutá-lo por inteiro no iPod, parece uma história contada, do começo ao fim, em seqüência. Quem ousaria inverter as ordens das músicas?

Ouça “Oh! Darling”:

EMIL AYRES (baixo)
“É difícil mesmo citar apenas cinco discos da vida. Acredito que a música tem o papel de refletir minhas emoções, sentimentos e conceitos em determinados momentos ou épocas da minha vida. Curto muito explorar esse universo único e infinito do ‘eu comigo mesmo’ sem pré-conceitos ou limites”.

Pink Floyd – “The Dark Side Of The Moon” (1973)
Diferente do Rey e do Ronny, não venho de uma família totalmente ligada à arte ou música, apesar de boa cultura. Devido a isso, minha primeira lembrança de contato com a música e o rock’n’roll foi justamente com esse disco, quando na infância eu e minha irmã passávamos nossas férias na casa dos nossos avós e meu jovem tio, “Wartão”, todos os dias nos acordava com a música “Time” tocando no último volume; e então passávamos toda a manhã ouvindo e curtindo muita música. Até hoje tenho aquela sensação de liberdade e alegria daqueles momentos.

Ouça “Time”:

Garotos Podres – “Mais Podres Do Que Nunca” (1985)
Pré-adolescência, entender toda aquela energia e mudanças na minha vida, um novo universo de shows no centro de São Paulo, a vontade de dizer e expressar meus sentimentos, despertou a necessidade de fazer parte de algo. Nessa mesma época, em um festival no ABC, assisto a um show de uma banda que posteriormente eu viria a integrar, o Sufrágio e, hoje, o My New Device.

Ouça: “Johnny”:

Talking Heads – “True Stories” (1986)
Não tinha festa que eu não tocasse esse disco, uma energia fantástica. Pra mim, era nítido o estilo artístico novaiorquino naquelas canções, que me apresentava uma nova abordagem musical. Um trabalho com ousadia e diferentes elementos em busca de um resultado e conceitual. Manja “arte moderna”?

Ouça: “Love For Sale”:

Radiohead – “OK Computer” (1997)
Para mim, esse disco tem a perfeita harmonia entre tecnologia e sensibilidade, a capacidade de explorar os recursos tecnológicos sem perder a essência e melodia do bom rock’n’roll de uma forma atual, uma das melhores coisas que já ouvi.

Ouça na íntegra:

The Jesus & Mary Chain – “Psychocandy” (1985)
Sempre gostei de músicas que carregam consigo uma identidade própria. Pra mim, esse é a o verdadeiro valor da música: um mix de texturas, timbres, sensibilidade e, claro, muita personalidade.

Ouça “The Living End”:

LUIZ CANNALONGA (guitarra e teclado)

The Beastie Boys – “Check Your Head” (1992)
Eu tocava funk/metal/hardcore nessa época, socando e estalando as cordas do baixo, sustentando bases de guitarra pesadíssimas e rápidas… Mas no meio do caminho, apareceu meu velho amigo e camarada de banda Anderson Mattiello… E me mostrou esse divisor de águas. São sons, vozes, ritmos, texturas, sobreposições, barulhos, experiências, e muita, mas muita paulada hip-hop, do jeito que ninguém ainda teve culhão pra produzir, com um peso quase insustentável.

Ouça: “So What’Cha Want”:

Pixies – “Come On Pilgrim” (1987) / “Surfer Rosa” (1988)
Toda a minha fase pré-adolescência eu ouço aqui. Tambem das mãos de Reinaldo, Ronaldo e Fábio. Cada som daqui tem a cara destes caras. E quanto à música em si, é de uma visceralidade diferente do punk, mas muito mais honesta no ‘do-it-yourself’. A redefinição do som californiano tão diversificado foi feito em (boa) parte por estes doidos.

Ouça “Caribou” (de “Come On Pilgrim”):

Patife Band – “Corredor Polonês” (1987)
Na segunda metade dos anos 1980, uma época de loucas transições rolando por essas terras (política, cultura, comportamento, etc.), o meu grande Reinaldo Andreatta me aparece um dia com esse disco. Ao ouvir, na minha cabeça, eu via a síntese de dois mundos tão distantes… O do punk, com sua energia e revolta viscerais, e o jazz erudito na complexidade de harmonias, escalas, dodecafonia, e toda aquela vanguarda recém iniciado por estas bandas por gente do calibre de Arrigo Barnabé (não por coincidência irmão do Paulo, fundador do PF). Essa obra me derrubou aquela ideia antiga do punk, que pressupunha que atitude é barulho, e energia são três acordes. Eles musicalmente batiam mais forte e cortavam mais fundo, e eram complexos como os mais intrigantes compositores eruditos, como Stravinski e Schönberg. Enquanto que o punk pra maioria era anti-sistema capitalista, o som do Patife Band era muito mais por dentro dos problemas do sistema… Era urbanamente neurótico. E no som deles eu enxergava essa urbanidade paulistana. A identificação foi imediata.

Ouça “Tô Tenso”:

Queen – “A Night At The Opera” (1975)
A primeira banda de rock que ouvi na vida, aos seis anos, através de meu irmão Mauro Cannalonga. Foi amor imediato ao estilo. Fui massacrado por essa obra-prima já na primeira música, que dispara escárnio e sarcasmo odiosos à uma traição escabrosa. E vai dizer que isso também não é punk? Bem, mas só com dez anos de idade eu ouvi este clássico. E confesso que, fora a energia pulsante em cada faixa, até hoje não o entendi por completo (e acho que ninguém), por isso ouço-o tanto ainda. A união mais que perfeita de músicos, cantores, compositores, vontades, produtores, tempos, lugares… Só o que concluí até o momento é que gênios não nascem o tempo todo, e que estamos inclusive em fase de recesso de genialidade no mundo. Porque The Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd e Queen já aconteceram, e não acabaram de acontecer ainda. Nem vão!

Ouça “You’re My Best Friend”:

Massive Attack – “Mezzanine” (1998)
Eis a descoberta de um som sombrio e rastejante, indicado pelo Fabio DeMartin. Confesso que me assustei ao ouvir a primeira vez, mas convenhamos que o medo também seduz. E me seduziu definitivamente. Ainda o ouço como se fosse um lançamento, e tento traduzi-lo em cada camada de som. Embora eu tenha o Kraftwerk como os senhores absolutos e definitivos da música eletrônica, o “Mezzanine” ainda é uma de minhas mais fortes inspirações.

Ouça “Teardrop”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Katty Winne”.

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