PENSE OU DANCE: A CULTURA VALE

É curioso e uma vitória de uma geração: há dezoito anos o brasileiro não sabe o que é inflação anual acima de dois dígitos percentuais (exceção de 2002, com 12,53%).

O que é pra se comemorar, porém, também tem seus efeitos colaterais: a falta de memória de tempos difíceis, como os que duraram de 1980 a 1994, acabou afetando o julgamento e visão social de alguns.

Pra se ter uma ideia da tragédia daqueles tempos duros, a inflação de 1979 ficou em 77,21%. O fim do último governo militar fechou 1985 com incríveis 235,11% de inflação. Veio o Plano Cruzado, cortou-se três zeros da moeda, o cruzeiro virou cruzado, os salários e preços foram congelados, e mesmo assim o primeiro ano do governo Sarney fechou com 65,04% de variação de preços.

E ia piorar.

Em 1989, a inflação encerrou os doze meses com o índice de 1.782,90%; veio o governo Collor, mais congelamento de salários e preços, confisco de caderneta de poupança (a ideia era tirar dinheiro de circulação), novas mudanças de moeda, cortes de zeros (o cruzado já havia virado cruzado novo, que virou novamente cruzeiro e, em 1993, vira cruzeiro real), e 1993 bate recorde de inflação, com 2.780,6%. Você tem ideia do que é isso?

Isso quer dizer que se você recebesse CR$ 1000,00 (mil cruzeiros reais) de salário, na manhã seguinte esses mil valiam CR$ 923,80, e no outro dia, CR$ 853,40. Ou seja, em dois dias, úteis ou não, você perdia quase de 15% do seu salário, sem fazer nada. O salário mínimo de dezembro de 1993 era CR$ 18.760,00. O de novembro era CR$ 15.021,00. O de janeiro de 1994, CR$ 32.882,00. Como viver ou planejar uma vida assim?

Simples. Se você tinha um pouco de dinheiro, bastava deixar em aplicações (como o famoso FAF, Fundo de Aplicação Financeira, que qualquer banco oferecia) e torcer pra não precisar da grana. Nessas aplicações a inflação era praticamente anulada pelos rendimentos. Mas isso era apenas pra quem podia guardar dinheiro, pra quem ao final do mês sobrava algum. O que sabemos é pra uma minoria – ainda hoje.

Durante todo esse tempo, estima-se que 90% da população brasileira não tinha acesso a produtos básicos de sobrevivência (os que compõem a “cesta básica”). Nove em cada dez brasileiros não podiam competir com a inflação e planejar sua vida pra comprar bens de consumo que hoje são comuns.

O problema é que em economia há um fator que foge à matemática. É o psicológico. Pior: o psicológico da massa. As pessoas precisam acreditar que aquele papel, que chamam de moeda, tem algum valor e que esse valor será o mesmo amanhã ou depois. É um dos motivos pra se cortar zeros de uma moeda e mudá-la de nome. Quanto com menos dinheiro você precisar comprar alguma coisa, melhor. E esse “menos” é um valor percebido.

Veio o Plano Real e o governo Fernando Henrique conseguiu domar o problema. De 1995 a 2002, foram sete anos de inflação baixa, “educando” as pessoas do valor do real, a moeda. Mas não bastava colocar a economia nos trilhos, era preciso fortalecê-la. E uma boa saída pra isso é colocar gente pra consumir, algo que o Brasil tinha de monte: 90% de sua população.

O governo Lula tratou de dar uma força. Criou seus programas de distribuição de renda (“criou” é discutível, dirão os torcedores dos outros partidos, mas ideia aqui não é puxar o saco desse ou daquele presidente). São programas que muita gente chama de “assistencialistas”, e começou a injetar dinheiro nessas famílias que sempre viveram à margem da economia.

Uma série de medidas estruturais nesses dezesseis anos de FHC e Lula contribuíram pra que boa parte dessa massa acabasse empregada, com renda mensal, e que o dinheiro injetado via bolsa-família, bolsa-escola etc. pudesse se transformar em consumo de fato. Melhor do que isso: uma massa de pessoas ganhou confiança no valor daquele dinheiro; o que ele valia ontem, vale hoje, e no ano seguinte tem certeza que perderá bem pouco do seu poder de compra.

Assistimos o fortalecimento da musculatura das classes C e D. Mas ainda é pouco, segundo o governo. É preciso dar acesso não só ao consumo básico, alimentação e supérfluos, como à cultura.

Nesse sentido, em 27 de dezembro de 2012, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que cria o Vale-Cultura, uma lei que não se assimilou ainda, não gerou discussão como deveria, e os narizes da geração-sem-inflação, a geração mimimi, se retorceram, como retorcem a toda medida que julgam “assistencialista”. É uma visão de quem sempre teve tudo, nunca ficou à margem do básico.

É um projeto simples até. Dá um cartão carregado com R$ 50,00, todo mês, ao trabalhador CLT que ganha até cinco salários mínimos – pouco menos de três mil e quinhentos dinheiros – pra ser usado em consumo de “cultura” (cinema, teatro, DVDs, livros, CDs, jornais, shows etc.). Desses R$ 50,00, a empresa poderá descontar R$ 45,00 do imposto de renda. É um benefício fiscal.

É pouco, na verdade, no valor e na quantidade de pessoas atingidas. Segundo o Caderno G da Gazeta do Povo, do Paraná, “o estudo que embasou a criação do Vale-Cultura calcula em 44 milhões os trabalhadores com empregos formais. Destes, 38 milhões ganham até cinco mínimos e teriam, em tese, direito ao Vale-Cultura. Mas, para serem elegíveis para o benefício, os trabalhadores têm de ser empregados de empresas que se enquadrem no chamado regime de tributação do lucro real, em geral aquelas cuja receita bruta supera R$ 24 milhões por ano. Cerca de 200 mil empresas – 50% sediadas na região Sudeste, sobretudo no Rio e em São Paulo – enquadram-se nessa categoria, entre mais de três milhões de companhias existentes no país. Essas grandes companhias empregam 17,8 milhões de trabalhadores, que formam o total de elegíveis para o Vale-Cultura”.

Mas como não é obrigatória a adesão ao programa, o trabalhador empregado numa empresa que não aderir, não terá direito ao benefício. O empregado também não é obrigado a receber o benefício (se o fizer, tem que pagar até 10% de desconto, como tarifação). Então, na prática, muito menos gente deve ser atingida pelo programa. Nem o Ministério da Cultura sabe ao certo, como deixou claro a ministra Marta Suplicy ao IG: “não trabalhamos de jeito nenhum com esse número (de 17 milhões). Trabalhamos com muito, muito menos”. A estimativa de gastos do governo, com emissão de cartões, estruturação do programa e incentivos, é de R$ 500 milhões.

Não existe montante que seja considerado alto pra investir em cultura. Existe montante que pode ser investido de maneira errada em cultura. É aí que pode estar o problema – não no “assistencialismo”.

A mesma Gazeta do Povo alerta pra um vício que as existentes leis de incentivo à cultura apresentam: “o Vale-Cultura deve reproduzir a desigualdade regional no consumo cultural já presente na Lei Rouanet. A região Sudeste se beneficia de 67% do total de recursos isentos de impostos por meio da lei de incentivo federal”. Basicamente porque as grandes empresas estão no Sudeste. A desigualdade é econômica e estrutural.

Mas o problema maior está na mecânica do benefício. Por ser um cartão magnético, como os de débito e crédito que você está acostumado, é preciso ter uma rede que suporte o recebimento do dinheiro ali armazenado. O Vale-Cultura é um cartão de débito (os créditos são debitados a cada compra) e é recarregável, de modo que precisa de uma estrutura pra funcionar, como das redes VISA e Mastercard. Se for utilizado uma dessas, e o governo ainda não especificou como serão debitados os créditos, nada garante que o dinheiro carregado nos cartões será efetivamente utilizado pra produtos culturais. Aliás, nem se especificou o que são “produtos culturais” com exatidão.

Todos nós conhecemos o jeitinho brasileiro, certo?

Há alternativas, como os cartões de vale-alimentação e vale-combustível, que construíram rede própria nos pontos de vendas, com máquina específica pra débito. Mas não deve ser o caso do Vale-Cultura, o que deixa margem de dúvidas quanto à sua utilização.

Tem também o problema do valor. A própria ministra concorda que por conta da demora da aprovação da lei, os R$ 50,00 perderam poder de compra diante dos preços praticados no mercado. O trabalhador deveria acumular alguns meses pra comprar determinados produtos (um ingresso pra teatro em São Paulo pode custar R$ 60,00 ou R$ 70,00 nas peças mais disputadas): “realmente tem uma defasagem. Mas nós fizemos bem o cálculo. Se fôssemos ampliar, sairia bem mais caro”.

E, por fim, tem a questão da continuidade. Até quando esse programa (e outros de distribuição de renda) são efetivos sem serem absorvidos e compreendidos como “salário”?

Sim, há problemas. Mas a ideia é pra se aplaudir: distribuir renda também a partir da cultura. E incentivá-la na produção (criar uma massa de consumidores deve estimular e popularizar a produção), no consumo e, mais importante, fazer dela um hábito de consumo pra além do próprio benefício.

Pra quem viveu tempos horrendos de inflação, sem saber quanto custaria o pão no dia seguinte, essa é uma notícia pra abrir sorrisos. É gratificante. Mas, ao mesmo tempo, como em tudo ligado aos nossos governos, é algo pra ficar de olho, fiscalizar, e jogar ovos e tomates se o foco for desviado, mesmo a gente sabendo que “falta cultura pra cuspir nessa estrutura”.

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