PENSE OU DANCE: ANITTA NA ABERTURA DAS OLIMPÍADAS

Texto: Carlos Lopes

Quatro anos atrás, em 2012, Londres oferecia ao mundo uma das cenas mais emocionantes dos últimos tempos. Logo após a pira olímpica ser acesa, no Estádio Olímpico de Londres, Paul McCartney vai ao centro do estádio e interpreta “Hey Jude”, dos Beatles. Oitenta mil vozes cantaram o “na na na na” manjado da canção – bilhões viram tudo pela televisão.

Nas redes sociais e pelas ruas do Brasil, a grande questão: o que o Rio de Janeiro iria apresentar ao mundo, em 2016? A hora chegou, mas essa certamente não é “a grande questão”. É outra: por que o brasileiro ainda despreza e desmerece o gosto dos outros baseado no seu próprio gosto artístico?

A Inglaterra, bem como os Esteites, está no topo da pirâmide do imperialismo cultural. A larga escala de alcance de suas produções artísticas, em todos os mercados do mundo, deixa o Reino Unido em boa vantagem na percepção, no ideário cultural mundial: língua, música, cinema, teatro, literatura.

Shakespeare, J. K. Rowling, Arthur Conan Doyle, Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, Smiths, Clash, Sex Pistols, etc. e muitas outras eteceteras colocaram os organizadores de Londres em uma boa posição pra criar o evento de modo que ele fosse facilmente compreendido e recheado de símbolos pop identificáveis por todo mundo.

(o vídeo é realmente emocionante!)

O Rio de Janeiro não goza de tal vantagem, apesar do samba ser amplamente conhecido, ter Carmen Miranda, os Mutantes, a Bossa Nova, Tom Jobim e Vinícius de Morais, Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sergio Mendes, Sepultura, “Ai, Se Eu Pego” ter percorrido o mundo com sucesso etc. etc. etc.

Dia 5 de agosto, acontece a abertura das “nossas” Olimpíadas (assim mesmo, entre aspas). A organização divulgou os primeiros nomes a participar da festa: Caetano Veloso, Gilberto Gil e… Anitta.

A empáfia do brasileiro-superior começou a pipocar nas redes sociais: “‘diga-me quem abrirá sua Olimpíada e eu te direi que és… Se os ingleses têm Paul McCartney, nós temos Anitta’, escreveu uma pessoa no Twitter. ‘Anitta na abertura da Olimpíada: já teremos o primeiro 7 x 1’, disse outro”, aponta a matéria de O Globo.

Esse posicionamento, apesar de ser defendido como um “traço cultural do brasileiro”, de fazer graça com tudo, inclusive consigo mesmo, mostra um ranço preconceituoso com tudo o que reflete as preferências de consumo e culturais das classes menos favorecidas do país – embora não sejam só elas que consomem tais produtos e a música de Anitta. Recentemente, com a morte de um ídolo sertanejo, o mesmo quadro de ignorância foi pintado (leia aqui).

Tô escutando muito esse mimimi que a Anitta representa a “sociedade de consumo”, a falta de informação, a sexualidade exacerbada, o baixo estímulo a outras formas de cultura. Pois é. Ela representa tudo que o país fomenta há anos e anos. Ela é nosso reflexo. Ela é o que somos como povo – e aqui não faço nenhum juízo de valor.

As pessoas consomem o som de Anitta, seu estilo. Param o dial na estação que toca suas músicas, não trocam de programa na TV. Ouvem, vão aos shows e pedem bis. E não só pra ela. É pro funk, pro sertanejo, pra música romântica, pro forró. As pessoas mudam de artista e gênero, mas fica a intenção de uma música fácil, divertida, escapista.

Temáticas de amor traído, safadeza, bebedeira, reboladas, sexo, mulher-objeto são repetidas incessantemente nos canais de rádio e TV nos últimos trinta anos: os temas são os mesmos; as letras, idênticas; os produtores e gravadoras idem – que vêm e vão com a enxurrada.

É o povo quem pede. E o povo somos eu, você e todo mundo. É só voltar na linha do tempo. Em 1998, as nacionais mais tocadas foram “A Dança Da Sensual” (ouça) e “Aviãozinho” (ouça), ambas da Banda Cheiro de Amor, seguidas pelos hits “Carro Velho” (ouça), “De Ladinho” (ouça), ambas da Banda Eva. No ano seguinte, engolimos “Xibom Bombom”, da banda-de-proveta As Meninas (ouça). E esse é só um recorte de dois anos. A nossa música realmente pop, do axé ao sertanejo, tem centenas de exemplos. Calhou de nos anos recentes ser Anitta.

Neste mês de julho, o site Top10mais.org registra as músicas mais tocadas do país, dando um recorte da preferência nacional: “Dá-lhe Porrete” (Benjamim Neto), “Seu Polícia” (Zé Neto & Cristiano), “Infiel” (Marília Mendonça), “Pronto Falei” (Eduardo Costa), “Medo Bobo” (Maiara & Maraísa). Em 2015 o hit foi “Aquele 1%” (Marcos e Belutti, com Wesley Safadão) e 2014 o povo brindou o sertanejo como o gênero mais tocado nas rádios nacionais – 2011 foi o ano do “Ai, Se Eu Te Pego”, de Michel Teló.

Anitta aparece na lista atual com três faixas, “Essa Mina É Louca” (ouça), “Cravo E Canela” (ouça) e o megasucesso “Bang”. O que ela tem demais? Nada: é idêntica à pegada de qualquer dessas divas gringas que vendem à rodo (de Beyoncé à Shakira, de Britney à Rihanna): tem uma ginga discutível, é bonita, tem apelo sexual, faz músicas dançantes-com-algumas-baladas, fala de amor, da força da mulher, trabalha pacas, derrama litros de suor, vende estilo, e só se mostra legitimamente brasileira porque canta em português, a despeito do inglês predominante em suas pares gringas.

Ela é uma febre. Em tempos que discos não vendem mais, ela vendeu de seus três discos mais de meio milhão de cópias, trezentas mil só do disco mais recente, o terceiro, “Bang!”, de 2015. Tem álbum triplo de ouro e duplo de platina. É a artista que mais se manteve no topo do iTunes no país, foi eleita pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) como revelação do ano na música em 2013 e é a primeira artista brasileira a vencer o prêmio EMA (Worldwide Act Latin America). Pra falar o mínimo.

Podemos questionar as referências e preferências das pessoas, mas dizer que Anitta não é cultura é bobagem. Dizer que qualquer artista ou expressão não é cultura é de uma pretensão dispensável e melancólica. É uma arrogância que vem lá de longe, a velha história do “complexo de vira-lata“. Anitta é cultura… Pode não ser a minha cultura, mas é cultura, é produto, é brasileira, e está no topo da cadeia musical nacional.

Esse currículo lhe dá crédito pra abrir as Olimpíadas? Como expoente cultural, certamente não. Ela é um reflexo do “imperialismo cultural anglo-saxão” recebido, mastigado, digerido e reaproveitado. Como intenção pra festa, pra alegria, pra empolgação, porém, talvez não haja nome melhor (bem como Claudia Leitte, Ivete Sangalo, funkeiros e sertanejos). E, afinal de contas, além da abertura das Olimpíadas ser uma chance de mostrar ao mundo o que o povo anfitrião é, com sua cultura legítima (no nosso caso, das tribos e línguas indígenas que não nos importamos em assassinar, aos povos periféricos com suas expressões culturais – incluindo o funk ostentação – que não nos importamos em desprezar preconceituosamente; passando pelo samba, arrocha, maracatu, carimbó e dezenas de outras manifestações), é também uma grande festa, é pra divertir – há de se ressaltar que faz parte do traço cultural brasileiro ser festivo, alegre, acalorado.

A escolha de Anitta, nesse caso, é oportuna. Ela é um dos símbolos da música pop brasileira atual, e você não precisa gostar da arte dela, nem do que ela representa, não é disso que se trata.

Dia 5 de agosto de 2016, o Maracanã estará lotado pra abertura das olimpíadas e cinco bilhões de telespectadores ao redor do mundo vão assistir à festa brasileira. Com Caetano Veloso e Gilberto Gil – estes que destilam ano após ano seus discípulos do dendê em tchans, axés, ivetes e oloduns, tão característicos de nossa música brasileira no topo das paradas nas últimas três décadas – e com Anitta.

Não importa o rótulo. Foi o brasileiro – eu e você incluídos, querendo ou não – quem preparou a Anitta como uma das representantes oficiais da música e da cultura brasileiras. Agora, não queira quebrar seu próprio espelho.

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