RESENHA: ARCADE FIRE – REFLEKTOR

SEMPRE HÁ DOIS LADOS

“Eurídice e o verdadeiro amor, o vencedor, por aclamação geral”. O trecho do samba da Viradouro de 1998, que adapta “Orfeu Da Conceição”, de Vinícius de Moraes, obra escrita em 1954, resume bem o que o autor clamava sobre o amor verdadeiro, que sempre sai vitorioso, mesmo quando confrontado pela inveja ou… pela morte:

“São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.”

O Orfeu da mitologia grega era um rapaz que encantava a todos pela música de sua lira, incluindo plantas, animais e até pedras. Ele vivia desse encantamento que sua música causava. Um dia, apaixonado por Eurídice, acabou conhecendo a dor e o desespero: ela, fugindo dos avanços do pretendente Aristeu, foi picada por uma serpente e morreu. Orfeu, doído, resolveu ir ao “outro lado” buscar sua amada. No caminho, encantou o barqueiro Caronte pra que ele o guiasse pelo mundo das trevas, e enfeitiçou Hades e sua esposa Perséfone, senhores dos desprovidos de vida, de modo que conseguiu o impossível: o privilégio de levar sua amada de volta ao mundo dos vivos – desde que não olhasse pra ela até a superfície.

Orfeu, porém, nos últimos passos, olhou pra trás, pra certificar-se de que ela estava lá. Eurídice estava, mas acabou voltando ao reino dos mortos, desencantada. Orfeu chorou, sucumbiu à solidão e acabou ofendendo as Mênades com seu desprezo. Elas o cortaram e jogaram seus restos no rio. Orfeu volta ao reino dos mortos agora como morto e pode rever Eurídice. O amor vence, mas “do outro lado”, pela persistência, onde nem a morte por interferir.

Vinícius traduziu o mito pras favelas cariocas (uma “tragédia carioca em três atos”). Simplificou tudo: levou Orfeu, Eurídice, Apolo e Aristeu pra favela; a lira virou violão; a música, carnaval; as tentações, a vida mundana. Tudo se passa num feriado de Carnaval. O final é trágico. Mas o samba acaba vitorioso. A música é de Tom Jobim. Virou filme, pelas lentes do diretor francês Marcel Camus, Orfeu Negro, lançado em 1959, culminando com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 1960 (a “lingua estrangeira” é o português). Foi a melhor tradução do mito pra vida urbana e moderna – compreensível a todos os públicos, inclusive os não-brasileiros.

O Arcade Fire sabe disso. “Reflektor”, o novo disco, inspirado no mito, ideia explícita logo na capa (horrorosa), com a escultura “Orphée Et Eurydice”, de Auguste Rodin, não tenta medir forças com a obra do brasileiro. Ao contrário, foge de sua imaginável influência ao não assumi-la como norte principal e verbalizar que os fundamentos de “Reflektor” estão nos pensamentos do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, que diz que o homem vive uma época sem paixão, só de reflexão. De um lado do espelho, a razão; do outro, a paixão. Sempre há dois lados.

Por outra, os canadenses se apropriam de “Orfeu Da Conceição” visual e estruturalmente, com sua simplicidade, buscando o mais importante na história: a força do amor, a conexão de duas vidas pelo sentimento, não importa em qual “plano” seus protagonistas estão.

O Orfeu e a Eurídice do Arcade Fire já estão separados. Ele vivo, em dor. Ela morta. Mas um é reflexo do outro. Orfeu tenta encontrar sua amada “do outro lado”. “Reflektor”, a canção, é esse ponto de partida (“I thought I found a way to enter / (…) / Will I see you on the other side?”). O mito que vem antes acontece numa estranha escolha de “faixa escondida”, instrumental, de quase dez minutos precedendo a faixa inicial. É uma história que a banda entende que o ouvinte já conheça.

Vídeo oficial de “Reflektor”:

Ns faixa-título, a banda já dá o tom de como vai ser a narrativa: festiva, alegre, mundana. É como a de Vinicius, trocando o samba pela eletrônica, uma eletrônica hipnótica, com baixo marcante e percussão dividindo o protagonismo com a bateria, eletrônica ou não.

Há quem diga que essa é a mão do produtor James Murphy, tratando o Arcade Fire como seu LCD Soundsystem. Mas parece ser uma escolha consciente da própria banda – e aí a escolha de Murphy como produtor viria pra sedimentar o caminho pretendido, se tornando, enfim, a escolha ideal.

Na impossibilidade de assumir uma linha estética que desse a mesma força que a música de Vinicius de Moraes e Tom Jobim deu à peça, onde a lascívia dos tambores e tamborins reforça uma lógica trágica de que o amor só vence fora da “normalidade” (nem que seja em rituais tribalistas, tântricos ou, sei lá, em “outro plano”, mas nunca “nessa vida”), o Arcade Fire misturou ritmos e batidas, juntou tudo eletronicamente, e trouxe os sons do seu Haiti (país de origem da família de Régine Chassagne), da África, do Brasil, do Caribe, como maneira de traduzir a vida mundana e irreal, onde residiria o triunfo do amor de seu Orfeu e sua Eurídice.

Mas infelizmente há uma falha de prática em “Reflektor”. O excesso de produção levou o disco pra uma direção cruel. Reside na obra um ranço brega-chiqué que povoou as piores FMs dos anos oitenta e os comerciais pseudo-elegantes da era yuppie. A levada de “We Exist” tristemente remete ao pior de Madonna ou de Michael Jackson diluído no mainstream daquela década. “Joan Of Arc” é esquecível. “You Already Know” é pior: podia ter sido criada e executada por uma banda carioca daquela década, de bermudas e óculos de sol. O horror, o horror.

Sorte é que logo “Reflektor” volta a sua trilha, com as espetaculares “Here Comes The Night Time” e seus batuques sombrios, e “Normal Person” (com uma letra matadora de direta: “Is anything as strange as a normal person? / Is anyone as cruel as a normal person?”). A “apresentação ao vivo” que se encerra em “You Already Know” são os encantos musicais do protagonista? Bom pensar que sim, retomando o prumo.

Ouça “Normal Person”:

Assim, o álbum duplo chega a sua metade. Com o disco dois, a trilha de Orfeu toma os rumos da esperança (“Awful Sound (Oh Eurydice)”), depois apresenta o deslize e o desespero pela nova separação (“It’s Never Over (Hey Orpheus)”), vem a tragédia proveniente da recusa de Orfeu em viver e ser homem (“Porno”), sua morte (a ótima, uma das melhores do disco, “Afterlife”) e, finalmente, o encontro com Eurídice na lidnissima “Supersymmetry”, uma das mais tocantes músicas da carreira do Arcade Fire.

Com o passar do tempo, a pretensão conceitual de “Reflektor” pode jogar contra o disco, como jogou contra “The Suburbs”, o anterior, de 2010, que segue envelhecendo e se enrugando de maneira implacável. Mas, por ora, o disco só melhora a cada audição.

Vale ouvir como um álbum conceitual mesmo, como uma história, mesmo que o mito já seja bem conhecido. O Arcade Fire não foi tão feliz quanto Vinícius de Moraes na adaptação, embora siga caminho semelhante. Se você não tem saco pra essas pretensões intelectuais, ao menos poderá perceber que a essência do Arcade Fire está lá, pro bem ou pro mal. Depende de como você vai encarar o disco: com a paixão cega ou com a razão – afinal, sempre há os dois lados.

NOTA: 7,0
Lançamento: 28 de outubro de 2013
Duração: 70 minutos e 19 segundos (sem as faixas escondidas)
Selo: Domino Records
Produção: James Murphy, Markus Dravs e Arcade Fire

Leia mais:

Comentários

comentários

Um comentário

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.