RESENHA: CADU TENÓRIO – MONUMENT FOR NOTHING

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“Na hora, seus gritos se ativeram à repetição de uma única e insana palavra, de uma fonte muito bem conhecida: ‘Tekeli-li! Tekeli-li'” (H. P. Lovecraft).

A delicadeza que enuncia os primeiros nomes, que constituem uma espécie de biografia afetiva de Cadu Tenório, traz algo de estranho; uma voz computadorizada, ou alien, que certamente não é “deste” mundo, embora com certeza produzida com mecanismos tecnológicos dispostos neste tempo, neste planeta.

O declínio no absurdo reverbera como uma manipulação hipnótica, mas essa hipnose é proporcionada pelo tão celebrado real, como se seu eixo fosse o ponto mais desconfigurado. Acontece assim: você entrevê a queda e se atenta pro ponto nebuloso na caída. Esta pode ser em espiral ou vertical, mas você não a percebe como um movimento porque o ponto de perspectiva é algo inalienável de sua própria essência. Você sacode o corpo pra tentar se livrar do desconforto, mas não é que ele o persegue, ele, de alguma maneira, é você.

Como se em meio a alguma gargalhada, o farfalhar das folhas lhe convocasse; em “No Longer Human” (que pode ser uma referência ao romance “Declínio De Um Homem”), qualquer brecha é motivo pra um maravilhamento-estranhamento, uma sensação ambígua que nasce do nojo e da alegria simultaneamente. Mas não é possível dividir o corpo e atribuir a órgãos separados sensações conjuntas, os sintetizadores lembram que o tempo acelera pra algum rumo desconhecido, emergindo o espanto. As imagens desmancham-se (os teclados parecem querer fugir de uma homogeneidade), até mesmo a repetição está esgotada de sua forma unidimensional, é preciso quebrar tal vínculo (o humano) pra tentar ser outra coisa. Uma voz feminina repete “I am no longer human”. Uma questão pulula; “o que vem depois?”.

Há muitos sons no mundo e o que se espera é que, algum deles, materializado por alguém, possa manifestar, ainda que pouco, uma emoção internalizada. A esmagadora maioria dos sons, no entanto, são como construção de algo que só é possível ter uma premonição; há uma composição formal no disco que irrompe na forma sintática, resgatando referências e colocando-as no eixo criativo do compositor.

Em época que parece que apenas o vocabulário gamer passou a adotar frequentemente o termo ““imersão”, a proposta sonora do disco não desaponta nesse sentido; são sequências diversas que cristalizam um monumento difuso, que recebe melodias (Juçara Marçal) pra transformá-las em significante puro, carecendo de um conceito que determine o signo.

Pra tanto, o monumento de que o disco parece tratar é algo suspenso, uma autobiografia fragmentada, constituída por retalhos sonoros meticulosamente estruturados pra romper qualquer significação unidimensional. Mais do que “espertas”, as referências (que vão dos títulos das peças a colagens sonoras), intervêm na construção de uma identidade espelhada e, como um espelho, justaposta, sem horizontalidade linear.

As concepções de construção de identidade, mito e referência misturam-se pra edificar um projeto híbrido. O Mito de Cthulhu, de Lovecraft, surge (“Yog-Sothoth Is The Gate”) ao lado de outras entidades fictícias (ou não) pra propor uma narrativa de permanente assombro.

Apesar de ser impossível padronizar as músicas de Cadu em algum catálogo relacionável, a variação de repouso/dissonância transpõe, como a memória, a manifestação de dejetos que jamais seriam correspondências precisas (nem intencionam tanto) do trajeto de uma vida; como se os cantos escuros fossem a extensão de um impenetrável dia nublado, da distância física que funciona como materialização do colapso emocional.

Aliadas ao clima de decadência (que também é um microcosmo do mundo), as dores são tentativas de mergulho no inevitável, num processo de desunião que fragmenta a queda em reminiscências e criações, libertar-se de uma inominável presença pra caracterizar-lhe, ainda que de maneira sedimentada, obscura e nebulosa. Atuam sem uma autoconsciência hiper-racionalizada, mas como desabrochar que constitui um mundo novo de perdas a partir dos sons que brotam.

Pro músico, formular esses sons é intervir diretamente na sua constituição afetiva, comunicando a passagem de suas influências pra seus sentimentos, sua percepção do mundo influenciada e também influenciadora, ambas as instâncias em contínuas perpetuações uma da outra.

Se tais rastros se podem afirmar porque materializam-se com o disco, é porque os resíduos coletados em uma época de colapso, paradoxalmente, podem afirmar uma vida, ainda que através de dúvidas e indefinições, como se ouvir o álbum fosse a apreensão dum ponto de interrogação em contínuo desmanche.

A incerteza da afirmação consome as noites, distante dos terrenos claros em que as formas estão bem delimitadas; cada passo pra frente, são dois pra trás. Em busca de um momento que não existe mais, atrás do rastro de que uma vez foi força e vitalidade. Este não é um disco didático, mas seu conceito consiste numa enorme jornada de redescobrimento das instâncias originárias, da recriação de laços afetivos que garantam um enraizamento no universo constituído.

A grande ansiedade que reside no álbum (ouça aqui na íntegra) parece um reflexo das projeções mais realistas destes tempos. Ainda que as respostas surjam cada vez mais científicas, o que aguarda do outro lado não tem cura: o medo persiste. Mesmo que todas as portas estejam trancadas, mesmo que se more na rua mais segura de sua cidade, mesmo que seja jovem e saudável; há uma enorme massa obscura, indefinível, à espreita. E depois, nada.

NOTA: 9,5
Lançamento: 8 de junho de 2020
Duração: 88 minutos e 57 segundos
Selo: QTV
Produção: Cadu Tenório

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