RESENHA: JUÇARA MARÇAL & CADU TENÓRIO – ANGANGA

As evocações no início de “Anganga” são poderosas, elas invadem o ouvinte, afirmam que a dupla Cadu e Juçara está aqui pra fazer algo diferente.

Apesar do incrível resgate, vale lembrar que “Anganga” não é um trabalho somente acadêmico e histórico, mas é um passo importante pro desenvolvimento da música eletroacústica. Isso porque a manipulação de Cadu encontra na voz de Juçara uma aliada forte que poucas distorções no noise são capazes.

Devo dizer que sempre admirei o trabalho de Cadu, seus discos sempre estão nas minhas listas de final de ano, mas a humanidade dilacerante na voz de Juçara, combinada com esses segmentos abruptos de Cadu, me cria uma imagem que vai além da desolação/introspecção que os outros trabalhos do carioca me levavam. Embaixo dessa pele que ambientações são perfuradas por alguns elementos que sugerem música concreta, surge a cantoria de Juçara; ela traz mais que celebração, ela faz mais do que o retrato de uma época, ela é a própria marca pulsante do sofrimento e também da inventividade dos escravos.

Dada às desconstruções que Cadu e Juçara aplicam em cantos, essa repaginada não é apenas uma adaptação dos músicos aos estilos que eles representam – mas atravessamentos desse tipo, hoje, talvez só sejam relevantes no radicalismo com que ambos incorporam essa tradição em uma estética ruidosa. Eu realmente não acredito que há uma contradição na agressividade da música de Cadu com a melodia da Juçara. Ao mesmo que essa obra espanta por sua agressividade e seus cantos sofridos, eu sinto uma fragilidade em canções como “Taio”, algo está a ponto de se quebrar. A abordagem de Juçara dessas memórias aterroriza pelo sofrimento, mas também sai de um reducionismo pra evidenciar a complexidade das sensações. São fenômenos que, a partir desses cortes poderosos de Cadu, se manifestam em tempo histórico e tomam o espaço como uma apropriação necessária.

Além dessa realidade absurda que foi concebida pra construção inicial de tais canções, as figuras simplesmente “tradicionais” não seriam concebíveis pra tal representação. Semelhantemente à grande obra de Matana Roberts, a dupla opta na arte radical como única homenagem possível.

“Anganga”, ao lado do último disco da Elza (“A Mulher Do Fim Do Mundo”, de 2015), representa a virada que há anos é construída nos subterrâneos brasileiros (e talvez a junção de seus dois maiores vetores, o noise e a tão chamada “vanguarda paulista”), lançada por um selo que causa muita movimentação, especialmente em São Paulo (o Sinewave).

Como uma herança pode se manifestar sem soar datada e reducionista? Juçara e Cadu capturaram em revisitações de antigas canções brasileiras tão extremas em sua época pra pintar nossa modernidade de uma maneira tão radical quanto.

Vale lembrar que a escravidão não foi totalmente erradicada e que os direitos trabalhistas volta e meia são açoitados por uma elite feroz sempre bem representada no Congresso Nacional. Os ruídos urbanos de Cadu representam esse “hoje”, essa modernidade, o escravo cosmopolita cotidiano, amarrado à necessidades improváveis; enquanto Juçara se volta aos lamentos do passado. Ambos, o ontem e o hoje, andam juntos em “Anganga”, um livreto sobre o subterrâneo do chicote desde sempre. É um disco também político, crítico, desafiador e, claro, um desabafo. É uma obra pra todos os açoitados.

Ouça na íntegra:

Todas as abstrações de Cadu interagem em uma mecânica que, ao mesmo tempo em que nos faz imaginar o ambiente daquelas populações, não deixa de expressar a imposição forte do compositor. É um ambiente de Cadu e também é um ambiente daquelas pessoas. Isso pode ser observado em “Eká”, que é uma composição do carioca, em que a utilização de sonoridades obscuras desenvolve uma observação certamente empática em relação às músicas posteriores. Aliás, muito da importância da obra vem de uma canção inicial tão forte como “Eká”, que mostra, como mencionei anteriormente, que não é um trabalho somente estético e nem poderia ser – é um apelo de emoção e até de certa saudade.

Então, Cadu sai das abstrações sonoras apenas como método de arranjos, pra evidenciar que foi realmente atravessado pela obra. A música “Eká”, assim como “Taio”, são duas peças que representam uma sensibilidade empática do compositor e como ele realmente ficou comovido ao revisitar tais obras.

Com todas essas revisitações, não pensem que as construções de Cadu simplificaram-se – ainda tenho a impressão de corredores infinitamente distorcidos, a massa sonora intransponível ainda está lá, bem como os cortes abruptos e não lineares. E estas manipulações poderem contar com a entrega de Juçara é algo que demonstra a força da música brasileira (leia mais aqui).

A atmosfera do disco não é apenas uma poética de revisitação e homenagem – ela é o poder que tais revisitações causaram em dois dos artistas mais expressivos atualmente. Expressividade que constrói um álbum obsessivo e emocionante.

Se na primeira faixa tenho a impressão de estar num quarto sozinho, lá pela quarta já estamos num quarto tomado por espíritos, por ruídos e já temos que falar na primeira pessoa do plural. Porque é um disco nosso. É uma articulação que só faria sentido em 2015 e de qualquer forma só poderia ser feito em um ano tão específico como esse. É um grito de criatividade em um ambiente corroído em todas as esferas.

NOTA: 9,0
Lançamento: 6 de outubro de 2015
Duração: 27 minutos e 38 segundos
Selo: QTV e Sinewave
Produção: Cadu Tenório

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