RESENHA: PALLIDUM – STRICT

Thiago Miazzo (o Pallidum é Miazzo) não está preocupado com combinação ou concorrência de eventos num dado momento. Ele está simplesmente interessado, ao meu ver, em impor sua variação de humor em ruídos. Alguém poderia dizer que isso qualquer um faz – e talvez o faça. Mas o volume produtivo do músico não indica apenas um amplo domínio técnico como também uma abertura de comprometimento a diferentes perspectivas (embora todas razoavelmente alucinadas) abafadas, quase claustrofóbicas, em que a monotonia estática urbana embrutece a percepção.

Mesmo atualmente, em que a produção de noise/eletrônico se mostra muito abrangente e talvez mais aberta ao “grande público” do que nunca, ouvir os trabalhos de Miazzo relembram de porque isso tudo começou, afinal: nem chega-se aos dez minutos da segunda faixa, “a2”, e a tensão de “Strict” está alinhada fisicamente ao corpo. Estamos submissos às perspectivas do Pallidum. O senso de composição do Miazzo me intriga (a primeira música que tem zero minutos e zero segundos) mas também me admira a ponto de todos conceitos que invariavelmente nublam minha cabeça são postos de lado pra um comprometimento refém das frequências esquisitas de “Strict” – os contornos indefiníveis, os limites exauridos e a extensão obsessiva que apunhala o ouvinte com barulhos infernais. O efeito cumulativo de “Strict” se sobrepõe a todas as predisposições que inegavelmente criamos quando vamos ouvir um álbum. Não é apenas que o disco tem “vida própria”, mas ele carrega em si uma paranoia intrínseca à realidade, dialogando com resíduos e lugares desabitados e esquecidos.

Nós podemos dizer que, com Pallidum, a retaliação surge pré-anunciada mas ainda assim quando aparece brutalmente a noção de silêncio é devastada em prol duma lavagem vertical. É que os eventos em “Strict” simplesmente acontecem e suas inconsistências (não há uma afirmação no disco) gritam fragmentando unidades e consistências. Apesar dum aparente afastamento da realidade, o que conecta o disco é a suspensão violenta dela – a longa repetição em “a3” após quase vinte minutos intensos da faixa anterior cria uma estranha calmaria, outro deslocamento a uma espécie de quietude que, se analisada unitariamente, jamais seria encarada como tal.

“Strict” subsume à inconsistência múltipla porque dentro a realidade não é conjunta: ela mostra, sonoramente, um indicativo de possibilidades radicais que se firmam embaixo/atrás do concreto. A música do Pallidum não apenas busca apreender a “coisa” externa mas exibir num nível muito denso nossa relação inquietante com a caracterização do mundo. As estruturas que agitam também destroem algo e é do nascimento deste elemento sedimentado e recluso que reside nossa ligação capenga com as coisas e pessoas e lugares. Do déficit da idealização que se tem com tudo há um registro. E a música de “Strict” me dá acessos a estes assentamentos derivados que muitas vezes eu me esqueço. A criação “meramente” incorpora o radicalismos destas interações e se constrói de modo tenso e tão frágil (apesar da agressividade sonora) que justamente nos impõe sua paranoica inconsistência.

É refrescante ouvir o formato indefinível do disco enquanto o processo cadencia uma transposição territorial, em que é impossível não ceder ao ocultismo velado dos elementos dispostos. Sem fazer qualquer afirmação eloquente, os registros sonoros de Miazzo interpelam o ouvinte a reparar nos acessos impossíveis dum mundo imposto – há outras formas de experiências etc. O ecossistema de “Strict” evidentemente só existe devido a uma interação com a forma que o universo se mostra, mas a partir deste diálogo “normal” e brusco, o que subsiste ganha corpo e expressão artística pra dar um testemunho de sua condição. A última faixa, “b2”, é tão firme que nos estranha a forma que ela é destroçada. Mas é esta devastação que nos lembra de como foi o caminho todo até aqui – construções sendo incisivamente invadidas pra uma audácia de vida subsistir em cada canto esquecido. E é lógico que esta coragem irrita e insulta – os modelos vigentes perturbam-se quando há uma exposição da sua ordem fragmentada. Como descobrir um lugar sinistro de seu bairro na infância, em que lá – embora um lugar real e concreto – é sua única forma de se dispersar de tudo o que efetivamente acontece. Você está na sua vila mas não está.

Em uma situação musical, nós podemos estar em qualquer lugar que – havendo uma interação com o que se ouve – somos levados a encarar o que nossos olhos registram com outra percepção, devido à imposição de uma ordem externa auditiva. Dentro da situação não há o que se fazer a não ser deixar-se ser acessado (e acessar) por esta estranha comunhão de coisas e imagens e sons. “Strict” é uma situação que reverte a ideia originária e evidencia pontos desapercebidos em todo o caminho a ponto da própria trajetória ser tão disforme quando revista que se torna perturbador caracterizá-la como tal. O disco afirma que qualquer ponto no todo deforma nossa percepção que tudo fica nublado e inconsistente e, não por isso, menos convidativo ou atraente. Eu diria até que mais. Isso é totalmente natural, pois somos afrontados por tais agressões sonoras que somos obrigados a admitir a inconsistência das coisas.

O verídico é construído pela possibilidade que as falhas e as inconsistência elegem ao dispor um mundo com um formato confuso. Através da proposição de Miazzo, de difícil classificação e sustentação (afinal é inconsistente), as imperfeições adquirem mais possibilidades que o holograma da unidade. Os lapsos estranhamente se agrupam refutando a totalização com suas imposições agressivas.

Esta imperfeição é construída, evidentemente, por um processo técnico que é a criação dos ruídos e barulhos e, ainda assim, é um relato visceral de microrrachaduras que vêm ao mundo em determinado formato (musical, artístico) pra denunciar a diferença. Na medida que a desproporção se estende e ganha um corpo barulhento, somos levados a uma nova maneira de encarar as coisas, imposta pela percepção de outrem.

1. a1
2. a2
3. a3
4. a4
5. b1
6. b2

NOTA: 8,5
Lançamento: 28 de fevereiro de 2017
Duração: 63 minutos e 55 segundos
Selo: Independente
Produção: Thiago Miazzo

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