RESENHA: SHYGIRL – CRUEL PRACTICE

Os últimos dias da vida serão despedaçados em fragmentos que nem se correspondem, nem são autorreferentes. Cidades em completa dispersão. Então, as pessoas passarão a se comunicar a partir de estilhaços que anulam a compreensão. Mulheres e homens falarão uma língua de decadência. Os charlatães de hoje vão monetizar ainda mais; é na alienação plena que a ideologia do capital funciona. Forças que provêm de subdiscursos ganharão potência quando não existir discurso algum. E a mania pela comunicação será enfim sabotada pela ratificação civil de ambientes individuais em homenagem a si próprio.

– Essa passagem é tomada como rascunho de experiência enquanto fica claro, no metrô, que as pessoas estão dispersas no mesmo ambiente, distantes no mesmo veículo em movimento. No disco, Shygirl examina as frestas estruturais que podem estimular a experiência em conjunto. O capitalismo neoliberal centraliza o indivíduo como antro de origem sensorial. Mas a estimulação da experiência a partir das rachaduras pode estimular algum delírio novo.

– Cantando pra tentar esmiuçar essa ordem que segrega coparticipações, Shygirl categoriza a distância da experiência em conjunto como algo a ser superado no ultraurbanismo contemporâneo. A mídia fonográfica tem de recuperar um espaço selado pelas edificações do consumo. Armada como uma terminologia própria de publicidade (material, autodescoberta, existencialismo etc.), a música tem fortalecido discursos hegemônicos: gêneros derivados de gêneros derivados pra compor uma fórmula fechada de entreter o ouvinte por quase uma hora; os mesmos barulhos distorcidos, o mesmo refrão alto etc. Nós eventualmente encontraremos as mesmas aparências de novo e de novo, mas é diferente encarar as mesmas comodidades quando se está consciente de outras interações possíveis. De repente, todo o conhecimento que pode ser acessado pelos nossos dedos se transforma em angústia; há irritação nas hiperfórmulas que circulam como se fossem diferentes entre si, mas na verdade correspondem à mesma indeterminação abstrata de um “todo”. Nós nos escondemos, forjamos bolhas de curtidas e autorreferências pra encobrir o fato de que toda essa interação é egoísta, apenas espelhamento forjado em virtuais corpos alheios. No metrô, no celular, em lugar algum. Tome nota das aparências, veja o que sobra quando fecha os olhos a não ser um incontornável e abstrato “todo”.

– “Nasty”, a terceira faixa, pode ser lida como batidas hipnóticas, que – com as esquisitas vozes iniciais – evidencia um processo de autossabotagem: afirmando o livre arbítrio, mas deixando claro como as opções são limitadas e forjadas, portanto pré-determinadas. Como uma cultura, o mito da livre escolha é produzido como escolhas dispostas pela mediação do consumo. A música permite a tensão da dualidade “disso” ou “aquilo”, da reentrância visitada por um acúmulo que justapõe viabilidades, em vez de renegá-las. Essas justaposições permitem criar uma relação de identificação/estranheza simultânea com a música. Sua natureza intermediária é capaz de rastrear os fantasmas do real e identificar como eles também armazenam outras opções.

Nossa reação com estes fantasmas encarnados em virtualidades pode transformar-se. As passagens valem a pena porque, se atento, pode-se transitar pelos lugares de forma que estes deixem algum resquício criativo. A face na capa do disco convoca a abrigar os resquícios de uma rápida e incisiva audição.

Por que não acelerar e intensificar o processo de interação? Primeiramente, fora Temer, “Cruel Practice” brinca com sua própria modulação pra transformar constantemente seus resíduos sonoros em outras coisas:

– Discos como “Cruel Practice” apresentam sequências melódicas que alteram levemente suas vozes (mais ou menos como a SOPHIE faz), pra reafirmar a diferença e a semelhança simultâneas de cada fragmento. Com a influência, cada vez maior, dos instrumentos eletrônicos, isso já não é algo incomum – mas o disco constrói suas próprias intermediações e paradoxos, acelerando a desconstrução das próprias músicas até que elas apresentem uma diferença estrutural gritante do que eram há dois minutos. Mas “Cruel Practice” não é apenas uma contrariedade às “músicas estranhas” contemporâneas, ele também afirma que em todo esse processo de construção há um número infinito de modulações possíveis. Em vez de comodificar barulhos esquisitinhos, o disco tem uma clara inclinação a um pop fragmentado que coabita diversos gêneros musicais desestruturados quando combinados.

– A composição deste disco me soa como se a cantora estivesse dizendo pros outros não se atreverem a pisarem em seu calo. Essas pessoas são aquelas que andam sem a autoconfiança suficiente de que podem interagir com o ambiente e é possível andar em outras direções que não a linha reta e lenta de uma fila no metrô. A incipiência deste projeto é essa: afirmar uma identidade fluída transitando pelos espaços-vazios de uma metrópole abarrotada. Eu tomo essa sondagem como se a artista estivesse sinalizando, e redescobrindo, novas forma de atuar nas instalações urbanas. Shygirl reapresenta-me a um mundo que subexiste enquanto eu ando de lá pra cá pela cidade, reparando muito pouco nas possibilidades horizontalizadas.

– A história da Shygirl poderia ser qualquer outra história de uma pessoa que se atreve a andar e andar pela cidade sabendo que o próprio ato da caminhada pode somar significado a essa simples ação. Muitos lançamentos influenciados por batidas e sons industriais confrontam a “lógica” de apenas representar a confusão contemporânea, através da representação de possibilidade criativa nesses espaços (SOPHIE, novamente, e Lolina vêm à mente). “Cruel Practice” é composto por canções e sons residuais de uma Era em que o progresso tecnológico já está estabelecido e não resta mais estranhá-lo, mas pensar no que é possível criar a partir de suas falhas, neutralidades e vantagens. Ao longo do disco, as vozes diferenciam-se até tornarem-se quase surreais se comparadas ao que eram anteriormente. Ainda assim, são as mesmas vozes – como se o ato de repetir nunca pudesse ser idêntico ao início. Aquela forma de apreender o passado e como essa modulação (presente) altera não só o futuro, mas também as interpretações do que aconteceu.

– Em cortes bruscos e letras impositivas, cada fragmento é uma construção potencial. Ela encontra expressão nas coisas que lhe escampam e nas coisas sobre as quais tem controle. Neste ponto, “Cruel Practice” subverte a lógica de opor conceitos à medida que os justapõe. Não podemos reconhecer plenamente suas características, mas reconhecemos algo, enquanto estranhamos outra coisa e consumimos tudo. Ou, enquanto toda essa simultaneidade ocorre, é possível reparar em “defeitos” e belezas desenhados sobre espaços que sempre nos pareceram nulos. Queremos não só o novo, mas uma redimensão de velhas estruturas em busca de integrações, anteriormente, impossíveis.

– Há alguém lá fora redimensionando espaços estáticos. Este disco esboça um movimento nesse sentido. Em vez de se afirmar por barulhos ou refrões, ele assimila tudo isso em um universo que tem o desdobramento como regra. Ele reúne os fragmentos que mencionei no primeiro parágrafo e os assimila de uma maneira em que a integração não seja apenas simbólica, mas movimentada. Criando música à beira de um descobrimento, Shygirl aproxima-se de uma modulação que preserva seu passado enquanto se reinventa. As dimensões físicas de um tempo em que tudo escoa pelo virtual. Experiência e lugar se fundem quando todas as formas à minha frente possibilitam uma interação. Shygirl está interessada em bagunçar esses lugares, em encontrar brechas que os possibilitem uma nova abertura. Pra ela, a experiência tem a ver com remodular faces semelhantes e bagunçá-las pra que outras configurações possibilitem um novo espaço.

Ela faz música pra reviver posições estanques.

1. Rude
2. O
3. Nasty
4. Gush
5. Asher Wolfe

NOTA: 9,0
Lançamento: 25 de maio de 2018
Duração: 13 minutos e 19 segundos
Selo: NUXXE
Produção: Sega Bodega e Dinamarca

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