TELEVISION NO BECO 203 – COMO FOI

Em “Amargo Pesadelo” (Deliverance, EUA, 1972), dirigido por John Boorman, o personagem de Ronny Cox começa o filme num das mais antológicas cenas do cinema: o duelo de banjos (na verdade, um banjo e um violão), o homem da cidade “contra” um garoto caipira das montanhas.

A provocação instigante que ambos os instrumentos reverberam, com ataque e resposta imediatos, num crescente de admiração mútua e satisfação, derruba uma barreira imposta normalmente pela sociedade, entre o rapaz visivelmente rústico e com problemas aparentes e o “homem da cidade”, moderno e despojado, que invade o espaço sem ser convidado, mas que é “humilde o suficiente” pra sem entregar àquele diálogo. Ali, ambos são iguais, conversam por música, se divertem, esbanjam prazer em notas.

O paralelismo é imediato. Ontem, ao ver Tom Verlaine e Jimmy Rip trocando olhares e notas, lembrei de cara de “Deliverance”. Duas guitarras conversando o tempo todo, ora uma base outra solo, ora uma solo outra base. Atrás, a cozinha jazzística. E no quadro geral, o Television dando aula de música.

Verlaine e Rip tocam juntos há décadas. Rip acompanha o fundador do Television desde que Verlaine começou uma carreira solo produtiva, em 1981. Ambos os guitarristas parecem um só, um ser de quatro mãos, vinte dedos. Uma guitarra não vive sem a outra. O improviso aparenta ser constante, embora a gente saiba que é quase tudo ensaiado e cada corda é acionada precisamente pra notas e movimentos lapidados por décadas de entrosamento.

O Television não é uma banda punk. E quem não sabia disso – ou não viu o show memorável no SESC Pompéia, em 2005 – pode ter se surpreendido, pra melhor ou pra pior, porque o quarteto sobe ao palco e exibe sua categoria em canções classudas, baseadas no jazz, no experimentalismo (e o punk não é exatamente experimentalismo) e no country, dos apenas três discos lançados, dois deles indispensáveis, “Marquee Moon”, de 1977, e “Adventure”, de 1978. Não é e não soa como uma banda de punk rock, como eles mesmos repetem como um mantra.

Tanta estrada, tanto entrosamento e tanta lucidez no palco só podem resultar num show engenhoso, um momento cinematográfico, em que o tempo pode variar, acelerando, pausando, controlando as emoções como num bom roteiro. Basta dizer que começaram com “Prove It”, do “Marquee Moon”, recebendo ajuda massiva do público no refrão “prove it… Just the facts… the confidential”; seguindo, então, da obscura “Jericho”, o que arrefeceu os ânimos daqueles que esperavam uma sucessão de, digamos, “hits”.

Eles não vieram. Do clássico disco, além de “Prove It”, vieram “Venus”, já no bis, e a olímpica “Marquee Moon”, com seus 14 minutos (a cada show ela aparece com uma duração diferente, que sempre varia por aí). De “Adventure”, apenas a lenta “The Fire” e “Glory”.

Durante toda a hora e meia de apresentação, os protagonistas duelaram e conversaram com suas guitarras, sorriram pro público, cantaram em português – na instrumental “The Sea”, que ganhou uma letra baseada num poema não identificado; e deram um clímax em grande estilo, já no bis, com “Venus” e a cover dispensável de “Satisfaction”, dos Stones.

O filme que se viu no Beco, ontem, pode não ter agradado os indies de hoje, mas precisa ser colocado naquela categoria do seu coração e da sua memória onde ficam os clássicos. Duas guitarras assim, trocando olhares com tanto fervor, não se vê todos os dias.

1. Prove It
2. Jericho
3. Little Johnny Jewel
4. Glory
5. The Fire
6. Breaking In My Heart
7. Persia
8. The Sea
9. Marquee Moon
Bis
10. Venus
11. Satisfaction (The Rolling Stones Cover)

Veja a banda tocando “Marquee Moon”:

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Comentários

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16 comentários

  1. belo texto, ferdinando. também achei o mr. ripp um belo bluezeiro, que vendeu sua alma ao diabo numa encruzilhada dessas da vida. a única coisa que eu não gostei no show foi a baba do sr. tom que caiu em mim. de resto, foi perfeito.

  2. Fernando, isto veio do próprio Tom. Ele não costuma elogiar com facilidade:

    thank the journalist Fernando Lopes
    for his perceptive review?
    an intelligent man !

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