O AMANHÃ É HOJE – AS CANÇÕES POPULARES DA UNIÃO DA ILHA

“O samba-enredo da União Da Ilha já era cantado em toda a cidade muito antes da escola chegar à Rua Marquês de Sapucaí. Quando entrou na pista, às 4:45h, chovia muito e foi sob guarda-chuvas que toda a arquibancada cantou o samba leve, fácil e alegre. ‘O Amanhã’ de João Sérgio, também mestre de bateria, que conduziu com talento e firmeza seus ritmistas. A União Da Ilha, depois de ‘Domingo’, do ano passado, mostrou mais uma vez que entusiasmo e animação superam as grandes pretensões de outras escolas, a agremiação não transfere para o luxo a responsabilidade de empolgar a plateia. O tema, que falava do futuro, advinhações, cartomantes, ciganas, magos, periquitos da sorte, signos zodiacais, foi desenvolvido com graça, samba nos pés, e na boca de todos; ao contrário de muitas ‘grandes’, era cantado com um sorriso pelos dois mil e quinhentos integrantes da escola. (…) Quando terminou o percurso, já o dia clareava. Maria Augusta, criadora do enredo, fugiu de temas históricos para mostrar um aspecto popular facilmente assimilado por todos. (…) Debaixo de chuva, deixou a Marquês de Sapucaí, enquanto Maria Augusta, dizia contente: ‘acho que a escola saiu-se muito bem'”.

O texto de Susana Schild, crítica de cinema, escrito especialmente pro Jornal do Brasil de quarta-feira, dia 8 de fevereiro de 1978, mostra ainda pouco do impacto que o samba daquele ano da União Da Ilha Do Governador causou. “o Amanhã” era o terceiro de uma série de muitos sambas da escola que se tornaram clássicos e que caíram na boca do povo com a facilidade de música pop atual promocionada em alta rotação pelas gordas verbas de marketing que mobilizam as atuais divas populares.

Em 1977, a escola apresentou “Domingo”. Luiz Antônio Simas e Fábio Fabato escreveram em “Pra Tudo Começar Na Quinta-Feira: O Enredo Dos Enredos” (2015, Mórula Editorial) que “o time não ganhara em 1977, mas não convinha mexer em receita que estava dando tão certo: o novo tema, ‘O Amanhã’, trazia pegada futurista, sim, mas tinha a ver com vida das pessoas, tal qual o louvado ‘Domingo’. Sim, a proposta de leveza, alegria e cores continuava intacta”.

Uma semana antes, em 3 de fevereiro de 1978, o mesmo Jornal do Brasil apontava que “apelando pra temas metafísicos, ‘Domingo’ e ‘O Amanhã’, a União Da Ilha (…), no momento, é a mais criativa e simpática escola, já que faz um carnaval sem nenhum luxo, mas com flagrante originalidade (…). Um ponto inteiramente a favor da concepção de Maria Augusta, única carnavalesca de renome num ambiente antes dominado inteiramente pelos homens, saiu do Salgueiro para colocar a União Da Ilha também no rol das grandes”.

Além de “Domingo” e “O Amanhã”, também caíram na boca do povo, com a força de que só músicas deliciosamente populares possuem, os sambas “Bom, Bonito E Barato” (1980) e “É Hoje” (1982), ainda mais retumbante. Era uma época em que o Carnaval ainda não era totalmente profissional, não existia o Sambódromo (que é de 1984), e os atores e atrizes globais não chamavam mais atenção que a música.

Era também uma época que a União da Ilha contava com Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, o procurador da República que lutava numa vida dupla de “homem sério” diante da família e boêmio compositor de sambas de enredo. Com essa outra face era conhecido como Didi, autor de vinte e quatro sambas que foram pra avenida, ainda hoje um recorde. “Era um garoto de 18 anos quando ganhou o primeiro samba de enredo, em 1955”, escreve seu sobrinho Beto Mussa, em “Didi, O Mito” (vele muito ler este artigo). “Entre 1954 e 1959, quando a União desfilou apenas no Cacuia, Didi, com seu grande amigo e principal parceiro Aurinho da Ilha, ganhou cinco sambas (composições que a escola defende na avenida, na disputa do campeonato propriamente dito). Um deles, ‘Epopeia Do Petróleo’, de 1956, impressionou o imenso Jamelão, que acabou gravando o samba numa de suas antologias de sambas de enredo, ao lado de nada menos do que ‘Seca do Nordeste’, o clássico da Tupi de Brás de Pina, que o próprio Jamelão considerava o maior de todos os tempos”.

Em 1978, ele estava afastado da Ala dos Compositores da escola e não pôde assinar “O Amanhã”, que de fato é dele e de João Sérgio. “O Que Será?” e “É Hoje” são dele, com outros parceiros.

“Didi vinha num processo radical de afirmação de identidade. Tendo vivido a maior parte da vida num conflito ético e emocional, tendo que escolher entre o samba e a carreira jurídica, acabou não resistindo; e, quando optou pelo samba, não fez concessões”, escreve seu sobrinho. “Desde que voltou à União da Ilha, Didi simplesmente abandonou o escritório, começou a gastar o dinheiro acumulado, a vender os bens, a beber diariamente (lembro que ele acordava de manhã e esvaziava de cara um copo de uísque), a virar noite, a frequentar rodas de samba, enfim, a viver com ênfase a vida que sempre quis ter vivido, a vida de sambista”, recorda.

Didi, o poeta, como bem lembra outro clássico samba da União Da Ilha, de 1991, “De Bar Em Bar, Didi, Um Poeta” (do famoso refrão “Hoje eu vou tomar um porre / Não me socorre que eu tô feliz / Nessa eu vou de bar em bar / Beber a vida que eu sempre quis”), em homenagem a ele, não difere em nada dos muitos mitos criados na música jovem popular feita por guitarras, do punk ao pop, do experimental ao hardcore e grunge.

A união de mentes como a dele (e Aroldo Melodia, o grande intérprete da escola nesse período) e de carnavalescos como Maria Augusta, Max Lopes e Adalberto Sampaio transformaram a União Da Ilha na escola mais amada por todos, uma espécie de Ameriquinha, o segundo time de todo carioca, mas com força ainda hoje.

A escolha de temas mais populares, não históricos ou de exaltação, foi a saída da escola pra uma aproximação com a população. “O Que Será?”, de 1979, versava com humor e (auto)crítica a toda a comunidade do carnaval, “Eu queria saber agora / O que será? / Vou perguntar / A menininha do Gantois / Pode ser um grande Herói / Índios, africanos ou magia / Ou será um tema da velha Bahia? / Já ouvi dizer que é Debret / Ou antigos carnavais / Mas se for candomblé / Eu peço axé / Aos meus orixás”.

Ao invés de se repetir, falar de coisas do dia-a-dia, com letras simples, de fácil assimilação. Essa era a receita. “Domingo”, a música que deu o início nessa fase, cantava “Vem amor / Vem à janela ver o sol nascer / Na sutileza do amanhecer / Um lindo dia se anuncia / Veja o despertar da natureza / Olha amor quanta beleza / O domingo é de alegria / No Rio colorido pelo Sol / As morenas na praia / Que gingam no samba / E no meu futebol”.

Era simplesmente irresistível pra grande massa. O carioca se via ali, ao contrário de reis, imperadores, imperatrizes, militares, outros estados e cidades, do candomblé (que até tinha aproximação). É a aposta certa de qualquer canção popular: falar sobre coisas que as pessoas entendem, sobre o que é caro pra vida delas. Didi, Aurinho da Ilha, Aroldo Melodia, Maria Augusta e tantos outros sabiam disso.

“Não tenho luxo e nem riqueza / Há simplicidade e beleza / Na festa do seu coração / Muito bom / O meu bonito é barato / Da simpatia, o retrato / Do povo no carnaval”: “Bom, Bonito E Barato”, de 1980, fazia um problema da escola, a falta de dinheiro, se transformar em trunfo. E o povo não só da comunidade se identificava.

Mas foram dois sambas dessa fase que extrapolaram totalmente a avenida, ganharam as rádios (não só as populares), as propagandas de TV e a MPB: “O Amanhã” e “É Hoje”.

“É Hoje”, de Didi e Mestrinho, ganhou versões variadas. As mais importantes são de Caetano Veloso, no álbum “Uns”, de 1983, e de Fernanda Abreu, em “Da Lata”, de 1997:

Já “O Amanhã” ganhou duas versões de alta rotação, em 1983. Uma delas por Elizeth Cardoso. A outra, gravada por Simone, que garantiu o sucesso da canção:

O percurso da União Da Ilha não foi tão glorioso. Nem o amanhã, nem o hoje, nem o ontem. A escola, apesar de estar tantas vezes na boca do povo, jamais ganhou um carnaval no Grupo Especial. Nem com esses, nem com o memorável “Festa Profana” (“Eu vou tomar um porre de felicidade / Vou sacudir, eu vou zoar toda cidade”), nem com “Todo Dia É Dia De Índio” (1995), nem “É Brinquedo, É Brincadeira. A Ilha Vai Levantar Poeira!” (2014). A mágica já passou. Mas as músicas ficaram, tão clássicas e irretocáveis quanto qualquer baluarte da música popular brasileira.

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